Direito e literatura em “o alienista”, de Machado de Assis

15/08/2018 às 18:28
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A proposta desta incipiente doutrina, Direito e Literatura, é reflexo da necessidade de humanização do processo judicial. Conheça suas ideias a partir da obra de Machado de Assis, “O Alienista".

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca refletir acerca da existência de uma crescente doutrina chamada Direito e Literatura. Inicialmente, busca envolver o leitor na ideia de que a vida poderia ser vista como um processo judicial para, após, pensar na humanização do litígio como um romance, afinal, o exercício cognitivo sugere semelhanças. Apresenta, a seguir, o que efetivamente constitui essa doutrina, os devidos alicerces que a fundamentam, e o seu propósito de combater as mazelas do Poder Judiciário.

O segundo capítulo, por sua vez, analisa a obra de Machado de Assis (1979), “O Alienista”, e discorre sobre a especialidade do tratamento que deve ser garantido ao acometido por doenças mentais em prol de uma sociedade mais igualitária, dirigindo um olhar humanístico para camadas da comunidade que, muitas vezes, são esquecidas.


1 A vida como processo

Você já parou para pensar se a sua vida fosse um processo judicial? Sua Certidão de Nascimento seria a sua petição inicial, em que você colocaria todos os fatos que lhe constituem como ser humano. Seu nome, sua naturalidade, sua filiação, a data de seu nascimento seriam a sua qualificação; a causa remota (fundamentos) seria o seu caráter genético; e os seus pedidos seriam predeterminados e expressos, sob pena de uma sentença citra extra ou ultra petita.

O juiz seria a vida.

A contestação seria a sua adolescência, o seu grito de liberdade, a sua busca pela libertação. Num processo de cognição ordinária, o ingresso na academia, ou a experiência de uma profissão que não necessitasse passar pelas portas universitárias, seria a sua reconvenção, apresentada conforme o Novo Código de Processo Civil (ok, não tão novo assim) no momento do protocolo da sua irresignação com os pedidos da inicial. Se a sua vida fosse célere, seria chamada “Vida 9.099/95”, ou “vida Juizado”.

Aqueles que conseguiriam encontrar a sua vocação já na primeira instituição de ensino seriam denominados de “vida Conciliação”, e o Juiz (vida) apenas homologaria o acordo. A grande maioria seriam aqueles que, ainda em busca do seu espaço ao Sol, dependeriam de um despacho saneador para eliminar qualquer preliminar. A sua graduação seria a sentença, mas (não se preocupe) dela cabe recurso. E aquilo a ser feito depois da colação de grau seriam os Recursos Especial e Extraordinário.

Olhar o Direito sob um viés mais humanitário não é tarefa fácil. Foi nesse sentido que surgiu, no decorrer dos anos, a doutrina Direito e Literatura, que analisa não somente histórias e contos, mas observa o mundo jurídico como um romance.

Candido (2017, p. 176) assim interpela a função da literatura:

A função da literatura está ligada à complexidade de sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos autônomos como estruturas e significados; (2) ela é forma de expressão, isto é manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e grupos; (3) ela é uma forma de conhecimentos, inclusive como incorporação difusa e inconsciente.

Ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, a literatura não vem para complexizar a relação sob judice, mas para trazer aos olhos do julgador, agora não mais a vida, mas um juiz togado, um chamado de humanização.

Nunca antes na História o indivíduo esteve engrenado em um sistema híbrido, ou seja, entre as duas escolas: a Civil Law e a Commun Law. Para um país como o Brasil esse é um critério um tanto quanto preocupante.

É impossível pensar que um advogado, defensor ou promotor de justiça consiga fazer uma petição inicial sem antes procurar, por horas, nos sítios eletrônicos onde será protocolada a exordial, as jurisprudências que embasam o caso.

Na mesma toada de olhar o Direito com um cunho literário, Maux (2003, p. 169), por intermédio da poesia, assim define o divisor de águas do Direito brasileiro:

Jurisprudência é ciência

Vista com muita sapiência,

Para o direito aplicar

Interpelado a lei dia a dia,

Firmada nas decisões de vários Tribunais

Do mesmo preceito jurídico que se vai interpretar

O grande responsável pela mudança de comportamento dos operadores do Direito é a tecnologia. É por meio dos sites dos Tribunais que se buscam as jurisprudências, uma tarefa árdua mas libertadora.

O intérprete saiu do dogmatismo da ortodoxia de códigos para o campo de estudo de casos e, hoje, está diante de um sistema com dois gêneros diferentes. Estudou a Civil Law durante a graduação, por meio de códex e normas positivas, impostas por legisladores para o anseio e controle social e, na prática, utilizou o Commun Law para a busca de casos análogos e, assim, fortalecer a sua tese, seja acusatória ou defensiva.

Não é à toa que cada vez mais inovações jurídicas ganham espaço junto ao mundo do Direito, como súmulas, súmulas vinculantes, informativos, circulares e até mesmo novos procedimentos, como é o caso do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, etc.

Nesse cenário surge uma pergunta não quer calar: se é possível aprender os vícios e virtudes de outro modelo de escola clássica do estudo do Direito, de maneira autodidata, não se conseguiria olhar para o processo de forma mais humana?

A utilização costumeira da jurisprudência traz consigo um perigo, pois se deixa de olhar o processo judicial como retrospecto da vida de uma pessoa e se passa a analisá-lo meramente como dados. Isso tudo somado ao grande número de novos processos e demandas intermináveis que acabam por engessar o Judiciário.

A busca por uma situação análoga é utilizada no Brasil com o fito de dar uma resposta mais rápida à demanda, o que, muitas vezes, pode deixar de atentar para um acontecimento importante e divergir do caso paradigmático.

Não bastasse, a crise se acentua quando um magistrado (de Primeira Instância) possui mais de quatro mil processos para julgar, com 180 novos processos ajuizados por semana, contando apenas com um assessor e dois estagiários de gabinete (exemplo fictício).

Surge a dúvida: será que é o juiz mesmo quem está julgando? Mas como, se ele tem pauta de audiência lotada todos os dias?

A crise, portanto, se alastra e é preciso cuidar ao utilizar outros julgados apenas com o intuito de dar maior vazão aos processos judiciais. Nesse sentido, a doutrina do utilitarismo vem sendo fielmente criticada por grandes intelectuais. O professor de Harvard, Michael J. Sandel (2016, p. 51), assim se expressa a respeito:

A vulnerabilidade mais flagrante do utilitarismo, muitos argumentam, é que ele não consegue respeitar direitos individuais. Ao considerar apenas a soma das satisfações, pois pode ser muito cruel com o indivíduo isolado.

A pessoa é mais do que meros dados. É razão, é emoção, é a soma de tudo aquilo que a faz gente. Assim, a utilização da Commun Law, em um sistema positivado como o do país em que se vive deve ser apenas mecanizado de forma suplementar, mas jamais como alternativa, ou sucessiva, como se percebe diariamente.

É nessa linha que se chega ao Direito e Literatura: para chamar a atenção do julgador para o detalhe, para aquilo que não tinha sido dito, ou se tivesse, que não teve a observância necessária. A axiologia é do amor ao próximo, da alteridade, do respeito à diferença, para uma melhor interpretação da norma e (por que não?) da jurisprudência.


2 “O ALIENISTA”, DE MACHADO DE ASSIS

A literatura é uma forma de linguagem. Não foi, contudo, num piscar de olhos que o ser humano atingiu a capacidade de se comunicar ou de deixar o seu pensamento arquivado em cavernas. Acerca do assunto, Harari (2017, p. 30), com sua sapiência, explica:

O surgimento de novas formas de pensar e se comunicar, entre 70 mil anos atrás, constitui a Revolução Cognitiva. O que a causou? Não sabemos ao certo. A teoria mais aceita afirma que mutações genéticas acidentais mudaram as conexões internas do cérebro dos sapiens, possibilitando que pensassem de uma maneira sem precedente e se comunicassem usando um tipo de linguagem totalmente novo.

Com a evolução da linguagem, o homem passou a aprimorar as suas formas de comunicação e, neste momento, surgiu a escrita, entretanto, somente após milhares de anos é que começou a expor seus sentimentos em folhas de papel.

Nunca antes na História o homem teve tanta informação na palma de suas mãos. Um aparelho de telefone celular o conecta com todo o mundo. Abre sua conta bancária em três segundos e, se quiser, transfere todo o dinheiro para uma conta na Suíça em menos de um minuto (sonho meu).

A tecnologia nos permite fazer coisas extraordinárias, mas o excesso de informação e os algoritmos faz-nos navegar nas ondas da internet por quase três horas, quando apenas iríamos checar a conta de luz no site do departamento de energia, aprisionando-nos em uma espécie de bolha intelectual feita especialmente para ‘mim’.

A literatura clássica, face a essa nova revolução, agora de informação e tecnologia, está em crise. Pois bem. Este leve histórico com tom de desabafo é apenas introdutório para o tema central deste estudo: “O Alienista”, de Machado de Assis (1979), um clássico com gosto de clássico!

O conto do venerável escritor brasileiro (de plano afasto que o objetivo do artigo seja fazer um resumo sobre a obra literária) expõe a estória do Dr. Simão Bacamarte, psiquiatra renomado tanto na Europa quanto no Brasil, que resolveu criar um manicômio chamado Casa Verde.

Obstinado e obcecado pela profissão, o médico internou 75% da população da pacata cidade de Itaguaí, RJ. Após inúmeros protestos e teorias que não se confirmaram, o doutor chegou à conclusão de que o único louco era ele próprio e se internou no hospício, sozinho, até o fim de sua vida (meu Deus, dei spoiler – risos).

Se fosse possível arrematar a ideia central do conto seria “de gênio e de louco todo mundo tem um pouco”. A crítica social se dá na medida em que o médico, antes de reconhecer que o “alienado” era ele próprio, por meio de seu narcisismo, buscou a solução dos problemas da comunidade responsabilizando toda a população local antes de olhar para o “próprio umbigo.”

Hodiernamente, o conto é contemporâneo pois antes de reconhecer os próprios erros, procura-se a fio o terceiro culpado. Isso ocorre nos mais amplos sentidos e conotações da vida, pois quando se discute acerca do direito à diferença, sempre (ou quase sempre) vem à cabeça o pensamento: “mas por que assegurar isso, eles são tão poucos, nem é importante”.

Os exemplos cotidianos são inúmeros: olha-se uma vaga de deficiente físico na frente do banco, sinalizada com placa, o meio-fio pintado em azul e com uma cadeira de rodas grafitada no asfalto e, mesmo assim, se o “guardinha” não está ali, estaciona-se no local, aliás, o que são cinco minutinhos? Ou, se o sinal está vermelho, mas nenhum carro se aproxima, se atravessa a rua sem pestanejar. Seria isso um retrospecto da impunidade no país? Talvez.

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O exemplo, todavia, tem que vir de casa e, no campo social, tem que vir dos representantes do povo. Infelizmente, as instituições estão cada vez mais desacreditadas, o que reflete sobremaneira na forma como a população se comporta.

Se houvesse um olhar mais humano, criado a partir da literatura, com um capital social e intelectual maior do brasileiro, talvez fosse possível pensar: mas essa pessoa realmente necessita desse espaço privilegiado? Afinal, as suas condições motoras são inferiores às minhas.

Não se pretende dizer aqui que todos devem ser poetas ou exímios escritores, mas trazer para a vida em sociedade o aspecto de alteridade, desenvolvido por Levinas (1999), em seu texto “O rostro del otro”, para quem o homem, antes de tudo, deve colocar-se no lugar do outro, um exercício difícil, porém, não impossível.

O poeta, nos dizeres de Nussbaum (1997, p. 117), “es una criatura antojadiza, sino la persona mejor dotada para outorgar a cada objeto o cualidad su justa proporción”. A idealização de um mundo perfeito seria possível se todos tivessem a cognição de entender e respeitar o outro. E mais... com a atuação de um juiz poético, um juiz crítico-sensível. Nos dizeres de Sbizera (2015, p. 88):

O estudo do Direito pode tornar-se crítico na medida em que faz um movimento de prelaxe, alterando-se a perspectiva do olhar observador, e, para além da crítica técnica que visa tornar um texto mais claro, mais coerente, menos lacunar, denuncia suas falhas, erros e enganos, faz de si mesmo um objeto a ser estudo a partir de agora, usando uma linguagem extrajurídica, uma meta linguagem. Esta metalinguagem que se refere ao estudo do Direito pode ser oriunda das mais variadas áreas do conhecimento como, por exemplo, a epistemologia, a linguística e a semiologia, a psicanálise, a antropóloga, a fenomenologia, a sociologia, a história, a economia, a filosofia, etc.

Um ser humano mais humano e um juiz mais sensível – essa seria a fórmula mágica para fugir da ortodoxia e dos julgamentos sem coração. Seria possível efetivamente utilizar a jurisprudência com sabedoria e, para fins meramente argumentativos, o juízo a consideraria apenas com esse fito, sem querer diminuir cargas e volumes de processos conclusos para atender as metas fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça, onde o julgado anterior é o julgado ulterior.

Utópico? Mas de que serve a vida sem um sonho?

Como paradigma, utilizando o conto de Machado de Assis, cabe a cada um olhar o problema em si próprio para somente após apontar para outrem. Se o Judiciário tem dificuldade, o que é possível fazer para ajudá-lo? Essa seria a função exordial do Direito e Literatura.

Quando se fala em portadores de enfermidades mentais talvez mais importante ainda seria a necessidade de um olhar mais humanitário. Sabe-se que a qualidade intelectiva surge no Direito brasileiro em todas as suas formas de manifestação. No Direito Penal o acometido por doença mental é inimputável (art. 26 do Código Repressor); no Direito Civil, por sua vez, incapaz (absoluta ou relativamente, art. 4º do Códex Civilista).

Essa parcela da sociedade, por vezes esquecida, a quem são negligenciados os devidos tratamentos, deve ser respeitada tanto em sua condição especial quanto em sua individualidade como ser humano. Não basta, como queria o Dr. Bacamarte, aprisionar todo mundo na Casa Verde, achando que a solução seria a punição.

Se Machado de Assis já visualizou que a normalidade pode ser um critério de alienação, cabe refletir que a diferença merece ser tratada com alteridade, afinal, a própria Constituição confere, como objetivo, uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º da Carta Magna).

"Direito e Literatura" é uma doutrina nova, que busca uma salvação do judiciário contra as decisões “Ctrl C, Ctrl V”, cabendo ao intérprete e operador do Direito fazer o correto e bom uso de seus meios.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos devaneios da vida, percebe-se muitas injustiças mundo afora, não apenas em casos em que advogo, mas em notícias veiculadas pelos mais diversos meios de comunicação.

A ortodoxia do estudo de códigos está ultrapassada, cada vez mais provas de concursos e julgados favoráveis àqueles que já atuam na área dependem de uma boa análise jurisprudencial. Não se pode, todavia, ficar refém do dogmatismo e da preguiça de argumentação, apenas juntando casos análogos às petições.

Deve-se buscar a justiça e a sua efetividade. A justiça feita com coração, com um olhar ao diferente, dando às partes aquilo que elas realmente merecem. Esta é a função do Direito, enquanto a nova doutrina do Direito e Literatura vem para agregar conhecimento e novas formas de observar o conflito, com aquilo que realmente importa: a humanidade nas decisões.


REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. O alienista. In: Obra Completa, v. II, Conto e Teatro. Organizada por Afrânio Coutinho. 4. ed., ilustrada. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979, pp. 253-288.

BRASIL (Constituição, 1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao. htm>. Acesso em: 29 jun. 2018.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Brasília: DOU, 31 dez. 1940.

CANDIDO, Antônio. Vários escritos. São Paulo: Ouro Sobre Azul, 2017.

HARARI, Noah Yuval. Sapiens – uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2017.

LEVINAS, Emmanuel. O rostro del outro. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1999.

MAUX, Ana Heloisa Rodrigues. Dicionário jurídico em rimas livres de A a Z. Natal, RN: Gráfica, 2003.

NUSSBAUN, Martha. Justiça poética. México: Andrés Bello, 1997.

SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

SBIZERA, José Alexandre Ricciardi. Arte e direito. O lugar da literatura na formação do jurista crítico-sensível. Rio de Janeiro. Lúmen Juris, 2015.

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