Aspectos do crime passional no Direito Penal Brasileiro

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Os casos passionais ainda causam discordância no Tribunal do Júri, e sua solução acaba sendo subjetiva e culturalmente dependente. Uma das razões é a ausência de um tipo penal específico sobre o caso, dentre outras coisas. Saiba mais sobre isso.

RESUMO

Os casos passionais ainda causam discordância no Tribunal do Júri, tornando sua solução subjetiva e culturalmente dependente, parte desta devido, sobretudo, à inexistência de um tipo penal específico no nosso ordenamento para tratar da matéria, não somente em gênero (homicídio em sentido amplo), mas em espécie (homicídio passional). Neste artigo, pretendeu-se investigar a temática sob o aspecto político-social, jurídico, criminológico e vitimológico, buscando apresentar como é tratada a matéria penal sob diversas óticas; sendo constatado não existir a necessidade de criação de um tipo penal específico para a problemática, outrossim, subsumi-la de forma adequada ao caso concreto, requerendo senão um tratamento mais rígido.

Palavras-chave: Crime Passional. Tipo penal específico. Político-social. Jurídico. Criminológico. Vitimológico.

ABSTRACT

Passionate cases still cause disagreement in the jury's court, making its solution culturally and subjectively dependent, part of which is mainly due to the lack of a specific criminal type in our order to deal with matter, not only in gender (homicide in the broad sense), but in kind (passionate homicide). In this article we intend to investigate the political, social, juridical, criminological and victimological issues, trying to present how the criminal matter is treated from different perspectives; being verified that there is no need to create a specific criminal type for the problem, or subsuming it in a way appropriate to the specific case, requiring only a more rigid treatment.

Key words: Passional crime. Own criminal type. Political-social. Legal. Criminological. Victimological.

1 INTRODUÇÃO

Em uma primeira análise, todo crime é, de certa forma, passional, por resultar de uma paixão no sentido amplo do termo. Em linguagem jurídica, porém, convencionou-se chamar de “passional” apenas os crimes cometidos em razão de relacionamento sexual ou amoroso. As vítimas de crimes passionais são, em sua maioria, mulheres, que vivem submissas aos seus maridos ou companheiros.

Nosso Código Penal não define o que é “crime passional”, nem faz previsão expressa desse tipo; a doutrina é que assim o denomina e busca explicá-lo. O Judiciário obtém da doutrina não uma solução, mas uma pluralidade de respostas quando o assusto é o crime passional, existe senão uma divergência no entendimento da matéria que esbarra em três principais soluções, quais sejam julgar o homicídio passional como qualificado, julgar com homicídio privilegiado, ou aceitar que o agente agiu com legítima defesa da honra, podendo o criminoso ter sua pena diminuída ou até mesmo sua culpabilidade afastada, por força das teses utilizadas pela defesa.

Observa-se que a temática não é pacífica na Jurisprudência, fazendo-se necessário uma análise aprofundada da matéria. Tal assunto se torna importante devido ao tratamento muitas vezes brando dado ao criminoso passional, sobretudo pelas raízes patriarcais e machistas que temem a persistir no meio social.

Pretende-se com este artigo contribuir para a expansão do entendimento sobre a temática em meio acadêmico, concatenando ideias antes esparsas através de uma pesquisa bibliográfica em livros, artigos científicos, legislação vigente e sites relacionados ao Direito; comparando conceitos históricos, sociológicos, filosóficos e jurídicos no intuito de constituir um panorama geral sobre o assunto; propõe-se igualmente analisar a necessidade da criação de um tipo penal específico para o homicídio passional, tema que será discutido posteriormente.

2 ASPECTOS POLÍTICO-SOCIAIS DOS HOMICÍDIOS PASSIONAIS

Neste tópico se trabalhará uma visão histórico-sociológica do crime passional, mostrando no decorrer da história a evolução da tutela jurídica da mulher frente a imposição masculina, bem como a influência do amor, paixão e traição através dos tempos, romantizada pelas obras literárias clássicas, contudo reflexo da realidade social.

2.1 Breve comentário dos homicídios passionais na história

Amor, paixão e traição, são assuntos corriqueiramente tratados em obras literárias, mormente nos contos clássicos da antiguidade. Um dos retratos míticos mais famosos da infidelidade é o casamento de Zeus e Hera, eminentes “rei” e “rainha” dos deuses gregos:

Sua vida conjugal é um catálogo de casos, temperados com ciúme, vingança e filhos ilegítimos (...). Zeus era o rei do céu, e era ele quem organizava e governava o funcionamento regular e ordeiro do cosmo. Casou-se com sua irmã Hera, depois de uma corte altamente romântica, e parecia inebriado com ela. No entanto, desde o início do casamento foi infiel à esposa, e ela se sentia magoada e furiosamente enciumada. Os dois brigavam constantemente, e Zeus não via problemas em de vez em quando bater em Hera para silenciar suas acusações e protestos. Hera ficava furiosa por ele estar sempre atrás de outros amores — deusas e mortais, mulheres e rapazes (...). Concentrava todas as energias na busca de provas do adultério de Zeus e na elaboração de planos astuciosos para humilhá-lo e se vingar de seus amantes (...) Hera enlouqueceu Dioniso e arquitetou um plano para fazer com que a mãe dele, Semele, morresse queimada; atormentou Hércules, o filho de Alcmene, com tarefas impossíveis. Chegou até a amarrar o marido com correntes de couro, ameaçando depô-lo - embora, como era conveniente e inevitável, ele tenha sido salvo pelos outros deuses (GREENE; SHARMAN-BURKE, 2001, p. 107-108).

Destaca-se também o caso de Paolo e Francesca, que foram mortos pelo marido traído na obra “A divina Comédia”:

De amor, que os corações rapidamente inflama, este que vês ao meu lado, tomou-se pela minha formosura, a qual me foi tirada por modo que ainda agora me tem dolorida. Amor, que em troca exige amor igual, tão fortemente uniu-me ao meu amante, que mesmo aqui tal união perdura. O amor nos levou a morte infame, mas de quem no-la deu, Caína está à espera. Foi o que ela disse e calou-se. (ALIGHIERI, 1996, p. 33).

Não se pode deixar de mencionar um dos trabalhos literários mais completos que se fez sobre a ideia de “matar por amor”: “Otelo”. Tragédia do dramaturgo inglês William Shakespeare, escrita no início do século XVII, retrata um tempo em que o homem nobre e corajoso, como o personagem que dá nome à peça, tinha de zelar pela sua honra à qualquer custo.

Otelo é um prestigiado general de pele morena (“o mouro”, como era chamado), servia o reino de Veneza, casa-se em segredo com a bela Desdêmona, filha de um nobre veneziano. Iago, amigo e subordinado do protagonista, dominado pela inveja, faz de tudo para arruinar esse casamento e prejudicar seu superior hierárquico. Para atingir esse objetivo, instiga o ciúme, fazendo Otelo acreditar que a mulher o traia com Cássio, um jovem tenente. O plano funciona tão bem que Otelo acaba matando a mulher e suicidando em seguida.

Por derradeiro, impera os dizeres de Gastão, em sua obra:

(…) o amante rejeitado não mais enxerga o oásis do amor, porque inexistente, tornando deserta sua vida. Sofre por dentro o carcoma da desilusão que mata um organismo sobrevivente num ser que, agonizando, já não tem razão para viver. E nesse turbilhão de emoções, sucumbe à paixão avassaladora e por ela mata, às vezes, e não raro, por ela morre (ROSA FILHO, 2006, p. 46).

Na obra de Shakespeare, Otelo invoca a honra para justificar seus atos ao enunciar: “Dizei, se o quereis, que sou um assassino, mas por honra, porque fiz tudo pela honra e nada por ódio” (SHAKESPEARE, 2005, p. 182); a justificativa recorrentemente utilizada pelo criminoso passional atribuir-se-á a defesa da honra, temática tratada substancialmente nos romances e tragédias literárias, bem como argumento principal defendido pelos homicidas passionais. Exemplo se dá na obra “Gabriela, Cravo e Canela” do escritor brasileiro Jorge Amado, onde a prática costumeira de absolver o marido traído homicida da mulher adúltera para limpar a sua honra perante a sociedade é tratada abertamente:

Nenhuma aposta se aceitava, porém, quando o júri se reunia para decidir sobre crime de morte em razão de adultério: sabiam todos ser a absolvição unânime do marido ultrajado o resultado fatal e justo. Iam para ouvir os discursos, a acusação e a defesa, e na expectativa de detalhes escabrosos e picarescos, escapando dos autos ou da falação dos advogados. Condenação do assassino, isso jamais!, era contra a lei da terra mandando lavar com sangue a honra manchada do marido (AMADO, 2004, p. 93).

O assunto será retomado com mais propriedade posteriormente no tocante à legítima defesa da honra como causa excludente de antijuridicidade.

2.2 Condição da mulher no Brasil e a evolução da legislação penal

Verifica-se que desde a antiguidade até os tempos atuais e de forma quase absoluta, os crimes passionais são praticados contra as mulheres. O termo “feminicídio” é empregado para designar o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher, sobretudo sobre o sentimento de perda do controle e da propriedade por seus parceiros. Um estudo realizado pelo portal G1 em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela que em 2017 o Brasil teve 4.473 homicídios dolosos praticados contra mulheres, sendo 946 feminicídios, um aumento de 6,5% em relação a 2016, quando foram registrados 4.201 homicídios (sendo 812 feminicídios) (Portal G1, 2018).

A plena cidadania da mulher é fato recente, porém, a revolução feminina, que marcou o século XX, e o significativo avanço das mulheres em diversas áreas e setores ainda não conseguiram encobrir o vestígio mais cruel da discriminação e da opressão: a violência. Isto porque, apesar de todos os avanços, apesar da equiparação entre o homem e a mulher (artigo 5º, I, da Constituição Federal) ainda existe uma grande desigualdade sociocultural que conduz à discriminação feminina e, principalmente, à sua dominação pelos homens.

Antes de o Brasil, enquanto nação soberana, ter uma ordenação de direito estabelecida, utilizava-se na Colônia as ordenações do reino de Portugal. As que mais vigeram em nosso país foram as Ordenações Filipinas, promulgadas no reinado de Filipe II. Dentre algumas normas, as Ordenações Filipinas conferiam poderes ao homem para matar, em caso de adultério, sua esposa e, também, o amante desta; mesmo que o marido apenas suspeitasse de sua infidelidade. O mesmo não valia para a mulher traída, que antes deveria submeter-se ao infortúnio; demonstram reflexos da época em que o machismo reinava e pregava-se a inferioridade feminina.

Ao homem sempre coube o espaço público, e a mulher foi confinada nos limites do lar, no cuidado da família. Isso enseja a formação de dois mundos: um, de dominação, externo, produtor; o outro, de submissão, interno e reprodutor. A essa distinção estão associados os papéis ideais de homens e mulheres: ele provendo a família, e ela cuidando do lar, cada um desempenhando a sua função (DIAS, 2004, p. 56).

Se tratando de matéria penal, com o Código Criminal Republicano, de 1890, se deixou:

(...) de considerar crime o homicídio praticado sob um estado de total perturbação dos sentidos e da inteligência. Entendia que determinados estados emocionais, como aqueles gerados pela descoberta do adultério da mulher, seriam tão intensos que o marido poderia experimentar uma insanidade momentânea. Nesse caso, não teria responsabilidade sobre seus atos e não sofreria condenação criminal (ELUF, 2003, p. 162).

O atual Código Penal do Brasil, promulgado em 1940, rompeu com a prática jurídica anterior ao eliminar a excludente de ilicitude referente à “perturbação dos sentidos e da inteligência”, que deixava impunes os assassinos passionais, substituindo-a por uma nova categoria de delito, o “homicídio privilegiado”, tratando-o como homicídio, porém atenuando-se a pena do réu.

Apesar de receber uma pena menor do que a atribuída ao homicídio simples, a categorização como homicídio privilegiado, figurou um importante avanço em confronto à impunidade do assassino passional. No entanto, a maioria da população ainda defendia a ideia de que o homem traído tinha o direito de matar a mulher, surgindo então a tese da “legítima defesa da honra e da dignidade”, que jurados e até mesmo magistrados, se utilizavam para perdoar a conduta criminosa passional, regados ainda por um forte sentimento patriarcal.

Em 1994, sob forte clamor social e dos meios de comunicação, foi promulgada a Lei n. 8.930/1994 que dá nova redação ao art. 1º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, também chamada de “Lei dos Crimes Hediondos”, qualificando o homicídio qualificado como crime hediondo, oferecendo penas mais rígidas e tratamento especial (assunto será retomado posteriormente).

Tal contenda foi levantada em decorrência do movimento gerado pela autora de novelas Glória Perez, que teve sua filha, a atriz Daniella Perez, assassinada por Guilherme de Pádua, que com ela contracenava na televisão. O crime passional, ocorrido em 1992, fez com que a mídia levantasse a questão, e a campanha de recrudescimento das punições, liderada pela mãe da vítima, inconformada com o tratamento benevolente dado pelas leis aos autores de homicídios qualificados, emocionou a sociedade brasileira, que já clamava por maior rigor penal.

Outra lei que surgiu em defesa da causa feminina, foi a lei Lei n. 11.340/2006, ou “Lei Maria da Penha”, foi sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e está em vigor desde 22 de setembro do mesmo ano; trata da violência doméstica e familiar contra a mulher. Alterando dispositivos do Código de Processo Penal, do Código Penal e da Lei de Execução Penal, seu objetivo é criar mecanismos para coibir a violência contra a mulher, estabelecendo várias medidas para prevenção, assistência e proteção às vítimas de agressão.

A lei Maria da Penha foi crida a partir do caso nº 12.051/OEA, Maria da Penha Maia Fernandes, mulher que deu nome à lei foi agredida pelo marido, o professor universitário e economista Marco Antonio Heredia Viveros, durante seis anos. No ano de 1983 ela sofre duas tentativas de homicídio, ficando tetraplégica. Depois de vários transcursos jurídicos e após 19 anos da ocorrência dos fatos, o marido de Maria, foi preso em 2002, cumprindo apenas dois anos de prisão.

O caso de Maria da Penha foi a primeira denúncia de violência doméstica acatada na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), órgão que, em 2001, responsabilizou o Brasil por negligência e omissão em relação à violência doméstica. Maria da Penha, então, tornou-se símbolo da luta contra a violência doméstica, liderando diversos movimentos de defesa dos direitos das mulheres e coordenando associações de apoio à vítimas de violência.

3 ASPECTOS MATERIAIS E FORMAIS DOS HOMICÍDIOS PASSIONAIS

Se demonstrará os aspectos jurídicos relevantes, assim os elementos que compõe o crime passional, quais sejam a culpabilidade, imputabilidade e responsabilidade penal, bem como criticar a tese de defesa geralmente arguida: legítima defesa da honra; bem como as tipificações, homicídio privilegiado e homicídio qualificado, sob a qual recaem a matéria.

3.1 Culpabilidade, imputabilidade e responsabilidade penal

De início têm-se que: “Culpabilidade é o juízo de censura, o juízo de reprovabilidade que incide sobre a formação e a exteriorização da vontade do responsável por um fato típico e ilícito, com o propósito de aferir a necessidade de imposição de pena” (MASSON, 2011, p. 436).

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Analisando-se a conduta infratora, destacam-se dois conceitos jurídico-penais: o dolo e a culpa em sentido estrito; o primeiro está ligado à vontade, que seja quando o agente quer ou assume o risco de um ato (ou da falta deste) findando num resultado negativo, o segundo vincula-se à previsibilidade, pois o agente não quer o resultado negativo, mas atua com imprudência, negligência ou imperícia, dando causa ao resultado previsível.

Porém, a bipartição da conduta em dolosa e culposa, é insuficiente para compreender a culpabilidade penal, para tanto o Código Penal em vigor acolheu uma tipologia teórica, denominada teoria limitada; emprestando-se dos elementos enumerados na teoria normativa-pura (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa, necessariamente nesta ordem), diferenciando-se somente em relação ao tratamento das discriminantes putativas (MASSON, 2011, p. 442).

Nesta teoria, o dolo e a culpa pertencem à conduta; todos os elementos normativos formam a culpabilidade, ou seja, a reprovabilidade da conduta, mas a culpabilidade ganha um elemento – a consciência da ilicitude, ou seja, a consciência do injusto – porém, perde os elementos psicológicos anteriores – o dolo e a culpa em sentido estrito – reduzindo-se, essencialmente, a um juízo de censura, um juízo de valor sobre o fato.

Os elementos constitutivos da culpabilidade estão ordenados hierarquicamente, de tal modo que o segundo pressupõe o primeiro, e o terceiro os dois anteriores.

O primeiro é a imputabilidade, “é, [senão] a condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se segundo esse entendimento” (MIRABETE, 2006, p. 193). Ou seja, uma pessoa imputável é uma pessoa que já pode responder por seus atos e ser condenada a alguma pena por causa deles. Em complemento:

A imputabilidade é o conjunto de requisitos pessoais que conferem ao indivíduo capacidade, para que, juridicamente, lhe possa ser atribuído um fato delituoso. Pelos próprios termos do art. 26, imputável é a pessoa capaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. Sinteticamente, pode dizer-se que imputabilidade é a capacidade que tem o indivíduo de compreender a ilicitude de seu ato e de livremente querer praticá-lo (NORONHA, 1999, p. 164).

Todavia, cabe ressaltar que, além de imputável, o agente pode ser considerado semi-imputável ou inimputável.

A semi-imputabilidade é prevista pelo artigo 26, parágrafo único, do Código Penal brasileiro, que versa:

Art. 26. Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (“grifo nosso”).

Já a inimputabilidade é tratada no caput do mesmo artigo (artigo 26) do Código Penal, que prevê:

Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (“grifo nosso”).

A inimputabilidade não se presume e, para ser acolhida, deve ser provada em condições de absoluta certeza. A prova da inimputabilidade do acusado é fornecida pelo exame pericial (artigo 149, caput, do Código de Processo Penal).

Excluída a imputabilidade por incapacidade total de entendimento da ilicitude do fato ou de autodeterminação, o autor do fato, como já dito, é absolvido, aplicando-se obrigatoriamente a medida de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado (artigo 96, I, do Código Penal). Tratando-se, porém, da prática de crime apenado com detenção, o juiz poderá submeter o agente a tratamento ambulatorial (artigo 97, caput, do Código Penal).

O segundo fator é a potencial consciência da ilicitude, onde analisa-se a capacidade de reconhecimento do sujeito perante a antijuridicidade de sua conduta, com base no juízo comum, ou se poderia estruturar, além da vontade antijurídica da ação praticada, outra conforme o direito, ou seja, se conhecia a ilicitude do fato ou se podia reconhecê-la, e mesmo assim o fez.

O terceiro elemento é a exigibilidade de conduta diversa, onde nas circunstâncias do fato, julga-se a possibilidade de exigir do sujeito um comportamento diverso daquele que tomou ao praticar o fato típico e antijurídico, pois há circunstâncias ou motivos pessoais que tornam inexigível uma conduta diversa do agente.

Em resumo, somente é culpável o agente maior de 18 anos de idade [maioridade penal] e mentalmente sadio (imputabilidade) que age com dolo ou com culpa e que, no caso concreto, podia comportar-se em conformidade com o Direito, é dizer, praticou o crime quando tinha a faculdade de agir licitamente (MASSON, 2011, p. 439).

Do concurso dos requisitos elencados anteriormente, quais sejam: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa; decorre a reponsabilidade penal, consequência e pressuposto necessário da punibilidade, corresponde às consequências jurídicas oriundas da prática de uma infração.

Responsabilidade é a obrigação que alguém tem de arcar com as consequências jurídicas do crime. É o dever que tem a pessoa de prestar contas de seu ato. Ela depende da imputabilidade do indivíduo, pois não pode sofrer as consequências do fato criminoso (ser responsabilizado) senão o que tem a consciência de sua antijuridicidade e quer executá-lo (ser imputável) (NORONHA, 1999, p. 164).

A discussão sobre responsabilidade penal no crime passional alude à elementos subjetivos, que questionam a culpabilidade do agente ante o ilícito praticado, no tocante a sua capacidade emocional de discernir o lícito do ilícito, assim a sua imputabilidade.

No caso de crime passional, esse liame que separa a imputabilidade da inimputabilidade é ainda mais tênue, uma vez que o livre arbítrio, nas hipóteses em que ainda existe, justificando a sanção penal, resta em muitos casos viciados. Nesse contexto, a culpabilidade é mínima. E mais, não há como ignorar que o comportamento da vítima influiu no deslinde da causa (ROSA FILHO, 2006, p. 206).

3.2 Legítima defesa da honra

Como já foi abordado anteriormente, o Código Penal de 1940, em vigor, eliminou a excludente de ilicitude referente à paixão e à emoção (“perturbação dos sentidos e da inteligência”), substituindo-a por uma nova categoria de delito, o “homicídio privilegiado”, no qual o passional não ficaria mais impune, apesar de receber uma pena menor que a atribuída ao homicídio simples.

Não obstante, conforme assevera Eluf (2003, p. 163), a atenuação da pena para os criminosos passionais não agradou os advogados de defesa, estes buscavam senão a absolvição de seus clientes. Em meio a este cenário surgiu a legítima defesa da honra e da dignidade, que os jurados aceitavam, sem muito esforço, para perdoar a conduta criminosa.

No entanto, sempre esteve claro que a legítima defesa da honra foi um artifício. Os advogados sabiam, perfeitamente, que lei nenhuma no Brasil falava nessa modalidade de legítima defesa, mas os jurados, leigos que são, não iriam decidir com base no texto expresso de lei, mas de acordo com seus valores culturais (ELUF, 2003, p. 163).

Ocorre que a “honra”, citada tão erroneamente pelos passionais, traduz perfeitamente o sentimento de posse daqueles que consideram um direito seu a fidelidade e a submissão do cônjuge; daqueles que defendem que o marido traído precisa “lavar sua honra”, matando a mulher, mostrando à sociedade que sua reputação não foi atingida impunemente e retomando o respeito que acreditam ter perdido. “Não é por acaso que a maioria dos homicidas passionais confessa o crime. Para eles, não faz sentido matar a esposa supostamente adúltera e a sociedade não ficar sabendo...” (ELUF, 2003, p. 164). Ainda conforme o referido autor:

Hoje, com a Constituição Federal que equipara homens e mulheres em direitos e obrigações, proibindo todas as formas de discriminação, sem deixar qualquer dúvida quanto à plena cidadania feminina, seria inadmissível que um defensor ousasse apresentar a tese da legítima defesa da honra em plenário do Júri, por ser inconstitucional. (...) [Assim] Nossos tribunais não têm mais aceitado a tese da legítima defesa da honra. A honra é bem pessoal e intransferível; a mulher não porta a honra do marido ou vice-versa (ELUF, 2003, p. 167-168).

Com efeito, a evolução da sociedade, bem como do Direito, fez com que a legítima defesa da honra fosse afastada das decisões dos tribunais, fazendo com que as mulheres, as maiores vítimas desse argumento de defesa, se sentissem pelo menos um pouco mais protegidas e amparadas diante das leis que emolduram o país.

3.3 O homicídio privilegiado e qualificado no âmbito passional

O homicídio doloso é classificado no Código Penal da seguinte forma: homicídio simples (artigo 121, “caput”); homicídio privilegiado (artigo 121, §1º) e homicídio qualificado (artigo 121, §2º).

O homicídio simples é previsto no artigo 121 do Código Penal: “Art. 121. Matar alguém; Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos”.

O homicídio simples é a figura básica, elementar, original na espécie. Contudo, o legislador não ignorou determinadas circunstâncias que podem concorrer no crime de homicídio, apenas disciplinou-as fora do tipo: algumas o qualificam, outras o privilegiam, sendo que a sua ausência ou inocorrência não afasta a tipicidade do tipo básico. De outra forma, o homicídio será “simples” por exclusão, ou seja, quando não se adequar às hipóteses de homicídio “privilegiado” ou “qualificado”.

No caso do homicídio privilegiado pode o juiz diminuir a pena do agente, conforme prevê o Código Penal brasileiro em seu artigo 121, §1º:

§1º. Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Percebe-se que o legislador trouxe três causas distintas de diminuição de pena: se este cometeu o homicídio em virtude de um (1) relevante valor social ou (2) moral, ou se este o cometeu sob o (3) domínio de violenta emoção, logo após ser provocado de forma injusta pela vítima.

Na primeira hipótese, considera-se “relevante valor social”:

(...) aquele que tem motivação e interesse coletivos, ou seja, a motivação fundamenta-se no interesse de todos os cidadãos de determinada coletividade; relevante é o importante ou considerável valor social, isto é, do interesse de todos em geral (BITENCOURT, 2007, p. 46, grifo nosso).

Assim, para privilegiar o homicídio, é necessário que o motivo seja relevante socialmente, de interesse coletivo, considerável, digno de apreço; como, por exemplo, matar alguém para proteger a sociedade, matar o traidor da Pátria etc.

Já na segunda hipótese, diz-se que o crime teve motivação de “relevante valor moral”, quando:

(...) é [impulsionado por] valor superior, enobrecedor de qualquer cidadão em circunstâncias normais. Faz-se necessário que se trate de valor considerável, isto é, adequado aos princípios éticos dominantes, segundo aquilo que a moral média reputa nobre e merecedor de indulgência (BITENCOURT, 2007, p. 46).

Ao contrário do valor social, o valor moral, em regra, refere-se ao interesse individual do agente; sua motivação deve estar necessariamente ligada à compaixão ou piedade, o exemplo mais comum dado pela doutrina é do pai que mata aquele que estuprou sua filha.

A terceira hipótese para a caracterização de homicídio privilegiado, é o domínio por violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima: é sabido que a emoção, bem como a paixão, não excluem a responsabilidade penal (artigo 28, I, do Código Penal), embora possam diminuí-la, com a correspondente redução de pena, conforme o próprio artigo 121, §1º, desde que satisfeitos os seguintes requisitos legais: provocação injusta da vítima, domínio de violenta emoção e “imediatidade” entre provocação e reação.

Esta terceira causa interessa irremediavelmente ao caso de homicídio passional, pois a tese habitualmente utilizada pela defesa alega que o agente agiu sob uma violenta emoção causada pelas desavenças afetivas, e assim a pena do homicida passional deveria ser atenuada. Contudo, outros pressupostos concorrem simultaneamente, quais sejam: a provocação injusta da vítima e a “imediatidade” entre provocação e reação; “a injustiça da provocação deve ser de tal ordem que justifique, de acordo com o consenso geral, a repulsa do agente, a sua indignação” (BITENCOURT, 2007, p. 49), bem como o intervalo entre impulso emocional e a ação resultante devem ocorrer em brevíssimo espaço de tempo, enquanto perdurar o estado emocional dominador, não sendo compatível com o planejamento do delito.

Tocante ao homicídio qualificado, sem adentrar em todas as suas possibilidades existentes no art. 121, § 2º, do Código Penal, o presente artigo apenas aponta para as hipóteses que com mais frequência se enquadram no homicídio passional. Assim está previsto no artigo 121, §2º, do Código Penal:

§2º. Se o homicídio é cometido:

I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

II - por motivo fútil;

III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;

V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime;

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino;

VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição;

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

É torpe o “atributo do que é repugnante, indecente, ignóbil, logo, provocador de excessiva repulsa à sociedade” (NUCCI, 2011, p. 641). No caso sob enfoque, a torpeza é muitas vezes velada, apoiada por arbítrios patriarcais, socialmente “aceitáveis”; adversamente:

(…) o crime passional é praticado, na maioria esmagadora das vezes, por motivos de indiscutível torpeza. O ciúme controlado, o desejo sexual não leva ao assassinato. A eliminação da vida alheia só pode resultar de rancor, da vingança, do ódio e de todos os demais sentimentos resultantes do narcisismo e da frustração. Entende a jurisprudência de nossos tribunais que o marido ou amante que mata a companheira por vingança, ciúme ou ódio age por motivo torpe, o que qualifica a conduta, tornando-a mais severamente punível (ELUF, 2003, p. 139-140).

De outra forma, fútil é o motivo:

(...) insignificante, irrelevante, sem importância, de modo que a reação do acusado, ao matar a vítima, afigura-se totalmente desproporcional ao motivo que o levou ao ato. Na maioria dos casos, o homicida passional terá agido por motivo torpe, mas se, ao analisar os fatos detidamente, a acusação se convencer de que o motivo do crime foi fútil, terá de fundamentar seu entendimento nas circunstâncias reais que determinaram a conduta do réu e acusá-lo com base em conceitos firmados pela doutrina e pela jurisprudência (ELUF, 2003, p. 144).

Além do motivo fútil e torpe, principais qualificadoras do homicídio passional, o homicida passional também pode cometer o crime por algum meio cruel ou com emprego de tortura, surgindo assim mais uma qualificadora, que está descrita no artigo 121, § 2º, III do código penal brasileiro; poderá também dificultar ou impossibilitar a defesa da vítima, “pegando-a de surpresa”, essa qualificadora está elencada no inciso IV do parágrafo 2º do artigo 121 do código penal.

Ademais, com o advento da Lei 13.104 de 9 de março de 2015, o art. 121, § 2° do Código Penal passou a ter o inciso VI que trata do “feminicídio”; que é senão o homicídio doloso (consumado ou tentado) qualificado praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino. O art. 121, § 2°-A, do Código Penal estabelece duas situações de “condição do sexo feminino”:

§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I - violência doméstica e familiar;

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Incontestável que o novo tipo penal criado é mais uma forma de combate à violência contra a mulher, inclusive tendo sido incluído no rol dos crimes hediondos (Lei 8.072/90).

Fechando-se este raciocínio tem-se que:

É importante mostrar que o homicídio passional, em regra, é qualificado, não privilegiado. Qualificado pelo motivo que é torpe (vingança), pelo uso de recurso que dificulta ou impede a defesa da vítima (surpresa), pelo emprego de meio cruel (vários tiros ou facadas no rosto, no abdome, na virilha). Não é privilegiado porque, na grande maioria dos casos, o agente não se encontra sob o domínio de violenta emoção logo em seguida a injusta provocação da vítima (ELUF, 2003, p. 11).

4 ASPECTOS CRIMINOLÓGICOS DOS HOMICÍDIOS PASSIONAIS

Este item aduz uma análise da psicologia jurídica que visa investigar as motivações pessoais e exteriores que levam o criminoso à prática delituosa, também parte da perspectiva da vítima para com seu algoz, conduzindo uma reconstrução do crime e atribuindo parte da responsabilidade a mesma, sob certas hipóteses.

4.1 Ciúme, amor e paixão – A personalidade do criminoso passional

A Criminologia Clínica é a parte da Medicina Legal que estuda as questões médico-legais ligadas aos fenômenos naturalísticos do ilícito penal, ou seja, é o estudo da vítima, da conduta do delinquente e de todas as determinantes que atuam sobre as pessoas do crime.

Aqui serão tratadas as motivações geralmente alegadas aos crimes passionais, quais sejam o ciúme, o amor e a paixão, objetivando trazer maiores esclarecimentos sobre o homicídio passional.

Para Alves (apud ELUF, 2003, p. 115) “o ciumento considera a pessoa amada mais como ‘objeto’ que verdadeiramente como ‘pessoa’ no exato significado desta palavra. Esta interpretação é característica do delinquente por ciúme”.

O ciúme é um sentimento egocêntrico, revela uma insegurança psicológica, uma imaturidade afetiva, um orgulho avassalador que não suporta rivalidades e considera o outro como posse. Agravado, esse sentimento leva a psicoses, problemas neuropsiquiátricos, sendo causador de agressões físicas e em casos mais graves, os homicídios passionais. São movidos pelo sentimento: “se ele/ela não pode ser meu/minha, não será de mais ninguém”. É a distorção, a deformação do verdadeiro amor.

Hungria citado na obra de Farias Júnior (1993, p. 188), taxa os criminosos passionais de “estelionatários da honra e contrabandistas do amor”. Acolhidos de exacerbada e violenta emoção, utilizam-se da paixão para justificar seus atos, confundindo e embaralhando o conceito de amor e paixão.

Paixão não é sinônimo de amor. Pode decorrer do amor e, então, será doce e terna, apesar de intensa e perturbadora; mas a paixão também resulta do sofrimento, de uma grande mágoa, da cólera. Por essa razão, o prolongado martírio de Cristo ou dos santos torturados é chamado de “paixão” (ELUF, 2003, p. 111).

Quanto à personalidade do criminoso passional, uma das definições mais comuns é a de Enrico Ferri, um dos precursores da Criminologia Positivista, ela aparece da seguinte maneira:

Os criminosos por Paixão ou Passionais: (...) são indivíduos de conduta precedente honesta, de temperamento sanguíneo ou nervoso, sensibilidade exagerada. O impulso passional eclode com cólera, por amor ou por honra ferida. Os passionais são arrebatados por esse impulso indomável que lhes tolhe a consciência e lhes tira a razão. (...) o passional age pela emoção, por paixão, por motivos afetivos de honra ou outros sentimentos que a Psicologia Criminal é capaz de distinguir. Confessam com facilidade na polícia, mostram-se arrependidos e, nas prisões, revelam-se pacíficos (FARIAS JÚNIOR,1993, p. 55).

Nesse sentido, Medeiros Vieira ensina acerca do dinamismo passional:

O sentimento de inferioridade e frustração, de mistura com o de ridículo ou de injustiça, em uma determinada situação vivencial, por exemplo, a de logro, de engodo, de rejeição, de desprezo, de insegurança (como pode acontecer com um marido enganado pela mulher, ou com um homem de bem, pacato, bom e sereno, ao ver-se ultrajado e humilhado publicamente por outro, sobretudo se de modo gratuito e inesperado), desencadeia naturalmente o ímpeto passional sob a forma tripartida do temor, da iracúndia e do desespero, que pode tornar-se irrefreável. (...) Há um dinamismo inconsciente que dirige a impulsão, cuja natureza é psicofisiológica, porquanto a dita “violenta emoção”, ou mais propriamente paixão, embora não elimine inteiramente o raciocínio ao longo de sua duração completa (podendo até, às vezes, aguçá-lo), tem causas fisiológicas e psicológicas. Entre as fisiológicas: a hereditariedade e a ocasionalidade. A primeira deflui, em parte, do que o tônus hereditário nos transmite na formação do temperamento, e, incidentalmente, do caráter; a segunda constitui a “tentação” ou ocasião (VIEIRA, 1997, p. 153).

Para a Psicologia e Psiquiatria Forense o indivíduo que pratica o homicídio passional possui em decorrência do fato (adultério, suposto adultério ou rejeição) um transtorno mental ou, até mesmo, já possuía anteriormente um transtorno de personalidade antissocial, sendo, assim, um doente do caráter. Por isso, em casos de homicídios passionais, deve-se levar em conta a doença mental do caráter, isto é, o transtorno de personalidade de algum tipo ou misto, associado a um estado momentâneo de loucura (delírio de ciúme, por exemplo).

O homicida passional, como um doente do caráter, pode ser entendido, porém não pode deixar de ser punido. Conforme observado a seguir:

A paixão não basta para produzir o crime. Esse sentimento é comum aos seres humanos, que, em variáveis medidas, já o sentiram ou sentirão em suas vidas. Nem por isso praticaram a violência ou suprimiram a existência de outra pessoa. A paixão não pode ser usada para perdoar o assassinato, senão para explicá-lo. É possível entrever os motivos que levam um ser dominado por emoções violentas e contraditórias a matar alguém, destruindo não apenas a vida da vítima, mas, muitas vezes, sua própria vida, no sentido físico ou psicológico. Sua conduta, porém, não perde a característica criminosa e abjeta, não recebe a aceitação social (ELUF, 2003, p. 112).

Não se deve, contudo, taxar amor, ciúme e paixão como sentimentos inferiores e incompatíveis com o bem-estar social e assim, elimináveis; neste sentido alerta Eluf (2003, p. 141): “O amor, o ciúme controlado, o desejo sexual não levam ao assassinato. A eliminação da vida alheia só pode resultar do rancor, da vingança, do ódio e de todos os demais sentimentos resultantes do narcisismo e da frustração”.

4.2 Um estudo sobre a vitimologia nos homicídios passionais

Nos dizeres de Farias Júnior (1993, p. 249), a vitimologia é a parte da criminologia que estuda o comportamento dos delinquentes em relação às suas vítimas, o comportamento de suas vítimas em relação aos criminosos e até que ponto a vítima concorreu para a produção do crime.

A vítima é personagem tão importante quanto o delinquente no fato delituoso; é algo indispensável na formação da figura delituosa (não há crime sem vítima), como igualmente causadora, provocadora ou colaboradora da conduta criminosa (BRANCO, 1975, p. 199).

Pellegrino apud Gastão Filho (1987, p. 10), complementa com maestria aduzindo que “se nem todos os criminosos são culpados, nem todas as vítimas são inocentes”.

Nesse sentido, Farias Júnior também lembra:

Quantas vezes a conduta negligente do proprietário vem a favorecer a produção do crime (a ocasião faz o ladrão); (...). No relacionamento marido mulher pode haver a intolerância, as renitentes ofensas, o machismo, a subjugação, o alcoolismo, o ciúme doentio, a falta de escrúpulos, de educação e de respeito no relacionamento pai e filho, a prepotência, a inflição de castigos, a provocação da mulher sensual, com exibição do corpo, enfim, a lista é inexorável (FARIAS JÚNIOR, 1993, p. 249-250).

Nesta visão tem-se que o comportamento da vítima pode desencadear o ato lesivo cometido pelo homicida, já que a conduta vitimizadora estimula o modo agressivo e violento do agressor.

Não há como se negar que a gênese do estado de periculosidade, seja no criminoso, seja na vítima, apresenta o seu eixo em causas biopsíquicas predisponentes e desencadeantes de ações antisociais, fazendo com que o crime seja um modo de expressão do temperamento ou do caráter da personalidade do infrator (OLIVEIRA, 2005, p. 99).

Nossa lei penal reconhece o papel maléfico da vítima em seu artigo 121, § 1º, segunda parte, que consagra um caso de diminuição de pena (homicídio privilegiado), devido ao estado de violenta emoção do agente logo em seguida à injusta provocação da vítima, o que também ocorre no crime de lesão corporal, previsto no artigo 129, § 4º, segunda parte.

Assim, o comportamento da vítima deve sempre ser levado em consideração pelo juiz na fixação da pena do autor do crime (artigo 59 do Código Penal), atentando para as circunstâncias do crime, a culpabilidade do agente e a ilicitude do ato.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destarte, o levantamento bibliográfico realizado foi concatenando diferentes concepções sobre o crime passional, levando a refletir na complexidade com que a matéria em voga se apresenta no cenário jurídico.

A mulher, como foi apresentado, é grande vítima da infração ao bem jurídico precipuamente tutelado, qual seja, a vida humana; tem sofrido ao decorrer dos séculos, sob uma melindra machista e patriarcal, devendo respeito e fidelidade incondicional a seu cônjuge, caso contrário sua pena será a morte. Tanto que para o marido traído o ato de matar a companheira é “direito de reparação”, como uma espécie de compensação e dever para com sua honra diante a sociedade.

Não obstante a tese levantada por muitos advogados na defesa de seus clientes, como “legítima defesa da honra”, vem persuadindo e muitas das vezes obtendo vitória em Tribunais de Júri, inocentando criminosos que procederam egoisticamente. Na errônea ideologia de afronta à honra, asserção que vem perdendo força nos últimos tempos. Assevera-se também a desqualificação da propositura penal de homicídio privilegiado (art. 121, §1º do Código Penal) nestes casos, pois quase que unanimemente estes criminosos agem com premeditação e crueldade, opondo a iniciativa legal.

Aqui defende-se a tese de que aquele que comete crime passional, é movido senão por dolo e motivo de indiscutível torpeza, praticando evidentemente homicídio qualificado (art. 121, §2º do Código Penal), devendo sofrer penas dignas de sua atitude ignóbil.

Ademais, foi mencionado que o Código Penal inaugurou a tipificação penal do “feminicídio”, que é, senão, o homicídio doloso (consumado ou tentado) qualificado praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, regido pelo §2º-A, do artigo 121; revela a tentativa do legislador em combater à violência contra a mulher, inclusive tendo sido incluído no rol dos crimes hediondos (Lei 8.072/90).

Também foi exposto aspectos criminológicos sobre o crime passional, apresentando a parcela de contribuição do criminoso e da vítima para a ocorrência do ilícito. O criminoso utiliza-se do argumento da violenta paixão e ciúme desacerbado para justificar seus atos, mas como foi abordado, não é suficiente, pelo contrário, ilegítimo, esta alegação. A vítima, neste interim, poderá contribuir para o crime, sobretudo na hipótese prevista no §1º do art. 121, qual seja da injusta provocação ao agente, tema polêmico, que tende a inverter a responsabilidade criminal.

Enfim, mediante a proposta inicial de investigação da necessidade de criação de um tipo penal específico para o homicídio passional, foi verificado que não existe uma real necessidade para tanto, contrariando uma tendência legalista de tipificar indiscriminadamente as condutas que divergem da “escrita fria da lei”; verificou-se que a categorização como homicídio qualificado, bem como a alternativa legal do “feminicídio”, suprem o caráter de imputabilidade do fato ao caso concreto na maioria dos cenários.

Contudo, vale ressaltar que é necessário cautela e conscientização social, pois, a comunidade, como futuros membros do Tribunal do Júri, não podem ser persuadidos por falácias de advogados que visam a manipular o corpo julgador a seu favor e de seus representados. Igualmente, faz-se necessário um tratamento mais rígido, especificamente quanto à sanção aplicada aos criminosos passionais, para que a impunidade não perpetue e que aqueles valores sociais machistas se dissolvam definitivamente.

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VIEIRA, João Alfredo Medeiros. Noções de Criminologia. São Paulo: Ledix, 1997.


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Cristiano Peixoto Peixoto

Graduando em Direito pela Faculdade Una Uberlândia

Paulo Roberto Cardoso Brasileiro

Especialista e orientador da disciplina de TCC II do Curso de Direito da Faculdade Una Uberlândia,

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo científico apresentado à disciplina de TCC II do Curso de Direito da Faculdade Una Uberlândia.

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