Resumo: Este trabalho apresenta um estudo sobre o contrato de doação com encargo. Para tanto, expõe uma ratificação da sua natureza contratual e obrigacional, se concretizando, assim, como um “titulus adquirendi”. Destarte, destaca as características do contrato de Doação, individualizando a Doação com Encargo e suas divergências doutrinárias que giram, principalmente, em torno de seu elemento subjetivo. Explora, ainda, a questão sobre a revogação dos contratos de doação com encargo quanto a sua inexecução.
Palavras-chaves: Contrato. Doação. Animus Donandi. Doação com Encargo.
Introdução
A Doação, conceituada no Código Civil no artigo 538 como “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. Seguindo assim o legislador do Código de 1916 ao preceituar a Doação como um contrato, diferindo, no entanto, em relação à expressa aceitação, pois no código pretérito prescindia de expressa aceitação por parte do donatário (parte passiva da relação contratual).
Como um instrumento contratual, a doação exige a intervenção de duas partes, cujas vontades hão de se completar para aperfeiçoar o negócio jurídico. (GONÇALVES, 2017). Maria Helena Diniz, por sua vez, ratifica a natureza contratual da doação tendo em vista que a doação “gera apenas direitos pessoais, não sendo idônea a transferir a propriedade do bem doado”. (DINIZ, 2014).
Na legislação pátria a Doação é entendida como um negócio jurídico de caráter obrigacional, sendo este apenas um meio ou, para alguns autores, um “titulus adquirendi” para exigibilidade do cumprimento da obrigação. Conquanto, o artigo 538 do Código Civil utiliza-se da expressão “transfere” ocasionando uma dicotomia sobre a ideia obrigacional da Doação, visto que os únicos meios para transferência de bens admitidos no Código Civil brasileiro seriam tradição, em relação aos bens móveis, e transcrição ou registro, para os bens imóveis.
O autor Agostinho Alvim, já dissertava sobre essa oposição desde código ora revogado, afirmando que,
(...) não se segue daí, como à primeira vista possa parecer, que pela doação se transfere a propriedade da coisa. A viga mestra do sistema brasileiro nesta matéria art. 620, que exige a tradição para a transferência do domínio, com a explicita declaração de que pelos contratos não se transferem. E seria incompreensível que o legislador, depois de haver orientado por esta maneira a transferência do domínio, infringisse o sistema, sem razão plausível, em matéria de doação. O que houve foi uma expressão menos feliz, conquanto haja para ela explicação.
Orlando Gomes, citado por Carlos Roberto Gonçalves, segue o entendimento de Alvim, explana que,
Se a doação é um contrato em que uma pessoa por liberalidade, transfere de seu patrimônio bens ou vantagens para o de outrem, que os aceita, poder-se-ia a falta impressão de que, pelo contrato, se transfere a propriedade dos bens doados, mas na realidade não produz esse efeito. A propriedade do bem doado somente se transmite pela tradição, se móvel, ou pela transcrição, se imóvel. O contrato é apenas o título, a causa de transferência, não bastando, por si só, para opera-la. Nesse sentido é que se diz ser a doação contrato translativo de domínio.
Corroborando com esse entendimento o autor Silvio Venosa, “apesar de a lei expressar que o contrato de doação “transfere” o patrimônio, não existe exceção ao sistema geral, consoante o qual a transcrição imobiliária e a tradição é que são meios de aquisição de propriedade. ”
1. Contrato de Doação
Doação é um negócio jurídico, formal ou solene, unilateral e gratuito, sendo um contrato benéfico por excelência. O artigo 541 do Código Civil estabelece que a doação porta a necessidade de instrumento público em relação aos bens imóveis ou particular em relação aos bens móveis, só sendo possível se utilizar da forma verbal quando a doação versa de bens móveis de pequeno valor, de acordo com o parágrafo único do mesmo artigo. De acordo com Ascoli, citado por Alvim, “o rigor da forma, em se tratando de doação, tem raízes antiquíssimas, pois vem da Lei Cincia (...)” (Alvim, 1972).
Sobre esse entendimento, Sílvio Venosa discorre que não será necessária a utilização de instrumento público para bens imóveis quando o valor for abaixo do mínimo fixado, observado o disposto no artigo 108 do Código Civil. A utilização do instrumento particular por sua vez se faz indispensável quando o valor do bem móvel compara-se com a fortuna do doador, enquanto a modalidade verbal é permitida nas hipóteses de bens móveis de pequeno valor, em comparação aos bens do doador, “desde que a tradição se lhe siga imediatamente”.
Para Agostinho Alvim, tal razão de formalidade justifica-se, pois,
A razão por que a doação exige forma em que tal contrato vai de encontro ai instituto de egoísmo, visto acarretar empobrecimento, sem nenhuma compensação de ordem econômica. Por isso mesmo, o doador está mais sujeito à coação e à seduções de várias ordens; outras vezes, o vexame de negar ou oprimi; também pode acontecer que obedeça a um impulso de momento, que o leve à prática de um ato de liberalidade, do qual breve se arrependerá.
Formais são os contratos o quais são determinados em lei, portanto se não obedecer a forma prescrita em lei há o desprovimento de efeitos.
É um contrato unilateral, pressupondo um acordo de vontade entre as partes, criando obrigações apenas para um polo do negócio jurídico. Dessa forma, o artigo de número 392 do Código Civil
Nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveita, e por dolo aquele a quem não favoreça; nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas na lei.
Como já supramencionado, a Doação é um contrato gratuito, visto que traz o aumento de patrimônio para uma das partes, tal ato constituído por liberalidade do doador ao donatário. Esta liberalidade que está ínsita ao contrato, com a redução de patrimônio de uma das partes, em benefício da outra, cujo o patrimônio se enriquece. (VENOSA,2018)
A Doação é composta por dois elementos, um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo importa na transferência patrimonial que acarreta na diminuição do patrimônio do doador e o enriquecimento do donatário. O elemento subjetivo por sua vez diz respeito a manifestação da vontade do doador de praticar tal ato de liberalidade, denominado de animus donandi.
O animus donandi, como supracitado, é a forma de exteriorização da liberalidade para configuração da doação, tendo por finalidade a transferência do domínio. Para Silvio Venosa, muitos atos de liberalidade não constituem doação por lhes faltar precípua intenção de doar.
Existem entendimentos doutrinários difusos acerta da necessidade do animus donandi para configurar a existência da doação, de acordo com Carlos Roberto Gonçalves a liberalidade “é elemento essencial para configuração da doação, tendo o significado de ação desinteressada de dar a outrem, sem estar obrigado, parte do próprio patrimônio”. Destarte, Agostinho Alvim contrapõe-se afirmando que, “(...) a vontade de bem-fazer, possa não existir interiormente em certos casos; e poderá até mesmo ocorrer que nem mesmo na aparência haja esse ânimo”. Visto que, esse pensamento é baseado a partir de exemplos como na hipótese da doação para um parente que está mal financeiramente. Dessa forma, ainda nesta doutrina, a verdadeira da característica da doação se encontra na gratuidade e não na liberalidade.
Diferentemente da compreensão de animus donandi, os motivos pelos quais levou a praticar do ato de doação são irrelevantes para o direito brasileiro, sempre haverá um motivo apartado do mundo jurídico. Assim como aponta Sílvio Venosa, “motivo, portanto, não se confunde com animus donandi”.
É válido mencionar que, doação é um ato inter vivos, visto que o atual ordenamento jurídico, diferentemente do código pretérito, não admite doação causa mortis, em face da impossibilidade de revogar a liberalidade (GONÇALVES, 2017).
2. Contrato de Doação com Encargo
Não há um consenso acerca do conceito de encargo, visto que não dispõe de uma definição legal no código. Contudo, Clóvis citado por Alvim, conceitua encargo como sendo “(...) a determinação acessória em virtude da qual se restringe a vantagem criada pelo ato jurídico, estabelecendo o fim, a que deve ser aplicada a coisa adquirida, ou impondo uma certa prestação”.
Dessa forma, a Doação com encargo pode ser entendida como um ato de liberalidade acompanhada de incumbência atribuída ao donatário, em favor do doador ou de terceiros, ou no interesse geral, conforme o artigo 553 do Código Civil. Compreende-se doação com encargo, portanto, a doação de uma terra, impondo-se ao donatário a obrigação de construir uma escola, outro exemplo seria o utilizado por Agostinho Alvim em sua obra que é
(...) dou-te tal casa, que não poderá ser usada deste ou daquele modo, não haverá aí, tècnicamente, limitação de poder, embora cerceie o uso da coisa: haverá sim a imposição de uma obrigação negativa ou positiva, que, como obrigação que é, caracteriza o encargo. (Grifos nossos)
Pontes de Miranda, conforme citado por Alvim, ressalta importância de não confundir encargo com limitação de poder, entendendo que “a restrição ao uso da coisa é encargo, mas não deverá prescrever o uso a que ela se destina, senão parcialmente.
É imprescindível que haja uma interação entre a doação, ato de liberalidade e o encargo imposto, devido a ideia de que o encargo é um acessório de tal ato. Não ocorrendo essa vinculação não há a caracterização do encargo se tornando negócios jurídicos independentes.
A doutrina se divide quanto à ideia de onerosidade e gratuidade quando se fala em doação modal. Para Sílvio Venosa, a doação sempre será um contrato gratuito, independentemente de encargo, atentando quanto a não constituição desse encargo em uma contraprestação, pois sendo assim deixaria de existir um contrato de doação. De modo contrário, dispõe Carlos Alberto Gonçalves, afirmando que o encargo atribuído a doação tira dela o caráter de gratuidade, de tal forma que a doação com encargo é uma doação onerosa. Agostinho Alvim, por sua vez tem um entendimento mais razoável, expondo que, “O encargo tem seu próprio campo nos negócios gratuitos, que êle, em parte, transforma em negócio onerosos. Mas embora doação com encargo seja, nesta parte, contrato oneroso, não é para todos os efeitos” (grifos nossos).
Outrossim, há divergências acerca da liberalidade relacionada a doação com encargo, pois autores como Agostinho Alvim entende que, “(...) o certo é que, embora sujeita a encargo, a doação não perde o caráter predominante da liberalidade”, tal pensamento ratificado por Sílvio Venosa que, “a aposição de encargo não faz o negócio desviar-se da liberalidade”. Não obstante, Maria Helena Diniz refuta que,
Faltará o espírito de liberalidade se o autor do benefício agir no cumprimento de uma obrigação ou para preencher uma condição ou um encargo de disposição que lhe tenha sido imposto, ou, ainda, no cumprimento de um dever moral ou social, ditado por imperativos de justiça, hipóteses em que se terá o cumprimento de uma obrigação natural, cujo regime jurídico se afasta do da doação.
A eficácia da incumbência se inicia com a aceitação da doação, seja ela tácita ou expressa, caso não haja estipulação em contrário. Não obstante, na hipótese de descumprimento posterior ao início da eficácia de tal incumbência acarretará em condição resolutória. Dessa forma, Savigny citado por Alvim, “considera que o não-cumprimento do encargo, por parte do donatário enseja a revogação total da doação, e não somente na parte correspondente ao encargo” (grifos nossos).
De forma avessa, a não estipulação de prazo para o cumprimento do encargo provocará a constituição do donatário em mora antes de proceder com a revogação por inadimplemento, salvo a hipótese do artigo de número 553 do código civil.
3. Revogação
Assim como preceitua o legislador no artigo de número 555, a doação só poderá ser revogada nos casos de ingratidão do donatário, ou por inexecução do encargo. Não se operando pela simples vontade do doador (GONÇALVES, 2017).
O instituto da revogação, como regra, é admitido sempre enquanto o donatário não aceitar tácita ou expressamente. Após a aceitação, a revogação unilateral pelo doador ainda é impossível, salvo os casos ressalvados em lei, entretanto, só poderá ser requerida em juízo, visto que é uma ação intuitu personae. Essa, no entanto, é a regra geral para todas as doações.
Para Maria Helena Diniz, a revogação de doação com encargo não poderá ser revogada, desde que o encargo já tenha sido cumprido. Na hipótese de não cumprimento do encargo, poderá ser revogada, desde que o donatário incorra em mora. Não havendo ajuste de prazo para o cumprimento do encargo, o donatário notificara judicialmente o donatário, dando-lhe prazo razoável para o cumprimento do encargo, a fim de evitar a revogação do contrato de doação (562, CC). “Se o donatário estiver em mora, não cumprindo o encargo que lhe foi imposto, o doador poderá reclamar a restituição da coisa doada, porém o donatário não será responsabilizado por perdas e danos.”
O legislador prevê que a doação poderá ser devida “em benefício do doador, de terceiro ou do interesse geral.” Estes possuem genuíno direito de pleitear o cumprimento do encargo, em caso de morte do doador.
A revogação por não cumprimento do encargo, portanto, produz efeitos ex tunc, como se a doação não tivesse ocorrido, atingindo, inclusive, a terceiros adquirentes (ALVIM, 1972). Logo, os terceiros que adquirirem a coisa doada ao donatário não se eximem da devolução da coisa adquirida. Todavia, Agostinho Alvim e outros civilistas, acreditam que o terceiro adquirente pode “excepcionar contra o pedido, prontificando-se a cumprir o encargo”, ressalvados os casos em que a obrigação intuiti personae.
Agostinho Alvim preceitua que
Embora o não cumprimento do encargo, uma vez decretado, opere retroativamente, como condição resolutiva, dele difere, entretanto, porque esta acarreta a resolução pela realização do evento; enquanto a revogação por inadimplemento do encargo tem que ser pedida pelo interessado.
Carlos Roberto Gonçalves, preceitua que a revogação da doação atinge a coisa doada como um todo, não havendo distinção entre a parte doada por liberalidade da parte, entendida pelo referido autor, como negócio oneroso. Diferindo, ainda, acerca da divisibilidade do encargo:
Se vários forem os donatários, e indivisível o encargo, o inadimplemento será considerado total, e assim a revogação, mesmo que somente um deles não o tenha cumprido. Se o ônus é divisível, (...) não é justo que a revogação alcance a todos, devendo ser excluídos os que cumpriram, bem como aqueles que o doador quiser perdoar a falta. Se a pluralidade for de doadores e houver um só donatário, pode ocorrer que, não cumprido o encargo, uns queiram revogar a doação e outros não. Tal direito é divisível. Mas os eu quiserem revogar só poderão pretender as suas respectivas quotas, e não a coisa.
Referências
ALVIM, Agostinho. Da Doação. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1972.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro Contratos e Atos Unilaterais. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2017
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 30 ed. São Paulo: Saraiva, 2014
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil Contratos. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2018