Lei penal interna diante do direito internacional público

08/06/2018 às 12:08
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A norma penal incriminadora pode resultar diretamente de tratado internacional?

I – A LEGISLAÇÃO PENAL E PROCESSUAL PENAL NA MATÉRIA

Determina o artigo 5º do Código Penal brasileiro:

Art. 5º - Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984)

§ 1º - Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984)

§ 2º - É também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em vôo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984)

Lugar do crime (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984)

São princípios que regem a aplicação da lei no espaço: a) territorialidade; b) defesa ou proteção(que leva em consideração a nacionalidade brasileira do bem jurídico lesado pelo delito); c) justiça universal ou cosmopolita (leva em conta a nacionalidade brasileira punir crimes com alcance internacional); d) nacionalidade ou personalidade(leva em conta a nacionalidade brasileira do agente do delito) ; e) representação ou bandeira(que tem em consideração a bandeira brasileira da embarcação ou da aeronave privada, situada em território estrangeiro, conforme a regra do artigo 7º, II, c, CP).

Para Celso D. de Albuquerque Mello(Curso de direito internacional público, volume I, pág. 133), “tratado significa um acordo internacional concluído entre Estados em forma escrita e regulado pelo Direito Internacional, consubstanciado em um único instrumento, ou em dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja a designação específica. Para Francisco Rezek (Direito Internacional Público, pág. 14), trata-se de “todo acordo formal concluído entre sujeitos de direito internacional público e destinado a produzir efeitos jurídicos”.

Essa orientação da lei brasileira, de superioridade dos tratados internacionais em relação à legislação infraconstitucional, foi seguida e reafirmada no Código de Processo Penal de 1941, que deixou assente, em seu artigo 1º, inciso I, que o “processo penal rege-se, em todo o  território brasileiro, por este Código, ressalvados os tratados, as convenções internacionais e regras de Direito Internacional. Tal disposição, de matéria processual, quis dar claramente aos tratados, às convenções e regras do Direito Internacional, um status normativo superior à sua própria hierarquia. Se o direito processual penal, no Brasil, rege-se pelo Código de Processo Penal, ressalvados os tratados, as convenções em geral, chega-se à conclusão de que tais instrumentos e regras do direito das gentes prevalecem sobre a legislação infraconstitucional, em relação a tais matérias. Estariam então acima das regras do Código interno.


II – OS EXEMPLOS DO CÓDIGO DO CONSUMIDOR E DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

Veja-se, ainda, a redação trazida no artigo 7º, da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990:

Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.

O único dispositivo da legislação brasileira que atribui expressamente hierarquia superior aos tratados internacionais em confronto com as demais normas de Direito interno é o artigo 98 do Código Tributário Nacional.

Ali se diz:

Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha.

Mas a jurisprudência do STF tem adotado uma interpretação restrita do citado dispositivo, entendendo ser o mesmo somente aplicável aos chamados tratados-contrato(que são normalmente bilaterais e não dão causa à criação de uma regra geral e abstrata de Direito Internacional, mas à estipulação recíproca e concreta das respectivas prestações e contraprestações individuais com fins comuns) e não aos tratados-normativos(os quais, por sua vez, criam normatividade geral de Direito Internacional, construindo-se normalmente em grandes convenções multilaterais. Veja-se, a propósito, o que foi decidido no RE n. 80.004 – SE).

Para Paulo Caliendo, Estabelecimentos Permanentes em Direito Tributário Internacional, 2005, pág. 94), “o uso da classificação dos,tratados em duas espécies, normativa e contratual, é claramente descabido como fundamentação para a interpretação restritiva do art. 98 do Código Tributário Nacional. Ensinou Alberto Xavier(Direito tributário internacional do Brasil, pág. 137) que “mesmo a interpretação constritiva do STF confirma a primazia dos tratados sobre dupla tributação em relação à legislação tributária interna, na medida em que tais tratados são tratados-contratos, que versam sobre assuntos específicos nas relações bilaterais entre dois Estados.”


III – A SUPREMACIA DOS TRATADOS SOBRE AS LEIS INTERNAS

 A doutrina internacionalista atual considera, inclusive, que os tratados internacionais de direitos humanos (não os tratados comuns) têm sempre status constitucional (ou até supraconstitucional, para alguns autores), ainda que não aprovados na forma do art. 5°, §2°, da CF. Nesse sentido, Valério Mazzuoli(Curso de direito internacional público, 2015, pág. 415 e 915).

No julgamento do RHC 79.785/RJ, o Ministro Sepúlveda Pertence entendeu ser possível considerar os tratados de direitos humanos (e não outros...) como documentos de caráter supralegal. Mas a tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos ficou ainda mais clara no STF com voto-vista do Ministro Gilmar Mendes, na sessão plenária do dia 22 de novembro de 2006, no julgamento do RE 466.343 - 1 / SP, onde se discutia a questão da prisão civil por dívida nos contratos de alienação fiduciária em garantia(O Tribunal, neste caso em que foi Relator o Ministro Cezar Peluso, rechaçou expressamente esse tipo de coerção pessoal na alienação fiduciária em garantia, numa sessão histórica, em 22 de novembro de 2006).

No entendimento de Valerio Mazzuoli(Curso de Direito Internacional Público, 3ª edição, pág. 339 a 343), os tratados internacionais comuns ratificados pelo Estado brasileiro é que se situam num nivel hierarquico intermediário, estando abaixo da Constituição, mas acima da legislação infraconstitucional não podendo ser revogados por lei posterior(uma vez que não se encontram em situação de paridade normativa com as demais leis nacionais).

Quanto aos tratados de direitos humanos, entende Valério Mazzuoli que os mesmos ostentam o status de norma constitucional, independemente de seu eventual quorum qualificado de aprovação. A um resultado similar se pode chegar o princípio - hoje cada vez mais difundido na jurisprudência interna de outros países, e consagrado em sua plenitude pelas instâncias internacionais - da supremacia do Direito Internacional e da prevalência de suas normas em relação a toda normatividade interna - seja ela anterior ou posterior.

Ainda para Valerio Mazzuoli, atendido esse ponto de vista, os tratados internacionais têm superioridade constitucional, como no caso dos tratados de direitos humanos; quer supralegal, como no caso dos demais tratados, chamados de comuns - é lícito concluir que a produção normativa estatal deve contar não somente com limites formais(ou procedimentais), senão também com dois limites verticais materiais, quais sejam: a) a Constituição e os tratados de direitos humanos alçados ao nível constitucional; e b) os tratados internacionais comuns de estatura supralegal.

Disse Valerio Mazzuoli(obra citada, pág. 340): "Assim, a compatibilidade da produção normativa doméstica com o texto constitucional não mais garante à lei validade no plano do Direito Interno. Para que a validade(e consequentemente a eficácia) de uma lei seja garantida, deve ela ser compatível com a Constituição e com os tratados internacionais(de direitos humanos ou comuns) ratificados pelo Brasil. Em outras palavras, uma determinada lei interna poderá ser até considerada vigente por ter sido elaborada com respeito às normas do processo legislativo estabelecidas pela Constituição(que têm estatura constitucional) ou com os demais tratados dos quais a República Federativa do Brasil é parte(que têm status supralegal). Para a existência de vigência e concomitante validade das leis deverá ser respeitada uma dupla compatibilidade vertical material, ou seja, a compatibilidade da lei com a Constituição e os tratados de direitos humanos em vigor no país e com os demais instrumentos internacionais ratificados pelo Estado brasileiro".

Prosseguiu Valerio de Oliveira Mazzuoli(obra citada, pág. 341):

"Não se poderá confundir vigência com validade(e a consequente eficácia) das normas jurídicas, como fazia o modelo Kelseniano do ensino jurídico, devendo-se agor seguir a lição de Ferrajoli, que bem diferencia ambas as situações: uma lei vigente não é obrigatoriamente válida e, em última análise, eficaz. Doravante, para que uma norma seja eficaz e possa ser aplicada pelo juiz em caso concreto, deverá ela ser também anteriormente vigente. Em outras palavras, a vigência depende da validade. Por isso, não aceitamos os conceitos de validade e vigência de Tércio Ferraz Jr. pra quem norma válida é aquela que cumpriu o processo de formação ou de produção normativa, e vigente a que já foi publicada. O autor conceitua vigência como um "termo com o qual se demarca o tempo de validade de uma norma" ou, em outros outros termos, como "a norma válida(pertencente ao ordenamento) cuja autoridade pode ser considerada imunizada, sendo exigíveis os comportamentos prescritos", arrematando que uma norma "pode ser válida sem ser vigente, embora a norma vigente seja sempre válida(Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação). Não concordamos(também com base em Ferrajoli) com essa construção segunda a qual uma norma "pode ser válida sem ser vigente", e de que "a norma vigente seja sempre válida". Para nós, são coisas idênticas(Luigi Ferrajoli, Derechos y garantias: a ley del más débil, pág. 21) é aquela elaborada pelo Parlamento de acordo com as regras do processo legislativo estabelecidas pela Constitução; lei válida é a lei vigente compativel com o texto constitucional e com os tratados de direitos humanos ou não ratificados pelo governo, ou seja, é a lei que tem sua autoridade respeitada e protegida contra qualquer ataque(porque compatível com a Constituição e com os tratados em vigor no país. Daí porque não havendo compatibilidade material com ambas as normas - a Constituição e os tratados é que a lei infraconstitucional em questão será vigente e válida(e, consequentemente, eficaz). Caso contrário, não passando a lei pelo exame de compatibilidade material vertical com os tratados, a mesma não terá qualquer validade(e tampouco, eficácia) no plano no Direito interno brasileiro, devendo ser rechaçada pelo juiz em caso concreto."

É o que Luiz Flávio Gomes(Estudo constitucional de direito e nova pirâmide jurídica, 2008, pág. 25 a 28) entendeu. Sendo assim, a inexistência de decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal em controle tanto concentrado quanto difuso de constitucionalidade (neste último caso, com a possibilidade de comunicação ao Senado Federal para que este, nos termos do artigo 52, inciso X, suspenda, no todo, ou em parte, os efeitos da lei declarada inconstitucional pelo STF) mantêm a vigência das leis no país, as quais, contudo, não permanecerão válidas se incompatíveis com os tratados internacionais(de direitos humanos ou comuns) dos quais o Brasil é parte.

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IV  - A RESERVA DE PARLAMENTO E O ENTENDIMENTO DO STF EM MATÉRIA DE APLICAÇÃO DA LEI PENAL DIANTE DE CONVENÇÃO INTERNACIONAL

Expressou Paulo Queiroz(Tratado como norma penal incriminadora?).

Portanto, mesmo a posição de vanguarda do STF, expressa no voto-vista do Min. Gilmar Mendes acima referido, ainda é, a nosso ver, insuficiente. No nosso entender, os tratados internacionais comuns ratificados pelo Estado brasileiro é que se situam num nível hierárquico intermediário, estando abaixo da Constituição, mas acima da legislação infraconstitucional, não podendo ser revogados por lei posterior (posto que não se encontrem em situação de paridade normativa com as demais leis nacionais). Quanto aos tratados de direitos humanos, como se observará no momento oportuno, entendemos que os mesmos ostentam status de norma constitucional, independentemente do seu eventual quorum qualificado de aprovação. A um resultado similar pode-se chegar aplicando o princípio – hoje cada vez mais difundido na jurisprudência interna de outros países, e consagrado em plenitude pelas instâncias internacionais – da supremacia do Direito Internacional e da prevalência de suas normas em relação à normatividade interna, seja anterior ou posterior.

Mas, o Supremo Tribunal Federal, em matéria penal, já manifestou posição expressa sobre o tema:

No julgamento do HC n° 121.835/PE, relator Ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal, ratificando sua jurisprudência, assentou que tratado internacional não pode estabelecer norma penal incriminadora, sob pena de violação ao princípio da reserva legal (CF, art. 5°, XXXIX), de modo que internamente só por meio de lei ordinária ou outro ato normativo de nível superior seria possível instituir-se normas penais. Discutiu-se ali se seria possível considerar configurado o crime de lavagem de dinheiro, que, como delito derivado, pressupõe a existência de um crime principal, no caso, organização criminosa, valendo-se, para tanto, da definição dada pela Convenção de Palermo (Decreto 5.015/2004). Essa discussão específica foi superada com o advento da Lei n° 12.850/2013, cujo art. 1° definiu o crime de organização criminosa.

De acordo com o relator, não se pode dizer que “a ausência de lei formal definidora do delito de organização criminosa seria suprível pela invocação da Convenção de Palermo, o que bastaria para configurar, no plano da tipicidade penal – segundo sustentado pelo Ministério Público Federal –, a existência do delito de organização criminosa como infração penal antecedente, considerado o texto normativo da Lei nº 9.613/98 em sua primitiva redação”.( STF, RHC 121.835/PE, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, j. 13.10.2015). Disse, ainda, que “em matéria penal, prevalece o postulado da reserva constitucional de lei em sentido formal, pois – não é demasiado enfatizar – a Constituição da República somente admite a lei interna como única fonte formal e direta de regras de direito penal”.

 Paulo Queiroz (obra citada), em importante síntese, nos coloca a solução:

“Uma vez reconhecido, na pior das hipóteses, que o tratado tem status de lei, resta superada a alegação de ofensa ao princípio nullum crimen, nulla poena sine lege.

A norma penal incriminadora pode, portanto, resultar diretamente de tratado internacional. A lei só será necessária se, e quando houver, necessidade de precisar-lhe os termos da criminalização e da penalização.

É comum, aliás, que os tratados estabeleçam cláusulas genéricas e demandem regulamentação pelos países que os subscrevem, motivo pelo qual dificilmente serão autoaplicáveis, ao menos em relação à criminalização de condutas.

Assim, por exemplo, a convenção para prevenção e repressão do crime de genocídio de 1948 (art. V) dispõe expressamente que “as Partes Contratantes assumem o compromisso de tomar, de acordo com as respectivas Constituições, as medidas legislativas necessárias a assegurar a aplicação das disposições da presente Convenção e, sobretudo, a estabelecer sanções penais eficazes aplicáveis às pessoas culpadas de genocídio ou de qualquer dos outros atos enumerados no art. III”. A regulamentação da convenção foi realizada pela Lei n° 2.889/56. “

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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