As influências do ensino superior jurídico: consequências históricas

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Será que os cursos jurídicos estão servindo - ainda hoje - como um instrumento do Estado para selecionar e garantir a “elite” que continuaria dominando o país através de ideias burocráticas e patrimonialistas?

RESUMO: Não há dúvidas de que a educação é um Direito de todos. Ela tem, como um de seus objetivos, o de garantir, nos termos de nossa Constituição Federal, o pleno desenvolvimento da pessoa. Ela está ligada à questão de aprendizagem, conhecimento e cultura de uma pessoa e de sua sociedade. A educação é vislumbrada em vários planos e sentidos, como na área familiar, escolar, profissional, etc. Ocorre que, nesses demais planos, o Direito, que é um estudo científico, que possui complexidades e peculiaridades, é também objeto da educação. Como sujeito da educação, o Direito, como ensino, compartilha das mesmas conquistas, felicitações e, também, frustrações e críticas que as demais áreas educacionais. E foi analisando esses elementos que nós, escrevemos este artigo. O ensino jurídico também possui suas limitações, suas falhas, e, por causa disso, não deixará de ser objeto de estudo. Enfim, este artigo é um convite à análise e reflexão do atual panorama do ensino superior jurídico, mas com um olhar crítico à nossa História Brasileira.  

PALAVRAS-CHAVES: Direito; Educação; Ensino Superior Jurídico.

  ABSTRACT:  There is no doubt that education is a right of all. It has, as one of its objectives, to guarantee, in terms of our Federal Constitution, the full development of the person. It is linked to the issue of learning, knowledge and culture of a person and their society. Education is glimpsed in various planes and senses, as in the family, school, professional, etc. It happens that, in these other planes, Law, which is a scientific study, which has complexities and peculiarities, is also the object of education. As a subject of education, law, as teaching, shares the same achievements, congratulations, and also frustrations and criticisms that other educational areas. And it was analyzing these elements that we wrote this article. Legal education also has its limitations, its flaws, and, because of this, will not cease to be the object of study. Finally, this article is an invitation to analyze and reflect on the current panorama of higher legal education, but with a critical look at our Brazilian History.

 KEYWORDS: Law; Education; Higher Legal Education.


INTRODUÇÃO

“O homem não pode sobreviver sem o uso de sua mente. Ele nasce desarmado – seu cérebro é sua única arma. Os animais obtêm comida usando a força. O homem não tem garras, presas, chifres, nem grande força muscular. Ele tem que plantar sua comida ou caçá-la. Para plantar, ele precisa pensar. Para caçar, ele precisa de armas, e, para fazer armas, precisa pensar. Da mais simples necessidade até a mais complexa abstração religiosa, da roda ao arranha-céu, tudo o que somos e tudo o que temos vem de um único atributo do homem: a capacidade de sua mente racional.” 

 Ayn Rand, em “A Nascente”, de 1943.

E assim é uma parte do começo do discurso da personagem Howard Roark, em A Nascente, de Ayn Rand, bem ao final da obra, quando ele se dispõe a apresentar sua defesa ao corpo de jurados. Pensar, disse ele, pensar, e pensar. Mas não basta pensar de qualquer jeito, é necessário ir além das expectativas e do senso comum. O ensino, seja ele básico ou superior, é o meio capaz de aguçar ainda mais esse atributo humano.

Foi pensando nisso, e devido ao nosso contato com o mundo acadêmico do Direito, que a ideia de realizar um estudo acerca do ensino superior jurídico surgiu.

Neste artigo, faremos uma mistura entre o contexto histórico e o atual em que o ensino de Direito situa-se, buscando demonstrar o porquê de, hoje, ser considerado um ensino que encontra-se em “crise”. Através dessa análise, procuraremos expor as consequências de nosso histórico brasileiro e como isso tem agredido o intelecto de nossos acadêmicos, sejam eles professores ou alunos.

Atualmente podemos observar que, nos bancos de nossas universidades, e, também, naqueles do mundo da “prática jurídica”, há entre as pessoas do universo acadêmico um bordão que diz não existir uma aliança entre a teoria e a prática. Contudo, não concordamos essa afirmativa. No entanto, no decorrer deste artigo, não nos aprofundaremos neste tema, devido à sua extensão, o que requereria um estudo específico. E, se esse imaginário não bastasse, há uma série de reclamações de que o “povo do Direito” possui um linguajar difícil e, talvez, inteligível.

Infelizmente hoje, no ensino superior jurídico, podemos ver que, embora tenha crescido substancialmente o número de faculdades pelo Brasil[3], a didática, a metodologia, o “o quê” se ensina, o porte e a limitação dos alunos e, por fim, as regras do Estado – frente às instituições de ensino superior – são elementos que, pouco a pouco, vão dilapidando a qualidade educacional.

Outra preocupação nossa ao desenvolver este artigo, como você verá adiante, é com a educação que se passa aos alunos em nosso período contemporâneo dentro da sala de aula, nos mais diversos momentos de sua vida acadêmica, seja no início, no meio ou no fim, inclusive no que tange à conclusão do curso, quando se está diante do trabalho de conclusão – que é considerado por muitos alunos como “um monstro avassalador”.

Mas, calma, o artigo não abarcará somente críticas ao ensino de Direito e ao papel do Estado, mas procurará explorar o quão estimulante e proveitoso é ser uma “curva fora da reta” – perdoem o jargão – quando o assunto se relaciona a aprendizado e educação.

Enfim, sigamos à análise do tema.


1. A CULTURA DO DIREITO BRASILEIRO

Em um livro muito interessante, “Sapiens – Uma breve História da Humanidade”, Yuval Noah Harari expõe uma informação instigante: Se um camponês espanhol, que vivesse no ano 1000, acordasse 500 anos mais tarde, ele não sentiria a diferença das mudanças de seu mundo. No entanto, se ele vivesse nos anos 1500 e acordasse mais 500 anos depois, em um lugar repleto de inovações tecnológicas, de costumes e políticas, ele não saberia dizer em que “mundo” se encontra. Ele poderia perguntar, a si mesmo, se está no céu ou no inferno. (HARARI, 2016, p.257)

O mundo, de fato, nesses últimos 500 anos, abriu-se mais às mudanças e inovações de um modo mais rápido do que os anos anteriores. O que era até então contado em contos e estórias impressas de que o homem poderia realizar feitos apenas imagináveis começou a se tornar realidade. O homem deixou de dominar apenas a superfície da Terra e dos mares, e passou a explorar os céus, por meio do dirigível e dos aviões, e as profundezas do mar, graças ao submarino. De uma forma revolucionária, o homem, através de sua capacidade inigualável de cada vez mais desenvolver novas tecnologias, tornou-se um amigo do conhecimento e do estudo. Mas não se trata de um conhecimento ou estudo específico, desses institucionalizados em universidades ou cursos técnicos profissionalizantes, mas daqueles empíricos, daqueles que surgem da vontade de criar, produzir, desenvolver conforto, inovar.

E por que estamos dizendo tudo isso? Bom, a resposta é simples: Recursos. A ciência – e, lembre, Direito também é ciência –, para progredir necessita de recursos, isto é, para que progrida ela depende de uma relação mútua entre ciência, política e economia. (HARARI, 2016, p. 260)

E nesse ponto país algum é diferente. Porém, o modo como surgiu o ensino superior de Direito em nossa Pátria Amada (parafraseando Joaquim Osório Duque Estrada), foi de uma forma um tanto quanto peculiar. O Direito iniciou-se no Brasil por uma cultura patrimonialista, que, segundo Garschagen, significa um “caso especial de poder”, em que o representante do Estado se utiliza do Poder para atingir interesses próprios (algo muito “distante” da nossa realidade, não é mesmo?!). O soberano gere o Poder Público assim como o faz com sua administração doméstica. (GARSCHAGEN, 2016, p. 67-69)

Pois bem, vamos ao porquê desse sentido patrimonialista. No Brasil, com a Independência, em 1822, foi que surgiram os primeiros cursos jurídicos em Pernambuco e São Paulo. Nesse período a maior preocupação do Brasil era formar funcionários estatais que integrassem órgãos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário (RUBIÃO, 2017, p. 96). No entanto, esse período da independência não trouxe muitas novidades à ao ensino – básico ou superior –, uma vez que a ideologia Pombalina (de Marquês de Pombal) ainda persistia no cenário brasileiro. Pombal, que anos antes da Independência do Brasil havia submetido todo o ensino a uma “total e constrangedora ‘dependência do poder político, em vez de uma salutar liberdade de pensamento’ [...] o ensino foi uniformizado para atender um objetivo bastante claro: servir ao Estado”. (GARSCHAGEN, 2016, p. 47)

Esse período da História do Brasil é importante de ser ter em mente pois é o responsável pela cultura do “bacharelismo”, aquele velho ranço que coloca em um grau superior o “Doutor” – mas que ainda é bacharel – formado em Direito. (RUBIÃO, 2017, p. 96-97)

Os cursos jurídicos, então, começaram a ser um instrumento do Estado para selecionar e garantir uma “elite” que continuaria dominando o País através das ideias burocráticas e patrimonialistas. Em um artigo muito interessante, Ângela Aparecida da Cruz Duran cita uma passagem em que os cursos jurídicos surgiram por meio de um decreto que objetivava formar “homens hábeis para serem um dia sábios magistrados e peritos advogados de que tanto se carece e outros que possam vir a ser dignos Deputados e Senadores para ocuparem os lugares diplomáticos e mais empregos do Estado”. Entretanto, segundo os dados colhidos por ela, esses formandos eram jovens nada distantes de qualquer idiota, faltosos nas mais ordinárias noções de literatura, falando miseravelmente e escrevendo com imperdoáveis solecismos, barbarismos e neologismos. E conclui que o ensino secundário, os colégios e os cursos preparatórios ensinavam não para que se aprendesse, mas para que se fizesse exames. (DURAN, 2006, p. 98-99)

No entanto, elite é uma expressão que há muito foi vulgarizada. Seu significado tem mais a ver como uma referência ímpar a uma comunidade, e não um simples grupo que controla o poder, como é entendido hoje em dia. Como os alunos de Direito daquela época faziam parte de uma “elite”, e como a educação do ensino superior jurídico era voltada a criar “seres” estadistas, a Política brasileira passou a tornar-se um meio de ganhar dinheiro, uma profissão. O governo contratava “Doutores” enquanto o setor privado, formado por pessoas na maioria das vezes não graduadas, arcava com a despesa pública. (GARSCHAGEN, 2016, p. 97)

Veja, no Brasil, os recursos, a que nos referimos lá atrás, referiam-se a receitas que eram destinadas a enriquecer mais quem era do Poder Público, aos formandos mais estadistas, e não gerar riquezas ao país. Era perfeitamente possível, naquele período, e ainda hoje, permitir uma abertura ampla do mundo particular para que mais ensino, e de qualidade, fosse desenvolvido. Praticamente tudo depende de recursos – alguns dizem que até o amor. Contudo, nós, aqui no Brasil, ainda temos uma mentalidade de acreditar que tudo procriado do Poder Público é algo “bom e de qualidade”, quando, na verdade, o que se está produzindo, é uma cultura cada vez mais morosa e paralisada. Reflita um pouco sobre a quantidade de “direitos” que você paga por até “duas vezes” – às vezes até mais – ao mês. A saúde, por exemplo, que segundo a Constituição é um direito de todos e que, de modo principal, deve ser “prestada” pelo Estado, é uma dessas situações. Pagamos pela saúde ao Estado, muitas vezes sequer a recebemos, e continuamos a pagar por planos de saúde, de onde saem mais outros recursos ao Estado. Antes fosse que, ao invés de pagar tanto pelo vazio humanista de nosso Estado, obtivéssemos, pela liberdade de mercado, condições de usufruir ainda mais de verdadeiros direitos e produtos privados. É de uma grande infelicidade acreditar que o Estado – ou melhor, as “pessoas” que o compõe, uma vez que Ele próprio não é um sujeito de vontades –, por meio de suas “políticas sociais ou públicas”, possa realmente erradicar a pobreza ou o analfabetismo, quando, na verdade, Ele próprio já foi criado com uma “superioridade” de “Senhor Dominador” contra seu povo “escravo”, que sofre com uma relativização do direito de propriedade, dos contratos e, inclusive, o mais importante, da liberdade.

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E vale lembrar: mudaram as Constituições por 7 sete vezes, mas a mentalidade do brasileiro – a nossa mentalidade – permaneceu idêntica àquela de séculos atrás. Como bem assinalou Nuno Miguel Branco de Sá Viana Rebelo, a Constituição aparenta ser madura, mas seu contexto social, de nosso cotidiano, é marcado por um povo despreparado para a democracia, sem disciplina cívica e individualista. A Constituição “está pronta para a democracia, mas a população não atingiu o nível de educação coletiva exigida para a prática da democracia de forma saudável, ou seja, liberdade com responsabilidade”. (REBELO, 2013, p. 211)

Aquele contexto histórico, do patrimonialismo e das “elites”, ainda persiste nas universidades (e por que não dizer que fora dela, também?): Cada vez mais os alunos do curso de Direito interessam-se pelos “cargos públicos”, dos “altos” concursos públicos, que geralmente são classificados, pelos próprios servidores públicos, como “vagas de intelectuais e estudiosos”. No entanto, o que vemos, assim como já demonstrado lá atrás, são alunos treinados a fazerem provas e exames de forma mecânica, sem ponderações. Claro que não são todos. Mas, há de convirmos, ainda há resquícios desses períodos da História do Brasil em nosso meio.

O Brasil, com o golpe militar que derrubou a Monarquia e proclamou a República, em 15 de novembro de 1889, demonstrou ser um país que procura manter a “ordem e o progresso” através de um sistema político dividido, e sem união, impossível de chegar a um consenso. Rubem Alves, em seu discurso, no ano de 1990, na Unicamp, fez uma comparação nesse sentido através de uma metáfora acerca de uma banda formada por membros que não cooperavam entre si, que não tocavam a música conforme o modo harmonioso que deveriam. Hoje, somos um país imenso, com uma das maiores diversidades de partidos políticos, com uma entidade legislativa composta por um corpo extremamente diversificado e que, por óbvio, jamais se chegará a um consenso. E ainda assim tem-se uma crença de que as soluções podem ser encontradas no Estado, tese essa é que é defendida em inúmeras matérias de Direito Público, em matérias como Direito Administrativo, Tributário, Constitucional, etc.

Somente entre os anos de 1945 a 1961, ano este em que foi aprovada Lei de Diretrizes e Bases, que houve uma primeira expansão do ensino de Direito no Brasil, que aproximadamente, em 1962, contava com algo em torno de 60 cursos. Por volta de 1974 o Brasil aumentou seu número de cursos de Direito em 122, por todo o país. Em 1982, o total de número de cursos passou a ser 130. Em 1997, 260 cursos. De repente, em um “boom” populista, nos anos 2000, com a entrada do “governo Lula”, o Brasil criou mais de 1100 cursos de Direito por todo o território nacional. (OLIVEIRA, MENDES E MENDES, 2014, p. 1927)

Há, contudo, com esse crescimento acelerado um problema que se alastra por todo o país. Entra governo, sai governo, e o objetivo de encontrar soluções sociais são simplesmente entregues às urnas a troco de esmolas. A educação pública, e ineficaz, de nível baixo, compromete as gerações. Uma grande parte da sociedade não vai à escola, mas, quando vai, aprende só o “básico” para não ser chamado de “analfabeta”. Não se tornam “agentes críticos capazes de ações transformadoras de sua própria história pessoal e da realidade social à qual pertencem”. (REBELO, 2013, p. 213) Muito bem. E quem são os alunos que compõem essas universidades que tanto cresceram pelo país? Sim, justamente uma grande parte dessa parcela da sociedade mal instruída pelo ensino público.

Essas pessoas entram nas universidades privadas e, muitas vezes, não dão conta de concluí-la, não por, necessariamente, escassez de recurso, mas por desinteresse, por acreditar que não possui espaço naqueles locais, de que seu intelecto é limitado para o ambiente acadêmico. Mas é óbvio que isso não  é generalizado pois, e isso é digno de nota, acompanhamos, no mundo acadêmico afora, graças à boa vontade de instituições de ensino – sejam particulares ou públicas –, por meio de seus professores, profissionais que realmente se preocupam com o bom desenvolvimento intelectual de seus alunos, para que sejam, além de bons profissionais, cidadãos que exerçam, no mundo prático, condutas que visem modificar, para o bem, a realidade à sua volta e da comunidade em que vivem.

Concluído esse ponto acerca de nossa cultura acerca do Direito, passemos então a um debate mais específico, em que saímos de uma visão geral para outra mais específica, dentro da sala de aula.

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Sobre o autor
Rodrigo Rios Faria de Oliveira

Advogado inscrito na OAB.MG sob o número 68.418. Doutorando em Ciências da Linguagem. Mestre em Direito Civil. Especialista em Direito e Processo Tributário. Especialista em Direito do Trabalho. Professor universitário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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