1.Introdução
O artigo gira em torno da necessidade de se sustentar a permanência do princípio da proteção, especialmente em relação a regra da aplicação da norma mais favorável, diante das alterações promovidas pela Lei 13.467/17, notadamente nos artigos 611-A e 620 da CLT/17.
Inegavelmente a CLT foi profundamente modificada. Por exemplo, no art.620 da CLT, a previsão é que as condições estabelecidas em acordo coletivo de trabalho sempre prevalecerão sobre as estipuladas em convenção coletiva de trabalho. De igual modo, o art.611-A prevê que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei nas hipóteses arroladas nos seus incisos. Com isso, alguns doutrinadores chegaram a afirmar que os mencionados artigos da CLT sepultaram o princípio protetor e o princípio da norma mais favorável.
Porém, a primeira coisa a ser perquirida é se, no nosso ordenamento jurídico, o princípio protetor estaria alicerçado em outras normas, que não estas alteradas pela “reforma trabalhista”.
Embora não se saiba a efetiva intenção do legislador, a “reforma trabalhista”, conduzida da forma como foi, pode ter o efeito de descaracterizar os princípios de Direito do Trabalho, especialmente o princípio protetor, dentro do contexto de desconstrução do valor do trabalho e desmonte de direitos sociais – como se pode observar, na alteração da redação do art.8º, §1º da CLT/17, houve um corte, passando a prever apenas que “o direito comum será́ fonte subsidiária do direito do trabalho”, sem fazer menção expressa que deve haver compatibilidade com os princípios fundamentais deste.
Como hipótese inicial deste trabalho, tem-se que o princípio protetor não poderia ser simplesmente expurgado do ordenamento com uma alteração infraconstitucional, haja vista que encontra assento na Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), bem como pode ser extraído do art.7º, caput, da Constituição, além de ser critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho e está relacionado à dignidade humana (art.1º, III, CF/88) e ao princípio da igualdade (art.5º, caput, CF/88).
A pretensão é compatibilizar a interpretação da CLT/17 com a Constituição Federal de 1988, averiguando a possibilidade de uma interpretação conforme; igualmente, analisar a mudança em face da Constituição da OIT [1]; e, por fim, coteja-la com a principiologia juslaboral.
2.Contexto Histórico
A realidade fática demonstra que a Revolução Industrial (Século XVIII) foi a principal razão econômica para o surgimento do Direito do Trabalho: a descoberta da máquina a vapor e a necessidade de trabalhadores para operarem as máquinas, ensejaram a substituição da mão de obra escrava, servil e corporativa pelo trabalhador assalariado, numa época em que o direito vigorante consistia no Direito Civil, de formação liberal-individualista e sem resposta jurídica adequada ao fato novo da relação empregatícia, exigindo-se do Estado, então, a construção de respostas diferenciadas à mobilização e pressão vindas dos trabalhadores organizados.
Consoante Delgado (2017), seguindo a linha de Granizo e Rothvoss, o desenvolvimento empírico normativo do Direito do Trabalho pode ser sintetizado em três fases: 1) manifestações incipientes ou esparsas – se estende do início do século XIX (1802), com o Peel’s Act inglês, até 1848; 2) sistematização e consolidação – estende-se de 1848 até 1919, tendo como marcos iniciais o “Manifesto Comunista de 1848“ e, na França, os resultados da Revolução de 1848; 3) institucionalização – inicia-se em 1919, avançando ao longo do século XX, destacando-se a Conferência de Berlim (1890) e a Encíclica Católica Rerum Novarum (1891). A essas três fases se acrescenta, hoje, um quarto período, abrangente das últimas décadas do século XX e início do século XXI, marcadas pela criação da OIT (1919) e pelas Constituições do México (1917) e da Alemanha (1919).
São fases que compreendem a existência de uma história social marcada por desigualdade e luta de classes, na qual o trabalhador sempre buscou melhores condições de trabalho, diante do avanço do sistema capitalista.
Nesse diapasão, Nascimento (1997, p.4) explica que “o Direito do Trabalho surgiu como consequência da questão social que foi precedida da Revolução Industrial do século XVIII e da reação humanista que se propôs a garantir ou preservar a dignidade do ser humano ocupado no trabalho das indústrias...”
Ainda, segue afirmando o referido autor: “a expressão questão social não havia sido formulada antes do século XIX, quando os efeitos do capitalismo e as condições da infraestrutura social se fizeram sentir com muita intensidade, acentuando-se um amplo empobrecimento dos trabalhadores...”.
Especialmente no Brasil, Maior (2000) afirma que as relações de trabalho foram marcadas pela repressão de industriais, ex-senhores de escravos, intransigentes a qualquer reivindicação operária.
Seguindo no contexto histórico, Júlio (2003) aponta que, após a ofensiva neoliberal implementada a partir do fim da década de 70, se desenhou um novo quadro do mundo do trabalho, combinando trabalho temporário, subcontratado, infantil, por peça e flexibilizações de direitos trabalhistas – tudo numa nova forma organizacional da indústria que reúne tecnologia ao aumento do potencial da força de trabalho.
Sobre o tema, Antunes (2009) salienta que o ciclo de expansão e vigência do Welfare State se esgotou. E somada a derrota da luta operária pelo controle social da produção, foram dadas as bases sociais e ideopolíticas para a retomada do processo de restruturação do capital, num patamar distinto daquele efetivado pelo taylorismo e fordismo.
Nessa senda, se difundem as ideias neoliberais, pautadas na privatização, terceirização, desregulamentação e flexibilização.
Portanto, nota-se o quanto o Direito do Trabalho é nutrido por fatos históricos que não podem ser ignorados pelo legislador, pois claramente demonstram ser no capitalismo que o hedonismo humano mais se aflora – se inexistem normas obrigatórias para controlar a atuação das empresas, o capital fará de tudo para potencializar seus lucros e proteger seus interesses a custo do bem-estar dos trabalhadores.
Desta forma, para amenizar e controlar os impactos do avanço do sistema capitalista, cabe ao Estado estabelecer os limites, em nome do interesse público, imprimindo seu dirigismo contratual, na tentativa de solucionar o desafio “obtenção de lucro” versus “inexistência de danos à dignidade da pessoa humana” – o que se busca é o equilíbrio social, finalidade mediata do Direito do Trabalho, conforme ensinamentos de Silva (1999).
Nesse sentido, Maior (2000) esclarece que o Direito do Trabalho é fruto da democracia e ao mesmo tempo é decisivo para a preservação de uma sociedade democrática, não podendo a economia influenciar na estruturação do direito.
Ao lado disto, o Direito Laboral também serve para humanizar o trabalho, para que a pessoa humana, nas palavras de Machado Jr (1999), não seja considerada exclusivamente como custo de produção, nem tampouco seja absorvida pelo sistema produtivo, pois o que se está em jogo é a substância humana, cujo salário não é apenas o preço da força de trabalho, mas, sim, o meio de subsistência de um ser humano, a quem a sociedade não pode negar o direito a uma exigência digna.
Vale ressaltar que diante das transformações econômicas e tecnológicas do mundo da produção, surgiu o que se chama de “sofrimento no trabalho”, segundo Trevisan (2002). Ele explica que a expressão foi cunhada por Ruth Yamada Lopes Trigo para se referir ao clima de
sofrimento na empresa, diante da possiblidade de cortes no quadro de pessoal, em razão da agilização dos processos de produção. Assim, o trabalho que oferecia ao ser humano a possiblidade de realização, passa a provocar sofrimento psíquico.
Diante de situações como esta é que o Direito do Trabalho pauta-se pela relativização da autonomia privada, ou seja, mesmo dentro de um sistema jurídico burguês de regras protetoras dos assalariados, historicamente, a autonomia da vontade foi relativizada, no âmbito das relações trabalhistas, mormente diante dos princípios que lhe são inerentes, como a irrenunciabilidade dos direitos e o princípio protetor – registre-se ser este último princípio o fator determinante para intervenção do Estado, com a finalidade de evitar a exploração do trabalhador, em detrimento de sua saúde física e mental.
- Direito do Trabalho: ramo autônomo e com princípios próprios
Nesse ponto, lembro que Direito do trabalho é ramo autônomo, com campo temático específico, teorias e princípios próprios e uma metodologia específica que o diferenciam dos demais ramos, cuja gênese remete à três elementos: 1) reconhecimento da desigualdade fática entre empregado e empregador, 2) impossibilidade de solução de conflitos por meio do Direito Civil; 3) superexploração dos trabalhadores e más condições de trabalho.
Como ramo plasmado por uma carga principiológica especial, seus princípios devem ser observados pelo legislador e intérprete do Direito – nessa senda, importa salientar que a doutrina costuma afirmar que os princípios têm função informadora (de orientação do legislador na confecção das leis), interpretativa (sinaliza o juiz o sentido subjacente do texto legal) e normativa (fonte de integração do direito).
Em relação à importância dos princípios, Nascimento (2005, p.128) assegura que “...são valores que o Direito reconhece como ideias fundamentais do ordenamento jurídico, dos quais as regras jurídicas não devem afastar-se para que possam cumprir adequadamente os seus fins”.
Sobre os princípios do Direito do Trabalho, Silva (1999, p.26) aduz expressamente que “dos princípios fundamentais do Direito do Trabalho é o princípio da proteção o mais relevante e mais geral, dele constituindo os demais simples derivações”.
Acerca do tema, interessante destacar a fundamentação do Enunciado 4, aprovado na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho e divulgado pela Anamatra no dia 19/10/17[2], referente ao título “HERMENÊUTICA TRABALHISTA”:
Fundamentação: O compromisso, o que está no princípio do Direito do Trabalho, é a proteção a quem trabalha, para o efeito de estabelecer a exploração possível, ou seja, um conjunto mínimo de normas que permitam que o trabalho continue sendo explorado pelo capital, mas dentro de certos parâmetros considerados aceitáveis. Daí porque na origem das normas tipicamente trabalhistas encontramos a força organizada dos trabalhadores, que pressionaram e arrancaram conquistas sociais, contra a vontade do capital, mas também encontramos a necessidade da sociedade (de dar conta do número expressivo de trabalhadores mutilados ou doentes) e a necessidade do próprio capital (de ter consumidores). O art. 8º da CLT mantém sua redação atual, dispondo ao final que as fontes formais, dentre as quais os princípios, devem ser aplicadas "sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público”. O Direito do Trabalho rompe com a lógica do direito comum ao potencializar a conduta dos atores sociais na formação de direitos que visem à melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Sempre na perspectiva da proteção (seu princípio fundamental) o Direito do Trabalho atribui maior relevância ao que se passa no plano dos fatos, em detrimento da forma. Por isso mesmo, não faz nenhum sentido aplicar ao Direito do Trabalho a técnica desenvolvida em um raciocínio jurídico que esse novo direito se propõe a superar. Se tentarmos compreender o Direito do Trabalho com a racionalidade do direito comum, ele perderá sentido. Essa perda de sentido será tanto maior, sob a perspectiva trabalhista, quanto a sujeição a essa técnica cientificista servir para diminuir os direitos sociais que compõem o Direito do Trabalho. O Direito do Trabalho aparece no contexto dessa lógica capitalista como o limite da exploração possível, daí a razão pela qual em seu princípio instituidor encontramos a proteção a quem trabalha. Como ensina Warat, o discurso jurídico tem sempre um potencial subversivo, que atua como renúncia, resistência e crítica, exatamente como devem atuar as normas trabalhistas, reforçando sua “autonomia” em relação ao Direito Civil, exatamente para produzir “rachaduras” que permitam não apenas o reconhecimento da “questão social” que está por trás das fórmulas jurídicas, mas também toda a perversidade que tais fórmulas permitem seja reproduzida na realidade cotidiana da vida dos trabalhadores e trabalhadoras. Então, precisamos nos afastar da compreensão de princípio como espécie de norma jurídica, que ao lado das regras, pode ser aplicado diretamente, para retomar o conceito clássico de princípio como o que está no início de determinado conjunto de regras e deve atuar como fundamento para a aplicação ou o afastamento da regra.
Em contraposição, Romita (2002) afirma que o princípio da proteção não justifica a autonomia científica do Direito do Trabalho, porque este se assenta sobre um só́ princípio, o da liberdade de trabalho. Além disto, defende que não constitui função do Direito – de qualquer dos ramos do Direito – proteger algum dos sujeitos de dada relação social, pois a sua função é regular a relação em busca da realização do ideal de justiça. Assim, advoga a tese de que o Direito do Trabalho, como ramo do Direito que é, não pode proteger o empregado.
O nobre doutrinador parece ser posição minoritária, pois a doutrina costuma reconhecer a existência do princípio protetor como pressuposto à própria essência do Direito do Trabalho e fator preponderante no cumprimento de suas funções.
Desta forma, ao afirmar que o Direito do Trabalho não tem a função de proteger a parte hipossuficiente da relação, ele nega a gênese deste ramo e a sua própria razão de existir. Além disso, não se pode falar de liberdade de trabalho quando se está em jogo, à parte da disparidade entre contratantes, um posto de trabalho que será essencial à manutenção do trabalhador e de sua família.
Como explica Díaz (2005), entre as profundas transformações socioeconômicas ocorridas durante as últimas décadas, destaca-se a consolidação de um espaço econômico mundial, globalizado e excludente, que culmina num processo secular marcado pela expansão constante das relações capitalistas, caracterizado, atualmente, pela crescente robotização e informatização de amplos setores econômicos e produtivos, com redução de empregos e da proteção dos trabalhadores, além de elevada precarização do emprego, num conjunto de desamparo de pessoas que se veem obrigadas a buscar, por seus próprios meios, um modo de gerar renda que lhes permita subsistir – tudo isso provoca ampliação do setor informal da economia.
Ademais, conforme lições de Sweezy (1977), a divisão internacional do trabalho assumiu uma forma de padrão de desenvolvimento e subdesenvolvimento que nem Marx previu, dividindo a humanidade entre possuidores e despossuídos, numa escala muito mais ampla e profunda do que a ruptura burguesia/proletariado.
Este contexto só corrobora a ideia de proteção ao trabalho e ao trabalhador. Sobre o tema, Sarlet (2013) menciona que o direito à proteção do trabalho e do trabalhador se decompõe em um leque de normas atributivas de direitos, liberdades e garantias do trabalhador, bem como por meio de princípios e regras de cunho organizacional e procedimental, como é o caso do salario mínimo, da garantia de determinada duração da jornada, proibição de discriminação, liberdade sindical e direito de greve, que, no seu conjunto, asseguram direitos ao trabalhador em mínimas condições dignas.
- Princípio da proteção: importância e previsão no ordenamento jurídico
Nesse sentido, importa registrar que Arnaldo Sussekind (2002), citando Deveali, expõe que a necessidade de proteção social aos trabalhadores constitui a raiz sociológica do Direito do Trabalho e é imanente a todo o seu sistema, aduzindo, ao fazer referência a Kaskel, que as normas jurídicas públicas e privadas coexistem, ambas baseadas no princípio protetor do direito social como ponto de partida e como elemento diretor para o desenvolvimento e interpretação.
Para ele, o princípio da proteção do trabalhador resulta da própria imperatividade das normas, que caracterizam a intervenção do Estado nas relações de trabalho, visando opor obstáculos à autonomia da vontade.
Na mesma linha, Bento Herculano (1998), citando Plá Rodriguez, reconhece que o princípio da proteção é critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho, ou seja, está ligado à sua própria razão de ser.
Por ser a essência do Direito do Trabalho, o Enunciado 4 sobre o título “FUNDAMENTOS, PRINCÍPIOS E HERMENÊUTICA DO DIREITO DO TRABALHO”,
aprovado na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, explicitamente estabeleceu que a Lei nº 13.467/2017 não afetou os fundamentos do Direito do Trabalho positivados na CLT, como o princípio da proteção. Valoroso transcrever a ementa do enunciado:
A LEI 13.467/2017, DA REFORMA TRABALHISTA, NÃO AFETOU OS FUNDAMENTOS DO DIREITO DO TRABALHO POSITIVADOS NA CLT (ART. 8º), BEM COMO OS PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO (TÍTULOS II A IV), DA PRIMAZIA DA REALIDADE (ARTS. 3º E 442), DA IRRENUNCIABILIDADE (ARTS. 9º E 468), DA NORMA MAIS FAVORÁVEL, DA IMODIFICABILIDADE CONTRATUAL EM PREJUÍZO DO TRABALHADOR (ART. 468), DA SUPREMACIA DO CRÉDITO TRABALHISTA (ARTS. 100 DA CF E 186 DO CTN) E DOS PODERES INQUISITÓRIOS DO JUIZ DO TRABALHO (ART. 765), DENTRE OUTROS, CUJA OBSERVÂNCIA É REQUISITO PARA A VALIDADE DA NORMA JURÍDICA TRABALHISTA.
Inclusive, na justificativa do reproduzido enunciado, o item 3 destaca:
Integram o plexo do sistema normativo do trabalho normas de hierarquias múltiplas, como a Constituição, as Convenções Internacionais do Trabalho, as leis, as normas de origem profissional e as sentenças normativas. Em virtude de as normas trabalhistas conferirem um mínimo de direitos, por funcionalidade do princípio da proteção, deve prevalecer a norma mais favorável.
Machado Jr (1999), referenciando Américo Plá, afirma que a proteção jurídica favorável é para compensar a desigualdade econômica. E, mencionando José Augusto Rodriguez Pinto, aduz que a igualdade, preconizada pelo Direito Comum para os sujeitos das relações jurídicas, tornar-se-ia utópica em virtude da deformação que o poder econômico de um provocaria na manifestação de vontade do outro. Assim, firmou-se o preceito fundamental que dá o traço mais vivo do Direito do Trabalho: o amparo da debilidade econômica do empregado com a proteção jurídica favorável.
Desta forma, o princípio da proteção é corolário da isonomia, princípio constitucional, previsto no artigo 5º, caput, que se configura como pilar de sustentação de qualquer Estado Democrático de Direito.
Além disso, o princípio da proteção está diretamente unido à proteção ao trabalho, que se vincula ao princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, CF) – ideia divulgada por Arruda (1998) ao afirmar:
ao analisar o texto constitucional vigente, observa-se que não há uma expressão escrita do “princípio da proteção ao trabalho”, embora faça parte do conjunto de normas que garantem o direito do trabalho , tais como sua definição como direito social (art.6º); a contextualização como econômico (art.170); a disposição de que a ordem social tem como base o primado do trabalho (art.193), o que conduz a uma princípio maior e mais amplo, que acaba por fundamentar todas as normas, aqui explicitadas, servindo de “mandamento nucelar de um sistema”, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Decorrentes do princípio da proteção, temos: a) norma mais favorável; b) condição mais benéfica; c) in dubio pro operário.
Especificamente sobre o princípio da norma mais favorável, Nascimento (1970) garante que ele atua como postulado inspirador que encontra a sua expressão no ordenamento jurídico em geral.
Nesse diapasão, Silva (1999) coloca o princípio da norma mais favorável como o de maior amplitude, em termo de proteção, atribuindo-lhe, ao citar Mozart Victor Russomano, importância solar, devido à sua capacidade de por em movimento toda a estrutura social. E, finalizando o raciocínio, cita Yves Chalaron ao escrever que o princípio da norma mais favorável é a alma do Direito do Trabalho.
Outrossim, Litholdo (2013) bem esclarece que os princípios são os guardiões dos direitos trabalhistas e, embora haja alteração ou revogação de leis, garantem toda a essência do ordenamento jurídico trabalhista. Afirma ainda que eles são o ponto mais forte para coroar as conquistas sociais, a fim de afastar artifícios que podem macular direitos positivados.
Nessa senda, não se pode atribuir caráter subsidiário aos princípios trabalhistas, quando se interpreta o art.8º, caput, da CLT/17, pois violaria a própria essência do Direito do Trabalho e a ideia de que o princípio atesta a noção de proposição fundamental que reflete os valores supremos da sociedade.
Nesse passo, registre-se que a alteração realizada no art.8º, §1º da CLT/17, nas palavras do professor Silva (2017, p.25), “é quase inócua, porque, de fato, não se pode partir para a aplicação subsidiária em substratos ou contextos diferentes daqueles que norteiam o direito do trabalho, ramo jurídico que lida com relações essencialmente assimétricas”.
No mesmo sentido, Maranhão (2017) afirma que aplicar normas incompatíveis com os princípios do Direito do Trabalho, como parece autorizar a nova redação do art.8º, §1º da CLT/17, não é uma interpretação possível. Ademais, a regra do parágrafo deve ser interpretada em consonância com o caput, que não sofreu alteração e traz em seu bojo os princípios do Direito do Trabalho como elemento para suprir lacunas.
Especialmente sobre o assunto, o Enunciado 4, referente ao título “FUNDAMENTOS, PRINCÍPIOS E HERMENÊUTICA DO DIREITO DO TRABALHO. LEI 13.467/2017”, tem a seguinte redação:
A LEI 13.467/2017, DA REFORMA TRABALHISTA, NÃO AFETOU OS FUNDAMENTOS DO DIREITO DO TRABALHO POSITIVADOS NA CLT (ART. 8º), BEM COMO OS PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO (TÍTULOS II A IV), DA PRIMAZIA DA REALIDADE (ARTS. 3º E 442), DA IRRENUNCIABILIDADE (ARTS. 9º E 468), DA NORMA MAIS FAVORÁVEL, DA IMODIFICABILIDADE CONTRATUAL EM PREJUÍZO DO
TRABALHADOR (ART. 468), DA SUPREMACIA DO CRÉDITO TRABALHISTA (ARTS. 100 DA CF E 186 DO CTN) E DOS PODERES INQUISITÓRIOS DO JUIZ DO TRABALHO (ART. 765), DENTRE OUTROS, CUJA OBSERVÂNCIA É REQUISITO PARA A VALIDADE DA NORMA JURÍDICA TRABALHISTA.
Além disso, quando as regras não alcançarem os princípios basilares e norteadores do Direito do Trabalho, dando-lhes dinamismo, deverão ser afastadas, segundo lições de Litholdo (2013), pois o ideal de justiça trabalhista não pode ser atingido sem a incidência dos princípios, uma vez que neles estão previstas as garantias e institutos que compensam uma eventual desigualdade social e econômica entre os sujeitos.
Em relação aos princípios, o conceito de norma jurídica e a distinção entre duas de suas espécies (regras e princípios) ganhou força na discussão, em teoria do Direito, com as obras de Ronald Dworkin e Robert Alexy. No caso deste último, a contribuição decisiva foi ter desenvolvido a tese dos princípios como mandamentos de otimização.
Nesse ponto, explica Pedroso (2005) que os princípios constituem base de toda a construção jurídica e que as regras não poderiam ser promulgadas senão em consonância com os princípios gerais. Ainda, aduz que as regra se submetem aos princípios e deles são derivadas.
Sobre os princípios do Direito do Trabalho, Américo Plá Rodriguez (2015, p.11), citando Gerard Lyon-Caen, afirma que:
...o futuro da doutrina no Direito do Trabalho está ligado à busca de conceitos-chave que expliquem várias decisões aparentemente desconexas entre si e que servirão para justificar outras. Melhor ainda: à busca de diretrizes latentes, nem sempre expressas nos textos normativos nem nas sentenças, que só podem ser lidas nas entrelinhas e constituem uma espécie de direito não dito. Esses são os princípios do Direito do Trabalho
Especificamente sobre o princípio da norma mais benéfica, Silva (1999) lista pressupostos para a sua aplicação: a) pluralidade de normas; b) validade das normas em confronto, que não devem padecer de vícios de inconstitucionalidade ou ilegalidade; c) aplicabilidade das normas concorrentes ao caso concreto; d) colisão entre aquelas normas; e) maior favorabilidade para o trabalhador, de uma das normas em cotejo.
Assim, diante da presença de tais pressupostos, é possível aplicar o referido princípio, mesmo que não haja autorização legal expressa na legislação laboral – na oportunidade, aproveitando-me das lições de Silva (1999), cito dois países, França e Itália, onde não há preceito legal expresso sobre o princípio da norma mais favorável, mas que a doutrina aplica e a jurisprudência observa, pois o referido princípio subsiste na Constituição
da OIT3. Fato este que só corrobora o conceito de princípio da norma mais favorável como informador do Direito do Trabalho.
Considerando o raciocínio acima, destaco que, segundo Mazzuoli (2015, p.1116), a OIT foi constituída pelo Tratado de Versailles (Parte XIII), em 1919. No entanto, em 1946, na 29ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Montreal, Canadá, aprovou-se o texto hoje em vigor da Constituição da OIT, em substituição ao texto original adotado em 1919 e emendado em 1922, 1934 e 1945.
Dessa forma, para os países signatários da OIT, a Constituição tem natureza jurídica de Tratado. E, no caso do Brasil, vale ressaltar que houve ratificação do instrumento de emenda da Constituição da OIT em 13 de abril de 1948, conforme Decreto de Promulgação n. 25.696, de 20 de outubro de 1948.
Se a Constituição da OIT tem natureza jurídica de Tratado4 e aborda matéria de direitos humanos, conforme entendimento do STF5, tem natureza supralegal. Em assim sendo, a Lei 13.467/17 tem o dever de observá-lo.
Outro fundamento que se pode apontar, em relação à conservação do princípio da proteção e da norma mais favorável, é um argumento de cunho constitucional. Nesse sentido, Leonardo de Gênova (2009), citando Amauri Mascaro, afirma que o fundamento está no art.7º, caput, da CF, ao preceituar garantias mínimas aos trabalhadores.
Assim, por exemplo, as normas expostas nos arts.611-A e 620 da CLT/17 devem obedecer ao comando constitucional. E, num conflito entre um princípio constitucional e uma regra, que não tem como objetivo proteger outro princípio constitucional, o princípio prevalece, face à interpretação conforme à constituição.
Por fim, diante de todos os argumentos expostos e por meio da interpretação conforme à Constituição da República (art.3º, III, art.7º, caput) e em consonância com a Constituição da OIT, não se pode examinar os artigos alterados pela Lei 13.467/2017 de modo a entender que eles obliteram a incidência do princípio protetor e da norma mais favorável, mas ao contrário, deve-se compreendê-lo pelo viés do mandamento nuclear mais
3 A Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seu artigo 19, 8, consubstancia a regra da norma mais favorável, quando em referência à ratificação de suas convenções determina: “Em nenhum caso de poderá admitir que a adoção de uma convenção ou de uma recomendação pela Conferência Internacional do Trabalho, ou a ratificação de uma convenção por qualquer membro torne sem efeito qualquer lei, sentença, costume ou acordo que garanta aos trabalhadores condições mais favoráveis que as que configuram na convenção ou na recomendação”.
4 Husek (2011, p.97) considera que as Organizações Internacionais são constituídas por Tratados.
5 RE 466.343-1 (Relatoria do Ministro Cezar Peluso) e do HC n. 87.585-TO (Relatoria do Ministro Marco Aurélio). Neste último, o Ministro Gilmar Mendes conduziu voto que hoje representa o posicionamento do STF, no sentido de atribuir a qualidade de norma supralegal aos tratados de direitos humanos.
essencial do Direito do Trabalho, que é o princípio protetor, a fim de se atender aos fins sociais e às exigências do bem comum (art. 5o, LINDB).
5.Considerações finais
Após promulgação da Lei 13.467/17, especialmente em razão da redação dos artigos 611-A e 620 da CLT/17, foram diversas as afirmações de que os mencionados artigos sepultaram o princípio protetor e o princípio da norma mais favorável.
Diante deste quadro, o intérprete deve considerar a conservação dos referidos princípios, em três vertentes: 1) por ser mandamento nuclear e essencial à existência do Direito do Trabalho, consubstanciado no art.8º, caput, da CLT; 2) por decorrer de Tratado incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro com status supralegal (controle de convencionalidade); 3) por decorrer da Constituição Federal, notadamente o art.7º, caput, da CF/88, aplicando-se aos artigos alterados pela Lei 13.467/2017 uma interpretação conforme.
Desta forma, será possível: a) averiguar que a aplicação do negociado sobre o legislado não pode ofender ou anular a incidência do princípio protetor; b) interpretar sistematicamente o ordenamento jurídico e concluir que o princípio da norma mais favorável ao trabalhador segue impondo ao intérprete, no caso de conflito entre duas ou mais normas jurídicas de Direito do Trabalho vigentes e aplicáveis à mesma situação jurídica, a necessidade de aplicação da norma mais vantajosa ao trabalhador, mesmo diante de redações como a do art.620 da CLT/17; c) concluir que é incompatível com a sistemática do Direito do Trabalho a ausência do princípio protetor; d) extrair das alterações provocadas pela Lei 13.467/2017 que o princípio continua existindo e deve ser observado, diante da Constituição da OIT; e) dar interpretação conforme à constituição e concluir que a dimensão protetiva não acabou.
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[1] 1 O Brasil ratificou o instrumento de emenda da Constituição da OIT em 13 de abril de 1948, conforme Decreto de Promulgação n. 25.696, de 20 de outubro de 1948.
[2] A Anamatra divulgou 125 enunciados aprovados (58 aglutinados e 67 individuais) sobre a interpretação e aplicação da Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista), decorrentes de propostas debatidas e aprovadas na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho.