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Do contrato estimatório e suas vicissitudes

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30/06/2005 às 00:00
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7. Duração do contrato

O contrato estimatório é sempre a termo, de duração determinada. O consignatário exerce os poderes de disposição ou de posse até um momento, para que cumpra sua obrigação alternativa.

O prazo para que o consignatário possa dispor da coisa (vender a terceiro ou comprar para si) deve ser estabelecido, o que significa dizer determinado pelas partes. Excepcionalmente, se as partes não estipularam prazo, devem ser observados os usos do tráfico e a finalidade do contrato. Não pode ser admitido prazo que não dê ensejo ao consignatário de vender as coisas que o consignante lhe entregou. Pode o consignante interpelar judicialmente o consignatário para que realize a venda ou pague no prazo que o juiz fixar.

Sustentou-se que a prévia determinação do prazo integraria os elementos existenciais do contrato estimatório, porque não poderia o consignatário manter indefinidamente o poder de dispor. Há situações, todavia, nas quais os prazos vão sendo estabelecidos, às vezes tacitamente ou pelos usos, como na hipótese de bens fornecidos e repostos regularmente (por exemplo, livros remetidos ao livreiro retalhista), que dependem de maior ou menor atração de clientes. O que é inadmissível é a ausência de qualquer prazo, ainda que varie de um a outro bem entregue ao consignatário. Transcorrido prazo razoável ou decorrente dos usos, cabe ao consignante promover a interpelação judicial do consignatário.

Encerrado o prazo sem pagamento do preço ou restituição da coisa consignada, o domínio transfere-se ao consignatário, que ficará obrigado a pagar o preço estimado. O não pagamento do preço, após o transcurso do prazo, resolve-se pelas regras gerais do inadimplemento, inclusive quanto às conseqüências pela mora (juros moratórios, multa contratual, perdas e danos, custos judiciais).

Não se considera inadimplente o consignatário se, dentro do prazo, se recusa a vendê-la por não encontrar interessado na compra ou por não encontrar quem pague valor superior ao preço estimado, correspondente ao seu lucro. O que não pode é dificultar, impedir ou embaraçar a venda. Nesta última hipótese, vencido o prazo, ainda que o domínio da coisa lhe seja transferido, cabe ao consignante a pretensão a indenização por perdas e danos, além da cobrança do preço estimado.


8. Opção de restituir a coisa consignada

No momento em que o consignatário recebe a coisa é devedor do preço ou da restituição. Se, dentro do prazo, não paga o preço tem de restituir. A coisa continua na propriedade do consignante dentro do prazo determinado, mas como prefere o preço à restituição, exigi-lo-á ao cabo do prazo.

A restituição da coisa consignada é opção livre do consignatário, sponte sua. Não tem o consignante pretensão contra aquele para restituição. Se o preço estimado demonstrou estar acima do praticado no mercado, ou se a coisa não despertou interesse nos possíveis destinatários, ou por qualquer razão inclusive de índole subjetiva do consignatário, este poderá restituir a coisa ao consignante. A restituição é direito subjetivo do consignatário, não podendo o consignante impedi-la ou limitá-la, pois violaria a natureza do negócio.

Impõe-se que o faça dentro do prazo determinado para a venda a terceiros.Se o prazo for ultrapassado não estará obrigado o consignante a receber a coisa em restituição. Poderá exigir o pagamento do preço diretamente do consignatário, em cuja titularidade se consolidará o domínio, independentemente de sua vontade. Nesta hipótese, a transmissão da propriedade opera-se para ele, que deve o preço.

O consignatário não poderá cobrar do consignante as despesas que efetuou para divulgar ou manter a coisa, salvo a indenização das benfeitorias necessárias, em virtude de frustração de venda, quando ou para restituir a coisa. São riscos inerentes a esse negócio peculiar. São também do consignatário os riscos da especulação, quando não se estabeleceu limite máximo de preço para a venda.

Os frutos da coisa (naturais ou civis) são do consignatário, que tem a posse própria. Se optar pela restituição da coisa, restituirá a posse e tudo que dela derivar, inclusive os frutos.

A restituição apenas opera seus efeitos liberatórios, para o consignatário, quando, dentro do prazo: a) foi efetuada a entrega em sentido físico ao consignante, ou a seu representante, no endereço estipulado no contrato; b) a coisa tenha sido entregue em sua integralidade. Recupera o consignante não apenas o poder de disposição mas a posse própria da coisa.


9. Impossibilidade da restituição da coisa consignada

O Código Civil estabelece o dever de pagar o preço da coisa consignada se a restituição se tornar impossível, ainda que por fato não imputável ao consignatário. Alberto Trabucchi encontra na obrigação alternativa do consignatário, de pagar a coisa mas com a faculdade de restituí-la, a justificativa para que assuma o risco inclusive da perda sem culpa sua. "Assim se explica que o risco do possível perecimento ou deterioração da coisa seja suportado pelo que recebe a coisa, o qual poderá aproveitar-se da faculdade de restituir a coisa recebida, tão somente quando esta se encontrar incólume em seu poder" [15].

O consignatário suporta o risco da perda da coisa; somente poderá valer-se da faculdade alternativa se a coisa existir na íntegra. Nessa circunstância desaparece seu direito de escolha, que apenas seria possível se o direito admitisse que ela pudesse ser feita antes da perda por declaração do devedor.

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A impossibilidade por causa não imputável ao consignatário pode ser temporária, cabendo distingui-la. Se a impossibilidade temporária não ultrapassar o prazo ajustado, permitindo ao consignatário exercer a faculdade de restituição, não afetará o exercício da escolha da obrigação alternativa. Se a impossibilidade ultrapassar o prazo, sem que nada possa fazer o consignatário para impedi-la, estará obrigado a pagar o preço.

Se a restituição da coisa se tornou impossível por fato imputável exclusivamente ao consignante (por exemplo, se fez contrato estimatório a respeito de bem que estava com vício ou defeito, que causou a deterioração da coisa) o preço não é devido.


Notas

1 Para maior desenvolvimento da matéria, cf. os comentários do autor aos arts. 534 a 537 do Código Civil, no vol. 6 dos Comentários ao Código Civil, Antônio Junqueira de Azevedo (Coord.), São Paulo: Saraiva, 2003, p. 242 a 271,

2 Cf. Teixeira de Freitas, Esboço do Código Civil, vol. 2, Brasília: Ministério da Justiça, 1983, p. 378.

3 Cf. Nicolò Visalli, Il Contratto Estimatorio nella Problematica del Negozio Fiduciario, Milano: Giuffrè, 1974, p. 4 e seguintes.

4 Cf. Tânia da Silva Pereira, Contrato Estimatório: Autonomia no Direito Moderno, in Estudos em Homenagem ao Professor Caio Mário da Silva Pereira, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 592.

5 Cf. Guido Biscontini e Lucia Ruggeri, Il Contratto Estimatorio, Milano: Giuffrè, 1998, p. 40.

6 Neste sentido, Giovanni Baldi, Il Contratto Estimatorio, Torino: UTET, 1960, p. 22-43.

7 Orlando Gomes, Contratos, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 237, considerava o contrato estimatório espécie de venda condicionada.. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2001, vol. III, p. 143, o incluiu, antes do novo Código Civil, nas modalidades especiais da compra e venda, tendo advertido que por causa de falta de sua tipicidade, vacilava-se na "invocação dos princípios relativos à compra e venda, ao mandato, à sociedade, à comissão". No Projeto de Código de Obrigações de 1965, do qual ambos os juristas participaram, o contrato estimatório era previsto como contrato típico, desvinculado da compra e venda.

8 Cf. Antônio Chaves, Tratado de Direito Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, São Paulo, 1984, vol. II, tomo I, p. 668.

9Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, vol. 39, p. 396.

10 Idem, ibidem, p. 392.

11 Interessante observar que após décadas de aplicação do Código Civil italiano de 1942, um dos poucos a tratar a matéria de modo explícito e distinto, permaneça a dúvida doutrinária acerca da natureza do contrato estimatório. Para Guido Giscontini e Lucia Ruggeri, Il Contratto Estimatorio, Milano: Giuffrè, 1998, p.11, "a intensa novidade do conteúdo do contrato estimatório impõe ainda hoje a necessidade de adequada qualificação. O art. 1.556 do Código Civil, descrevendo os efeitos do contrato estimatório, evidencia, para a doutrina prevalecente, o caráter real, ainda que, a bem dizer, essa disposição legal, descrevendo os efeitos do contrato, se limita a delinear um fenômeno de incerta conotação jurídica".

12 Cf. J. A. Penalva dos Santos, Contrato Estimatório em Doutrina, James Tubenchlak, Rio de Janeiro: Instituto do Direito, 1996, p. 491.

13 Cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. III, cit., p. 145..

14Tratado de Direito Privado, vol. 39, cit., p. 417.

15 Cf. Instituciones de Derecho Civi, Trad. Luis Martinez-Calcerrada, Madrid: ERDP, 1967, vol. 2, p.290. No mesmo sentido de constituir obrigação alternativa, Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. III, cit., p. 144.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Do contrato estimatório e suas vicissitudes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 725, 30 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6930. Acesso em: 26 abr. 2024.

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