Modernidade periférica: uma visão dos direitos sociais no Brasil

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Este artigo tem por finalidade não trazer resoluções aos problemas de acesso à Justiça, mas tentar compreender a situação hodierna e os obstáculos existentes para o alcance dos direitos nos países periféricos.

1.Introdução

No início do Artigo, podemos começar remetendo a um conceito da filosofia da ciência de Thomas Kuhn, que é o paradigma. A sua tese se baseia na concepção de que o conhecimento não progride evolutiva e pacificamente, mas, ao contrário, o progresso do conhecimento nas ciências se daria por rupturas, por grandes saltos, por profundas alterações de paradigmas. Logo, esse conceito passa por uma percepção de ideia compartilhada por uma comunidade científica, num dado momento, que fornece problemas e soluções na forma de modelos até que esse não seja mais adequado e capaz de explicar os fenômenos da sociedade e há, então uma crise, que só pode ser resolvida quando um novo paradigma for capaz de se fixar e de explicar as novas situações de forma satisfatória. Sempre que um paradigma é quebrado, é instituído outro, que se torna o modo de se agir correto dali para frente, até que, em algum momento, este seja quebrado e instituído outro paradigma. Assim, em meio a essa troca de paradigmas e concepções, a sociedade formula suas teorias, como é o caso do estudo dos direitos sociais nos países centrais e periféricos.

 A atual conjuntura da sociedade descreve uma hipercomplexidade que deve acompanhar as rápidas modificações, selecionando a partir destas quais aspectos que devem ser inseridos na estrutura social. Ademais, com a transformação da estrutura, haverá um processo de reestabilização das estruturas que já existiam no sistema com as novas características adicionadas posteriormente. De fato, o desenvolvimento dos sistemas ditos "autopoiéticos", por Luhmann, reflete duas distinções fundamentais para o entender como acontece a inserção dos direitos sociais no sistema jurídico e político. Por exemplo, podemos reconhecer a diferença entre países centrais e periféricos, com a vinculação do Estado de Bem-estar com o projeto de inclusão/exclusão social. 

Diante desse contexto, o sistema jurídico engloba essa diferença inclusão/exclusão e controla como o acesso destes se dá na sociedade dos países periféricos. Dessa forma, este artigo tem por finalidade não trazer resoluções aos problemas de acesso à Justiça, mas tentar compreender a situação hodierna e os obstáculos existentes para o alcance dos direitos nos países periféricos.


2. Direitos Sociais nos países periféricos

Como citado, percebe-se a alta complexidade da sociedade hodierna em comparação a qualquer outra estrutura social anterior: hipercomplexidade. Assim, a esta complexidade crescente funciona como um motor da evolução social (NEVES, 2008, p. 15). É válido enfatizar que, com base na tese dos sistemas sociais autopoiéticos, a evolução social não se caracteriza como um progresso, onde há a melhoria de vida e o aumento no grau de felicidade; não se manifesta como um aprimoramento contínuo, linear, equilibrado e extremamente necessário para os indivíduos. Ou seja, a evolução não pode ser considerada planejada, controlada. (NEVES, 2008, pp.4-5).

 Nesse sentido, podemos fazer uma comparação com a evolução do Direito, onde as sociedades arcaicas utilizavam a violência física como autodefesa, quando havia uma quebra da expectativa, ou seja, as atitudes de alguns membros não correspondiam com o esperado de acordo com os usos, costumes e tradições. Já nas sociedades estratificadas, as ferramentas de resolução de conflitos (litígios) destinam-se basicamente a verificar a adequação das condutas a partir de um padrão de comportamento estabelecido por um modelo estrutural de expectativas inquestionáveis. (NEVES, 2008, p.9).

Dessa maneira, a sociedade torna-se excessivamente dinâmica e complexa, caracterizando-se pela conquista da positivação do direito, no entendimento que o direito passa a ser regulado, servindo como fundamento de validade jurídica. Assim, o direito positivado promove a possibilidade da diferenciação funcional do Direito, bem como a autopoiese do ordenamento jurídico. Através do conceito de positividade, Luhmann assegura que o Direito da sociedade contemporânea é autopoiético, onde implica o controle do código binário lícito/ilícito pelo sistema jurídico, que com isso adquire o seu fechamento operativo e normativo. (NEVES, 2008, p. 80).

Como comentado acima, a sociedade evolutiva construiu um Direito autopoiético, que se caracteriza por possuir um sistema fechado operativamente por meio de um código binário. Assim, a sociedade global se torna fragmentada, pois não há ordem superior que controle os sistemas parciais como Economia, Política, Direito e cada subsistema deste trata de um problema social com um limite específico.O próprio sistema possui o poder de decidir os valores de seu código, ou seja, o que é adequado com o campo normativo do Direito (lícito) e o que não é (ilícito). Assim, a partir desses códigos dos sistemas funcionais é que se pode visualizar a diferenciação centro/periferia, de tal forma que, na periferia, há pessoas excluídas da comunicação global (MATTHEIS, 2012, p. 638). A inclusão, por outro lado, pode ser compreendida como a oportunidade de que as pessoas sejam consideradas e reconhecidas socialmente. Trata-se a inclusão do acesso aos sistemas funcionais da sociedade e é o próprio sistema que regula seu acesso (NEVES, 2011).

Além disso, a diferenciação centro/periferia não se remete ao sentido de exploração, sendo que esta pode conceituar uma diferença entre distinção segmentária (periferia) e uma estratificada (centro). Nesse sentido, Neves faz uma diferenciação entre modernidade central e modernidade periférica. Nos países periféricos, encontra-se uma realização inadequada da autonomia sistêmica segundo a forma de diferenciação funcional, bem como existe uma inadequada concretização dos direitos humanos como inclusão social (NEVES, 2011, p. 214).

Neves aponta como países periféricos os da América Latina, inclusive, o Brasil. Assim, nos países periféricos, segundo o autor, existe uma resistência na realização do Estado de Direito, porque a Constituição não corresponde às expectativas normativas comportamentais generalizadas, de modo a perder, muitas vezes, sua relevância jurídica. Por conseguinte, o código lícito/ilícito não cumpre, satisfatoriamente, a função de segunda codificação do sistema político. (NEVES, 2011, p.218-225). Dessa forma, a Constituição passa a ser simbólica, não cumprindo sua função por expressar uma defeituosa diferenciação: 

Dessa forma, uma vez que os países periféricos – em relação aos centrais – se diferenciam em virtude de sua incompleta, ou até mesmo ausente, diferenciação funcional, há um grave problema quanto à exclusão das pessoas. Assim, nos países centrais, vê-se uma predominância da inclusão sobre a exclusão; e, nos países periféricos, por outro lado, há uma predominância da exclusão sobre a inclusão, mormente no que se refere à Política e ao Direito (NEVES, 2011).

Dessa maneira, Neves confirma que os países periféricos possuem carência de inclusão geral no sistema jurídico, ou seja, falta de direitos e deveres. Além disso, o autor enfatiza que o problema mais grave que impede a realização do Estado de Direito na modernidade periférica consiste na “subinclusão”, onde a Constituição se comporta apenas como deveres e proibições, e não como direitos, de modo que as responsabilidades e deveres são submetidos à atividade punitiva e se sobressaem sobre o acesso aos direitos fundamentais. 

Numa sociedade periférica, para os que não possuem recursos financeiros suficientes, há muitas restrições monetárias, relacionadas a exclusão por discriminação donde deriva altos níveis de desigualdade devido aos vários serviços sociais intensamente monetarizados que produzem diferentes níveis de acesso. Ademais, nesse processo, ocorre a desigualdade decorrente das categorias sociais. 

A inclusão na exclusão significa a inclusão da pessoa em alguma esfera institucional, mas numa posição subordinada em relação a pessoas, em princípio, iguais. É a rotinização de uma situação de desigualdade produzida pelas próprias instituições sociais, enquanto se mantêm formas de estratificação que pare- cem ser naturais. Como exemplo, encontra-se o discurso do mérito (MASCAREÑO, 2014, p. 17)

Em suma, a subinclusão, conceito de Neves, se caracteriza numa forma de inclusão na própria exclusão, ou seja, é uma ausência de condições para se realizar direitos fundamentais, mas que, por outro sentido, há obrigatoriamente a necessidade de execução às normas estabelecidas. Assim, alguns indivíduos estão “excluídos das condições mínimas de inclusão, mas incluídas por meio de formas geralmente policiais de exclusão (deveres apenas)”. (RIBEIRO, 2016, p. 128). Diante do exposto, é possível inferir, portanto, que os países com modernidade periférica devem assumir e administrar os problemas de acesso aos direitos, devido à sua incapacidade de diferenciação funcional, decorrente da falta de autonomia sistêmico funcional.


3. Ligação Cidadania e Constituição Simbólica

Diante dos aspectos supracitados percebe-se que na América Latina, em especial no Brasil, a partir da instauração do Estado Democrático de Direito, a cidadania passou a ser algo almejado por todos os membros da comunidade, deixando de ser apenas uma promessa para o futuro, como no Estado Social, sendo algo buscado hodiernamente, além da efetiva positivação dos direitos subjetivos públicos democráticos, na forma de “direito de voto geral e igual, assim como a liberdade de organização das associações políticas e partidos” (NEVES,p.180). Tendo em vista os problemas vivenciados, na atualidade, por esse terceiro paradigma, é notório que um dos mais relevantes são aqueles derivados dos “efeitos decorrentes da expansão do código do poder econômico em relação à perda de capacidade normativa das constituições nos Estados de Direito Consolidados, que geram uma espécie de “periferização do centro”, entendido como um fenômeno de extensão a tais espaços da situação de constitucionalização simbólica” que, na perspectiva do Marcelo Neves, seria um problema específico da chamada modernidade periférica.

Conforme Guillermo O’Donell existe uma ligação estreita entre a democracia e certos aspectos da igualdade entre indivíduos, sendo que essas pessoas não são apenas postuladas como simples indivíduos, todavia como um todo legal e em decorrência disso como cidadãos, portadores de direitos e deveres, derivados do seu papel desenvolvido dentro de uma comunidade política, onde lhes é atribuído um certo grau de autonomia pessoal e em consequência disso, responsabilidade pelos seus atos. A partir da perspectiva apresentada por Dworkin em relação à integridade na política e no direito, percebe-se que diante dessas tipologias de integridade, existe uma comunidade de princípios, na qual as pessoas se reconhecem como livres e iguais, onde deve haver igual respeito e consideração perante os outros.

Levando em consideração a conquista de novos direitos da cidadania e consequentemente a sua ampliação, percebe-se que esse processo é oriundo de momentos jurídico-políticos distintos. Primeiramente surgiu a semântica dos direitos humanos, como uma espécie de “exigência valorativa do reconhecimento e satisfação de determinadas expectativas normativas que vão emergindo na sociedade e são avaliadas como imprescindíveis à integração social e sistêmica” (NEVES, p.260). Em segundo lugar essa semântica passa por um fenômeno de reconhecimento do Estado e incorporação ao sistema constitucional na forma dos direitos fundamentais. Todavia diante desse adentramento dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico, Constituição, não significa uma completa conquista e realização efetiva da cidadania, mas tornou-se algo fundamental para a cidadania e sua concretização, pois é necessário ambientar a vivência e agir dos cidadãos e os agentes públicos, na prestação de deveres e recebimento de direitos, isto é, tornar concreto as normas constitucionais estabelecidas em relação aos direitos fundamentais. Segundo Marcelo Neves, somente quando a Constituição é um reflexo da esfera pública, a cidadania existe e se desenvolve. O autor ainda defende a tese de que com a interiorização no texto constitucional de normas que regulem a ampliação da cidadania isso funciona como um tipo de acobertamento do não ato de exercer de funções típicas dos cidadãos.

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Ainda conforme Neves a cidadania é conceituada como uma espécie de integração jurídica na sociedade, assim ele afirma que a cidadania está ausente quando se generalizam relações de subintegração e sobintegração no sistema constitucional, bastante recorrente nos países periféricos, “os altíssimos índices de desigualdade política, econômica e social, em razão dos quais alguns poucos seriam capazes de fazer valer interesses e demandas particulares em detrimento de outros, em detrimento desses aspectos, o Brasil contemporâneo seria a cristalização de uma modernidade periférica” (TAVALARO, 2010, p.6). Logo, nessa situação “não se realiza a inclusão como acesso e dependência simultâneos ao Direito Positivo”(NEVES, p.261).

Nesse mesmo caminho é apresentada a ideia que o princípio da igualdade é o núcleo da cidadania, como um aparato mecanicista responsável pela inclusão social no âmbito jurídico político, como dito anteriormente, em síntese é “uma pluralidade de direitos reciprocamente partilhados e exercitáveis contra o Estado” (NEVES, p.175). A noção de cidadania procede uma relação das pessoas com o Estado (lealdade) e com a nação (identificação). Diante da história da conquista dos direitos em sua diversidade (civis, políticos e sociais), fica claro que no Brasil ocorreu de modo invertido quando observado a pirâmide de Marshall, em sua cronologia e lógica sequencial. Assim, na linha do tempo instaurada na história brasileira, primeiramente, em 1930, foram conquistados os direitos sociais, em um período marcado pela supressão dos direitos civis e políticos devido o momento político vivenciado, com a presença de um governo forte e popular. Posteriormente veio a ampliação dos direitos políticos e consequentemente uma espécie de congelamento dos direitos sociais, desenvolvidos por mais que pareça algo paradoxal, durante o regime militar e na abertura para a Democracia. Por último estão os direitos sociais, ainda em construção no Brasil, uma busca pelo tratamento de igualdade entre os cidadãos.

Segundo José Murilo de Carvalho, a desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática (p.228, 2015). Ainda conforme esse autor, o futuro da cidadania é condicionado pelo abandono do neologismo denominado de Estadania - intensa participação do Estado na construção dos direitos, e não na luta do povo contra o Estado. O Estado é que construiu a nossa cidadania. Estado como mecanismo de conquista da cidadania - dessa forma é possível se conquistar a igualdade presente nos direitos civis, assim a expansão dos outros direitos também é formidável. Todavia, é necessário a sociedade se organizar e exigir do Estado que todos sejam tratados de forma igual. Não se pode ficar dependendo do Estado para obter essa igualdade entre os indivíduos e perante o Estado.

Em síntese no final da obra Cidadania no Brasil, Murilo de carvalho diz que no Brasil há uma cidadania inconclusa, uma vez que a positivação eficaz de um direito não significa a garantia de outros direitos, como por exemplo o direito ao voto não significa direito à emprego. Os direitos civis e políticos, no Brasil, não conseguem solucionar os diversos problemas sociais presentes no cotidiano das pessoas, assim esses direitos evoluem em compassos diferentes.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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