A transformação do estado social no estado penal

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14/08/2018 às 10:50
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O artigo possui como objeto de análise o Welfare State, nos Estados Unidos, e seu desmonte no final do século XX, ao mesmo tempo em que ocorre uma série de transformações na legislação criminal e na política carcerária americana, a partir dos estudos de L. Wacquant.

INTRODUÇÃO

Muito se diz sobre a criminalidade e como revertê-la na atualidade, assunto que consta indispensavelmente nas pautas de discussão de diversos países que procuram encontrar soluções, muitas vezes pela criação de novas punições como uma tentativa de atingir sua redução. Os países estão cada vez mais intensificando seus gastos com o sistema prisional e aumentando sua massa carcerária como instrumentos ou políticas voltadas ao controle e redução de seus índices.

Um país considerado como modelo por seu sistema prisional são os Estados Unidos, que vêm servindo como referência a países europeus e latino-americanos. Porém, a realidade difere do que é estampado diariamente pela mídia e utilizado em campanhas político-partidárias, que se apoiam no discurso sobre a segurança e a necessidade de intensificação de políticas penais. As transformações configuradas pela burocratização do sistema carcerário e a privatização dos serviços, evidencia, entretanto, que a população carcerária cresce juntamente com as desigualdades sociais e a pobreza.

Com o estado social em crise pelo questionamento dos fundamentos e efeitos do Welfare State, o estado penal encontrou espaço para consolidar-se e tornou-se símbolo do novo modelo de gestão da criminalidade, em que os princípios da igualdade e bem estar são sopesados com o da punibilidade, sendo que o último se sobrepõe sobre os outros.

Esse trabalho procura sintetizar a realidade prisional norte americana e sua influência sobre o resto do mundo, de maneira que ocorra uma descaracterização da imagem presente no imaginário da população entorno desse sistema, apresentando as consequências reais desse modelo opressor e descomprometido com os indivíduos marginalizados dentro da sociedade. No Brasil, por exemplo, a massa carcerária está se expandindo de forma extraordinária e assustadora, tendo por motivo a ausência de políticas sociais efetivas e a carência de investimentos na educação.

Dados coletados, seja no sistema carcerário americano como no brasileiro, mostram a forte e clara discriminação racial como resíduo do período de escravidão, que demonstra a desigualdade eminente e a diferenças de oportunidades apresentadas para esse grupo marginalizado pela sociedade. Os agressores sexuais também são alvos dessa nova forma de estado, o que será analisado resumidamente durante o artigo.


A SUBSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL PELO ESTADO PENAL

Os Estados Unidos possuem uma história repleta de conquistas e méritos surpreendentes, o que os colocam como um exemplo para os outros países que se espelham em suas políticas e transformações. Com um exército composto por 1,4 milhão de soldados e um orçamento que gira em torno de 577 bilhões de dólares[1], podemos encontrá-lo em 1º lugar no ranking de maior potência militar do mundo. Ocupam essa posição também dentre outro ranking que não é tão interessante assim: o de maior população carcerária. Possuindo 2,24 milhões de indivíduos encarcerados, o que representa 716 para cada 100 mil habitantes[2], pode-se constatar que esse número é superior ao exercito americano, o que o torna mais espantoso.

Os Estados Unidos apresentaram mudanças significativas em suas políticas nos últimos 40 anos, o que acarretou esse aumento hiperbólico de presidiários, havendo uma substituição do estado assistencial pelo estado punitivo. Os programas sociais, que buscavam reduzir as desigualdades e reduzir a pobreza, foram deixados de lado e tiveram seus orçamentos revertidos para as novas e inovadoras transformações do estado penal.

Os programas assistenciais não logravam êxito em suprir as reais necessidades dos indivíduos. Porém mesmo sendo uma forma irrisória de ajuda, foram uma maneira de o governo compensar a falta de um modelo estatal de suporte para educação e saúde, e uma tentativa de reduzir as desigualdades criadas pelo próprio sistema. Mas o governo passou a acolher um novo discurso, embasado em ideias proclamadas pela mídia juntamente com a população de classe media, que passou a enxergar nesses programas sociais uma dependência dos assistidos por tais. Assim, passou-se a disseminá-las com a visão de que esse auxílio seria uma maneira de custear pessoas desinteressadas em trabalhar ao preço da mão de obra trabalhadora ativa e pagadora de impostos, como se os valores assistenciais pudessem manter um padrão de vida aceitável sem exigir um trabalho a parte.

A mudança do foco das políticas públicas do estado norte-americano não foi apenas crucial para o cenário atual do sistema prisional, como foi causa de grande parte da desigualdade social vivenciada dentro do país. A redução das oportunidades para os mais pobres os leva a optar por um trabalho desqualificado atender as condições de ingresso nos programas custeados pelo Estado:

Essa política chegou a tal ponto que a “guerra contra pobreza” foi substituída por uma guerra contra os pobres, transformados em bodes expiatórios de todos os grandes males do país e agora intimados a assumir a responsabilidade por si próprios, sob pena de se verem atacados por uma batelada de medidas punitivas e vexatórias, destinadas, se não a reconduzi-los ao estreito caminho do emprego precário, pelo menos a minorar suas exigências sócias e, por conseguinte, sua carga fiscal. (WACQUANT, 2013, p. 96)

Serão analisados que aspectos se colocam para burocratizar esse sistema, como exigências para ingresso e permanência nos programas de auxilio, bem como no próprio sistema prisional.

1.1 A burocracia como aliada da punição

Com essa nova ideia sendo estampada na mídia e utilizada como argumento em campanhas políticas em favor do aumento da segurança, tornaram-se cada vez menores os valores destinados para os programas, sendo tais valores revertidos em orçamento para construção de novas penitenciárias. Nessas condições, o indivíduo precisa estar submetido ao trabalho, mesmo sendo este desumano, sendo mal pago e/ou com carga horária excedente.

Dentre as novas exigências dos programas de auxílio encontram-se a de que o indivíduo deve aceitar qualquer emprego, independente da remuneração ou condições de trabalho, para poder continuar cadastrado nos programas, acarretando também em uma redução do valor concedido, o que coloca muitas pessoas abaixo da linha da pobreza mesmo estando empregada e recebendo assistência, pois ambos não são suficientes para arcar com as despesas familiares:

A insuficiência e a ineficácia dos programas de trabalho forçado são tão patentes quanto seu caráter punitivo. Embora esses programas sejam periodicamente saudados como o remédio miraculoso contra a epidemia da “dependência” que, dizem, aflige os pobres estadunidenses, nenhum deles jamais permitiu que mais do que um punhado de participantes escapasse da miséria. (WACQUANT, 2013, p. 111)

Mantendo a mesma linha de pensamento, Wacquant[3] continua:

Na melhor das hipóteses, esses programas substituem a “dependência” de programas estaduais existentes pela ”dependência” em relação a patrões superexploradores, nas franjas do mercado de trabalho, suplementada por frágeis redes familiares e pelo comércio ilegal de rua, onde é acessível, uma combinação que, na prática, garante a continuação da pobreza. (WACQUANT, 2013, p. 112)

Assim, tem-se a transformação do welfare state (bem estar) no workfare, neste em que o indivíduo é acolhido pelo mercado de trabalho de maneira precária e em sua maioria, temporária, em que Wacquant (2013, p. 112) aborda de maneira elaborada em seu livro[4] e nele afirma que o workfare não visa a reduzir a pobreza, mas busca apenas diminuir a visibilidade dos pobres na paisagem cívica. Assim, o sistema priva a liberdade individual de escolha e de acesso a melhores oportunidades, estabelecendo uma roupagem de inclusão social e trabalhista, sendo que na realidade ocorre o inverso, em que se mantem a classe marginalizada da sociedade nos cargos sub-remunerados e com baixas exigências, reduzindo as expectativas individuais de crescimento e mudança de vida.

Com novos requisitos para serem atendidos pelos que procuram a ajuda do governo, diminuiu os que conseguem entrar nos programas, o que fez com que muitos necessitados ficassem largados e abandonados pelo Estado:

Afora isso, as famílias desprovidas ainda têm de batalhar para conseguir receber ajuda à qual têm direito. A segunda técnica de contração do Estado caritativo não é orçamentária, mas sim administrativa. Ela consiste em multiplicar os obstáculos e requisitos burocráticos impostos àqueles que solicitam os benefícios, de modo a desencorajá-los ou eliminá-los (ainda que temporariamente) das listas dos beneficiários. Sob o pretexto de identificar os abusos e dificultar a vida dos “fraudadores”, os escritórios de auxílio social multiplicaram os formulários a preencher, o número de documentos a fornecer, a frequência dos controles e os critérios de reavaliação periódica dos dossiês. (WACQUANT, 2013, p. 98)

Essa burocratização também atingiu aos presidiários e aos que buscam sair dessa condição. Inclusos dentro do regime prisional, as questões burocráticas passam a impedir sua saída real do sistema, aumentando o tempo das penas e de sua condicional, assim como os requisitos para de manterem nessa situação foram multiplicados, deixando-os por um longo período sob vigilância do governo durante e após sua estada prisional. Com toda essa burocracia, somam-se as inovações tecnológicas que passaram a disponibilizar as fichas dos criminosos online, o que torna mais difícil o retorno dos ex-presidiários ao mercado de trabalho.

O ex-detento, apenas por possuir esse status em seu histórico, pois não se pode omitir em seu currículo o fato criminoso, naturalmente encontra dificuldades para se encaixar em um emprego e para ser reinserido na sociedade, além de pouca ou praticamente nenhuma assistência financeira para o retorno desse individuo as necessidades diárias custeadas de maneira própria. Todos esses indivíduos, uma vez deixados a sorte pelo sistema, passam a integrar os conhecidos “moradores de rua”, que futuramente acabaram sendo presos pelo próprio regime, que os tipificam como “perturbadores da paz pública”.

Os incrementos tecnológicos, como a disponibilização virtual dos perfis dos antigos e atuais detentos, impedem que o indivíduo possa se retratar socialmente, como o seu arrependimento e posterior melhora de conduta, pois a própria sociedade os lembra de seus erros diariamente o que pode acarretar em sérios distúrbios psicológicos ou até mesmo em um piora comportamental. Além de, no caso do direito brasileiro, retirar a possibilidade de efetivação do seu direito ao esquecimento. Como exemplo de afetados por tais inovações, encontramos em destaque os delinquentes sexuais, que mesmo após seguirem suas vidas e cumprirem sua pena, eles encontram seus rostos e crimes estampados em sites e até em avisos públicos em torno da localidade em que residem. Essa forma de privilegiar a segurança da sociedade em detrimento do direito individual de esquecimento e arrependimento traz a discussão o massacre que os erros têm sobre o futuro dos criminosos, impedindo-os de continuar suas vidas e mudarem de atitude.

Nesse mesmo sentido, encontram-se os criminosos de crimes menos ofensivos, que mesmo pagando sua pena, continuam tendo sua vida afetada por seus atos anteriores, impedindo-os de encontrarem trabalho e até de estabelecerem laços dentro da sociedade, gerando uma exclusão social desse ex-presidiário.

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Para aumentar esse distanciamento do mercado de trabalho, encontram-se as prisões como “escola do crime”, uma vez que não possuem projetos de educação, de reintegração social e nem de aperfeiçoamento individual, o que leva o jovem detento a permanecer na criminalidade quando é posto em liberdade.

Essas mudanças realizadas no direito penal estadunidense possibilitaram o aumento de presos e das dificuldades de reinserção dos ex-detentos. Dentre os motivos para a superlotação dentro dos presídios, pode-se citar a grande quantidade de novos tipos penais acrescidos ao sistema jurídico penal americano, principalmente relacionado as drogas, como também a criação da lei que estabelece que a partir do terceiro crime a pena torna-se perpetua e da dispensa de processo judicial caso o indivíduo assuma seu crime, pegando uma pena pré-estabelecida sem julgamento, para os casos de pequeno impacto social. Esses últimos enquadramentos jamais seriam admissíveia no sistema penal brasileiro, uma vez que ferem princípios contidos na Constituição brasileira e no Código Penal, mas que serão tratados em outro tópico com análise a partir do olhar do direito brasileiro.

1.2 Os negros como principais alvos e a lucratividade do Estado Penal

Um percentual massacrante da população carcerária é formada por negros, fato que torna evidente a questão da segregação racial histórica dos Estados Unidos[5], deixando resquícios que se refletem no complexo penal atual e que não foi sempre uma característica observada nas prisões[6]. A desigualdade social caminha lado a lado com a desigualdade racial, na qual o Estado faz uma transferência da população pobre dos guetos negros americanos para dentro das prisões. Encontram-se então dois centros de exclusão dos negros do corpo social, que se recluem nos guetos ou dentro de prisões para satisfação da mídia, dos governos e da classe media e alta da sociedade:

Assim, do mesmo modo que o gueto protege os habitantes da cidade da poluição que implica o contato físico com os corpos corrompidos, mas indispensáveis, de um grupo pária, à maneira de um “preservativo urbano”, conforme Richard Sennet afirma brilhantemente em sua descrição do “medo de tocar” na Veneza do século XVI, a prisão limpa o corpo social da infâmia temporária que lhe infligem aqueles, entre seus membros, que cometeram crimes, ou seja, segundo Emile Durkheim, os indivíduos que violaram a integridade sócio-moral da coletividade, infringindo-lhe “estados fortes e determinados da consciência coletiva”. (WACQUANT, 2013, p. 346)

Essa transposição da população negra demonstra o quanto o Estado Penal reforça as desigualdades já pré-existentes, estreitando as possibilidades individuais daqueles que, por questões históricas e sociais, já estão marginalizados/excluídos. Wacquant coloca essa política do encarceramento como maneira de afirmação e intensificação das desigualdades, o que acaba inclinando essa população ao crime:

O principal motor da inédita expansão do Estado Penal estadunidense na era pós-keynesiana e a razão de sua política de facto de “ação carcerária afirmativa” em relação aos afro-americanos não é a criminalidade, mas sim a necessidade de reforçar uma clivagem de casta que vem se desgastando, e apoiar o regime emergente do assalariamento dessocializado, no qual a maioria dos negros é lançada em virtude de sua carência de capital cultural vendável no mercado e ao qual os mais desprovidos resistem, escapando para a economia ilegal das ruas. (WACQUANT, 2013, p. 333)

O estado penal também está envolto por mitos que o justificam, entre eles encontramos o de que a intensificação do sistema repressivo tem apresentados bons resultados e sendo uma política bem sucedida. Muitos aspectos já foram apresentados que descaracterizam esse argumento, sendo o mais relevante para analise a questão econômica atrelada a esse modelo estatal, ressaltando a lucratividade do estado penal.

Os gastos realizados nos programas sociais não podem ser comparados com os valores investidos nas politicas de encarceramento, o que custou aos cofres estadunidenses muito mais e apresentou menos resultados:

O dilema é que, se eles colocam em plebiscito a pretensa “guerra ao crime”, que fez quadruplicar a população carcerária do país em 20 anos, os eleitores estadunidenses se recusam em assumir o custo exorbitante da mudança do Estado social para o Estado penal. (WACQUANT, 2013, p. 285)

As penitenciárias exigem um valor exorbitante de investimentos, tanto para ser construída como para a sua manutenção. As empresas privadas conseguiram enxergar nessa inflação de demanda por prisões um mercado lucrativo, tornando o estado norte americano como propulsor das privatizações das penitenciárias, que hoje é adotado em diversos países.

A partir desse interesse privado, pode-se desenrolar diversas características que continuam a manter o crescimento da quantidade de presídios e detentos. Quando uma empresa particular passa a projetar e adquirir lucratividade em uma determinada área, o mesmo investe na mídia e na politica para conseguir a manipulação do pensamento social. Dai encontramos o incentivo midiático e em campanhas politicas para a intensificação das medidas penais, o que passa despercebido pela maioria da população, tendo então o controle de suas mentes.

O lucro advindo das penitenciarias é obtido de diversas maneiras, mas um ponto essencial que deve ser apresentado é o da mão de obra prisional. Os detentos realizam trabalhos durante sua estadia prisional de uma maneira quase análoga ao processo de escravidão. O prisioneiro não é obrigado de maneira direta ao trabalho, mas caso não o faça, terá muitos “benefícios” vedados, entre eles a recreação e a redução do tempo de pena.

Desta maneira, pode-se encarar o trabalho dentro das prisões como uma obrigação do detento que trabalha a um custo baixo e de nada recebe provento. Porém a empresa que administra recebe seus lucros, e os mesmos não são revertidos em vantagens para os trabalhadores prisioneiros. Esse lucro vai diretamente para os cofres privados e serão os motivadores para a criação de novas prisões.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo apresentado no XXXIV Encontro de Iniciação Científica da Universidade Federal do Ceará realizado no período de 25 a 27 de Novembro de 2015.

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