Transgênero militar

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Este trabalho visa conceituar o que é transexual, transgênero e sexo para, a partir de então, trazer ao leitor duas das conquistas significativas que estas categorias de pessoas obtiveram junto ao Sistema Único de Saúde (SUS) e Poder Judiciário Brasileiro.

INTRODUÇÃO

Não são poucos os relatos reportados, por todo mundo, de crianças que lutaram, desde a mais tenra idade, para fazerem prevalecer o reconhecimento de suas identidades de gênero.

Com o passar dos anos, a identidade de gêneros, o binômio masculino-feminino ou até mesmo o binômio biológico XX ou XY, passou a ser inadequado para a realidade dos dias atuais.

Focado nos aspectos jurídicos e os direitos inerentes aos transexuais como pessoa humana, observa-se que o judiciário se apressa para alcançar os novos marcos.

Contudo, ao se tratar da vida em sociedade, a simples conduta de um transexual fazer uso do banheiro público é motivo de alvoroço.

Com muito mais rigidez e repulsa, é a aceitação destas novas pessoas nos quadros das Forças Armadas. O reflexo desta adequação não só atinge o âmbito do alistamento militar, mas também dos direitos das filhas e filhos pensionistas cujos genitores militares já estão falecidos e que passaram ou não a fazer jus da pomposa quantia herdada vitaliciamente. 


1 CONHECENDO A DIFERENÇA

É certo que a maioria da população brasileira não sabe identificar as diferenças entre o transexual e o transgênero.

Quando se está a tratar de gênero a referência em mente é de como uma pessoa se identifica, há quem se perceba como homem, como mulher, como ambos ou mesmo como nenhum dos dois gêneros (os chamados não binários).

Diferente é a ideia de orientação sexual. O conteúdo abarcado pela expressão orientação sexual indica qual gênero uma pessoa se vê atraída sexualmente. 

Em síntese, o significado de gênero remete-se a duas hipóteses:

a)    pessoas que se identificam com o mesmo gênero que lhe foi dado no nascimento, são os chamados Cisgênero; e

b)   pessoas que se identificam com um gênero diferente daquele que lhe foi dado no nascimento, são os Transexuais e os Transgêneros.

Os Transexuais são pessoas que, além de não se identificarem com o seu gênero biológico, desejam e passam por alterações biológicas (cirurgia) a fim de mudarem de sexo para que possam, enfim, se sentir completamente correspondidos na identidade de gênero a qual se reconhecem.

Já os Transgêneros são pessoas que não se identificam com o seu gênero biológico, se identificam com o gênero oposto ao seu, esperando serem aceitas e reconhecidas como tal em sociedade, mas isso não quer dizer, obrigatoriamente, que querem mudar de sexo por meio de intervenção cirúrgica. Os transgêneros englobam os que se submeteram ou não à cirurgia de redesignação de sexo. 


2  O QUE É SEXO?

Segundo o dicionário de medicina Flammarion, Sexo “é o conjunto de características estruturais e funcionais que distinguem o macho da fêmea”.[1]

Sexo é a resultante de um equilíbrio de diferentes fatores que agem de forma concorrente nos planos físicos, psicológicos e social. Não se concebe mais entender como Sexo apenas um elemento cromossômico (XX e XY) – um parâmetro minimalista para os dias atuais.

Para além deste elemento diferenciador XX e XY, Sexo é o somatório dos elementos fisiológico, psicossocial e jurídico. 

Assim, transgêneros é algo para além do gênero homem e mulher.

É neste cenário de transgêneros que o transexualismo é encontrado. Em um conceito simplório, o transexualismo significa que há uma transposição na correlação de sexo anatômico e psicológico, ou seja, a pessoa tem a convicção de pertencer a um sexo e possuir genitais opostos ao sexo que psicologicamente se pertence.

Uma pessoa é transexual, significa dizer se tratar de uma pessoa que seu sexo anatômico não corresponde ao seu sexo psicológico.

 No asseio de compatibilizar o sexo morfológico com o sexo psíquico, o transexual se vê a procura por reconstruir o seu genital por meio da cirurgia de redesignação sexual.

Pode não parecer, mas esta incompatibilidade está classificada internacionalmente como uma doença de transtorno da personalidade e do comportamento adulto.

O “transexualismo”, segundo a Classificação Internacional de Doenças, é um transtorno com estas características:

CID 10 F 64.0 – Transexualismo

Categoria: transtornos da identidade sexual

Grupo: F60 – F69 – transtorno da personalidade e do comportamento adulto

Capítulo: V – transtornos mentais e comportamentais

Nota: Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.[2]


3  A CONQUISTA JUNTO AO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

A partir de 2008, o Governo Federal implementou políticas públicas, visando oferecer atenção às pessoas que preenchessem os requisitos de serem maiores de 18 anos, terem sidos submetidos, há pelo menos dois anos, à acompanhamento psicoterápico e que ao final obtiveram laudo psicológico e psiquiátrico favorável e diagnóstico de transexualidade, a possibilidade de realizarem a cirurgia de redesignação sexual junto ao SUS, conscientes da sua irreversibilidade.

Este avanço se deu com a publicação da Portaria nº 457, de agosto de 2008, do Ministério da Saúde que define as Diretrizes Nacionais para o Processo Transexualizador no SUS, a serem implementadas em todas as unidades federadas.[3]

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A Portaria nº 457/2008 trata dos procedimentos a serem feitos no processo de confirmação de gênero.

Segundo o portal Governo do Brasil, até 2014, foram realizados mais de 6.000 atendimentos em consultórios para tratamento com hormônios e mais de 240 procedimentos cirúrgicos para a alteração das características físicas sexuais por meio da cirurgia de redesignação sexual.[4]

De acordo com este site, não é apropriado o uso dos termos "mudança de sexo" ou "operação sexual", quando está a se tratar da pretensão almejada ao final do processo transexualizador, pois são considerados imprecisos. Os termos certos e utilizados para definir especificamente o processo de mudança de sexo são cirurgia de redesignação de gênero, cirurgia de reconstrução sexual, cirurgia de reconstrução genital, cirurgia de confirmação de gênero e, mais recentemente, cirurgia de afirmação de sexo.


4  COMO FICA O NOME E O SEXO NOS DOCUMENTOS DO TRANSEXUAL?

A pretensão do transexual em ver adequados o seu prenome e gênero ao seu sexo psicológico é assunto polêmico na Doutrina e na Jurisprudência, no entanto, deve-se procurar a harmonia entre os direitos e garantias fundamentais do indivíduo e a proteção e a segurança jurídica da sociedade. O professor Carlos Roberto Gonçalves nos lembra que:

[...] A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º , X, inclui entre os direitos individuais, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, fundamento legal autorizador da mudança de sexo jurídico de transexual que se submeteu a cirurgia de mudança de sexo, pois patente seu constrangimento cada vez que se identifica como pessoa de sexo diferente daquela que aparenta ser'. Na verdade, o transexual não se confunde com o travesti ou com o homossexual. Trata-se de um indivíduo anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao outro sexo.[5]

Preocupado com possíveis constrangimentos quando da identificação de uma pessoa em sociedade, o legislador cuidou, já na Lei de Registros Públicos (artigos 55, 57 e 58), em limitar a possibilidade de se conferir nome à pessoa que a submetesse, posteriormente, a situações vexatórias ou depreciativas. 

Certo disto, recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou a possibilidade dos transexuais, operados ou não, adequarem seu assento de nascimento. Senão, veja-se:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO PARA A TROCA DE PRENOME E DO SEXO (GÊNERO) MASCULINO        PARA    O             FEMININO.         PESSOA TRANSEXUAL. DESNECESSIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO.

1.              À luz do disposto nos artigos 55, 57 e 58 da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), infere-se que o princípio da imutabilidade do nome, conquanto de ordem pública, pode ser mitigado quando sobressair o interesse individual ou o benefício social da alteração, o que reclama, em todo caso, autorização judicial, devidamente motivada, após audiência do Ministério Público.

2.              Nessa perspectiva, observada a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, admite-se a mudança do nome ensejador de situação vexatória ou degradação social ao indivíduo, como ocorre com aqueles cujos prenomes são notoriamente enquadrados como pertencentes ao gênero masculino ou ao gênero feminino, mas que possuem aparência física e fenótipo comportamental em total desconformidade com o disposto no ato registral.

3.              Contudo, em se tratando de pessoas transexuais, a mera alteração do prenome não alcança o escopo protetivo encartado na norma jurídica infralegal, além de descurar da imperiosa exigência de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que traduz a máxima antiutilitarista segundo a qual cada ser humano deve ser compreendido como um fim em si mesmo e não como um meio para a realização de finalidades alheias ou de metas coletivas.

4.              Isso porque, se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade.

5.              Assim, a segurança jurídica pretendida com a individualização da pessoa perante a família e a sociedade - ratio essendi do registro público, norteado pelos princípios da publicidade e da veracidade registral - deve ser compatibilizada com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que constitui vetor interpretativo de toda a ordem jurídico-constitucional.

6.              Nessa compreensão, o STJ, ao apreciar casos de transexuais submetidos a cirurgias de transgenitalização, já vinha permitindo a alteração do nome e do sexo/gênero no registro civil (REsp 1.008.398/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15.10.2009, DJe 18.11.2009; e REsp 737.993/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.11.2009, DJe 18.12.2009).

7.              A citada jurisprudência deve evoluir para alcançar também os transexuais não operados, conferindo-se, assim, a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos existenciais inerentes à personalidade, a qual, hodiernamente, é concebida como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças.

8.              Tal valor (e princípio normativo) supremo envolve um complexo de direitos e deveres fundamentais de todas as dimensões que protegem o indivíduo de qualquer tratamento degradante ou desumano, garantindo-lhe condições existenciais mínimas para uma vida digna e preservando-lhe a individualidade e a autonomia contra qualquer tipo de interferência estatal ou de terceiros (eficácias vertical e horizontal dos direitos fundamentais).

9.              Sob essa ótica, devem ser resguardados os direitos fundamentais das pessoas transexuais não operadas à identidade (tratamento social de acordo com sua identidade de gênero), à liberdade de desenvolvimento e de expressão da personalidade humana (sem indevida intromissão estatal), ao reconhecimento perante a lei (independentemente da realização de procedimentos médicos), à intimidade e à privacidade (proteção das escolhas de vida), à igualdade e à não discriminação (eliminação de desigualdades fáticas que venham a colocá-los em situação de inferioridade), à saúde (garantia do bem-estar biopsicofísico) e à felicidade (bem-estar geral).

10.          Consequentemente, à luz dos direitos fundamentais corolários do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que o direito dos transexuais à retificação do sexo no registro civil não pode ficar condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização, para muitos inatingível do ponto de vista financeiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do ponto de vista médico.

11.          Ademais, o chamado sexo jurídico (aquele constante no registro civil de nascimento, atribuído, na primeira infância, com base no aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico) não pode olvidar o aspecto psicossocial defluente da identidade de gênero autodefinido por cada indivíduo, o qual, tendo em vista a ratio essendi dos registros públicos, é o critério que deve, na hipótese, reger as relações do indivíduo perante a sociedade.

12.          Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de retificação do sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito.

13.          Recurso especial provido a fim de julgar integralmente procedente a pretensão deduzida na inicial, autorizando a retificação do registro civil da autora, no qual deve ser averbado, além do prenome indicado, o sexo/gênero feminino, assinalada a existência de determinação judicial, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se a publicidade dos registros e a intimidade da autora (REsp 1626739/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 09/05/2017, DJe 01/08/2017).[6]

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Sobre a autora
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Advogada Licenciada. Militar Tenente Oficial da Aeronáutica em Brasília-DF. Especialista em Direito Penal e Processual Penal Comum. Especialista em Ordem Jurídica e o Ministério Público. Especialista em Direito Penal Militar e Processual Penal Militar. Discente de Graduação de Direito no Instituto de Ensino de Brasília (IESB). Chefe da Seção de Investigação e Justiça da Secretaria de Economia, Finanças e Administração da Aeronáutica (SEFA).

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