Introdução
São Paulo, Agosto de 2017. Em um dia comum, como qualquer outro que seria rotineiro, certa estudante embarcou em transporte público da capital paulista. O trajeto seria realizado em ônibus de viação regular. Tudo permanecia na sua normalidade. No entanto, a jovem estudante não previa que naquele mesmo ambiente havia um homem com desejos lascivos e perturbadores e, aproveitando-se da superlotação, aproximou-se da moça a ponto de esfregar seu órgão genital nela até a ejaculação, fato que a deixou em estado de choque. O agente fora detido por populares ainda dentro do coletivo, sendo mantido sob domínio dos passageiros até a chegada de policiais militares. Foi preso em flagrante e conduzido até o 78º Distrito Policial, onde foi elaborado pela autoridade policial o respectivo auto de prisão em flagrante delito. Na audiência de custódia, no entanto, o flagrante foi relaxado e o agente colocado em liberdade, pois, de fato, até então, referida conduta, era classificada como contravenção penal de Importunação Ofensiva ao pudor, cuja pena era apenas de multa, ou seja, o contraventor assinara termo de compromisso de comparecimento em juízo e ganhou sua liberdade.
Até o dia 23 de setembro de 2018, quaisquer casos semelhantes ao suprarreferido, onde as vítimas se sentiam afrontadas, ultrajadas e humilhadas por agentes que aproveitando-se do “anonimato” que a multidão lhes proporcionava, utilizavam o transporte público das grandes cidades para satisfazer suas lascívias, quer ejaculando em suas vítimas ou utilizando-se de quaisquer outros meios, tais como, esfregando suas partes pudendas em outrem, passando-lhes as mãos nas nádegas ou seios, ou até mesmo roubando-lhes beijos.
No dia 25 de Setembro foi publicado no Diário Oficial da União a Lei 13.718/18 ,de 24/09/18, qincluiu no Código Penal Brasileiro o Artigo 215-A, Importunação Ofensiva ao Pudor, tipificando as condutas de Importunação Sexual e de divulgação de cena de estupro, ambas de ações públicas incondicionadas, revogando o artigo 61 da Lei de Contravenções Penais.
Antecedentes
Conforme já tratado no início deste artigo, condutas como esta eram punidas nos moldes do Artigo 61 da Lei de Contravenção Penal que dispunha o seguinte:
Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:
Pena - multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
Houve uma demora de mais de 70 anos para as autoridades que legislam no nosso país perceberem que uma conduta de tal gravidade não se poderia bastar em uma pena exclusivamente de multa. É importante salientar que, conforme o Código de Processo Penal, em casos em que não há a previsão de uma pena restritiva de liberdade, se a pessoa não concordar em comparecer em Juízo nos termos da Lei 9099/95 caberá a Autoridade unicamente , como último ato , lavrar o Auto de Prisão em Flagrante e por o agente em liberdade com base no Artigo 302 § 1o do referido código (grifos nossos):
Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto
§ 1o Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.
Havia uma desproporcionalidade total da resposta penal a um ato tão ultrajante, inescrupuloso e humilhante para vítima, punido apenas com uma multa, à luz da antiquada Lei de Contravencoes Penais. Autor e vítima poderiam sair ao mesmo tempo das Delegacias após a lavratura do termo circunstanciado, pois a própria lei proporcionava a regalia de não permanecer preso pela sua desqualificada conduta, fato que colocava em risco a vida da vítima, pois poderia se esbarrar com o autor a qualquer momento, sendo um dos motivos que muitas vezes inibia a vítima de registrar a ocorrência.
Entendemos que os tempos mudaram. Talvez em 1941 a Lei de Contravenções tivesse uma eficiência para a sociedade à época. Porém, nos dias atuais alguns de seus artigos acabaram sendo totalmente inconcebíveis e caíram no desuso, cabendo, assim, uma dependência da expertise do legislador em agilizar o quanto antes e criar leis que transformem o que antes era uma contravenção em crimes.
Sancionada pelo Ministro Dias Toffoli, Presidente do Supremo Tribunal Federal, no cargo de presidente em exercício, ela traz ao ordenamento jurídico penal alguns novos tipos penais que modificam e criam novas condutas no Título de Crimes contra a dignidade sexual do Código Penal, conforme trata já o Artigo 1º da lex
Art. 1º. Esta Lei tipifica os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, torna pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelece causas de aumento de pena para esses crimes e define como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo.
A partir dos efeitos desta lei revoga-se também o artigo 61 da Lei de Contravencoes Penais (Decreto Lei 3.688 de 3 de outubro de 1941), além da revogação do Parágrafo Único do Artigo 225 do Código Penal.
Atém-se às explanações proporcionadas neste artigo somente a criação do crime de importunação ofensiva ao pudor, pois foi o mais comentado e que acaba, infelizmente, sendo um dos crimes mais praticado nos transportes públicos brasileiros.
Diz o novo Artigo 215-A :
Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.
Será necessário uma observação mais profunda quanto a este novo tipo penal, que acaba sendo uma novidade no mundo jurídico. Passemos a uma dissecação deste novo artigo.
Sujeito Ativo e Passivo
A Lei não exclui o homem de sua caracterização. “Praticar contra alguém”pode ter em seu Sujeito Ativo qualquer pessoa, seja ela homem ou mulher, valendo, também, para o Sujeito Passivo. Não há expressão no caput quanto a alguma especialidade do agente, o que tornaria o crime de alguma maneira como próprio.
Tipo Objetivo
Comecemos entendendo o que seria o Ato Libidinoso de que trata a Lei Carlos Roberto Bittencourt, que traz brilhantemente uma explanação sobre o tema¹ (G.N):
Ato libidinoso é ato lascivo, voluptuoso, erótico, concupiscente, que pode ser, inclusive, a conhecida conjunção carnal (cópula vagínica) ou qualquer outro ato libidinoso diverso dela, por exemplo, a ejaculação, praticada na presença da vítima e até mesmo nela, “mas não com ela”, e sem a sua anuência. [...]
O legislador, quando descreve no tipo penal o “ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou de outrem”, criminaliza qualquer ato que envolva a libido, mas exclui os que envolvam violência, grave ameaça ou ainda a situação de vulnerabilidade da vítima. Estes atos não necessitam, exclusivamente, que exista o toque direto do agente com a vítima. O homem que ejacula em uma mulher comete o tipo penal que o agente que se aproxima da vítima e esfrega suas partes íntimas nela, satisfazendo a sua libido. Cabe salientar que, se houvesse a penetração, estaríamos diante de um tipo penal mais grave, podendo este ser enquadrado como um estupro ou, analisando o caso concreto, as condutas tipificadas nos artigos 215 ou ainda no 217-A, ambos do Código Penal.
A falta de anuência da vítima também é requisito claro e óbvio para a adequação típica, pois não há como pensar que, se a vítima concordasse com o ato, estaríamos diante de um tipo penal. Salutar seria entendermos que a concordância da vítima devia ser de livre e espontânea vontade, ou ainda que a vítima não esteja enquadrada em quaisquer das hipóteses de vulnerabilidade, seja ela menor de 14 anos ou que, por enfermidade ou qualquer deficiência, não tenha o necessário discernimento sobre o ato.
Analisemos ainda a questão da vítima que não tem discernimento total para consentir, seja ele pelo uso moderado de bebidas alcoólicas, que neste caso não seria a embriaguez total - mas que de certa forma influencia em sua capacidade de consentir -, e o agente, sabendo disso, se aproveita desta condição; nas hipóteses do 215-A, porém, o aplicador do direito deverá ter cautela sobre quais atos libidinosos foram praticados, pois se for algum tipo de penetração é configurado então o Estupro Mediante Fraude.
Na embriaguez total ou qualquer outra forma que torne a vítima na situação de vulnerável, de fato não será aplicado o Crime de Importunação Ofensiva ao Pudor, pois o agente se aproveita daquela condição que não permite que a vítima tenha plena capacidade de consentir sobre o ato, a exemplo da pessoa dormindo ou do menor de 14 anos de idade. Diante de tal fato, entender-se-á que pelo consagrado princípio da especialidade da norma, ter-se-á o crime do artigo 217-A, do Código Penal.
Por atos libidinosos entende-se a conjunção carnal, o sexo anal, o sexo oral ou ainda qualquer ato que promova a satisfação sexual do agente, seja ele a masturbação, o ato de se esfregar ou qualquer ato que ele promova com este fim.
O artigo 61 da Lei de Contravenções ditava que o ato de importunar alguém devia dar-se em local público ou acessível ao público, sendo para ele necessária a presença de um terceiro para o cometimento desta contravenção. No atual tipo não há a necessidade de que seja em local público. Pois bem, na privacidade do ambiente, sendo ele o domicílio ou qualquer outro compartimento privado, também temos a conduta típica, pois não há pressuposto de que seja necessário estar em algum lugar público para caracterização do crime, o que até então como contravenção o fato cometido dentro de uma casa por exemplo era nulo: “Nullum crimen sine lege”.
Tipo Subjetivo
O Tipo Subjetivo é o dolo. O agente deve ter vontade e cometer o fato buscando aquele fim. No caso é a prática do ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a lascívia sua ou de outrem. Não admite a forma culposa por falta de previsão legal..
Consumação
O ato de importunar alguém através de um ato libidinoso já consuma o crime. Entendemos este ser um crime formal. A necessidade de atingir a lascívia própria ou de outrem seria um exaurimento do crime
Como é previsto em outros países ?
Para comparação utilizamos o Código Penal do Estado de Nova York :
“ S 130.52 Forcible touching.
A person is guilty of forcible touching when such person intentionally, and for no legitimate purpose:
1. forcibly touches the sexual or other intimate parts of another person for the purpose of degrading or abusing such person, or for the purpose of gratifying the actor's sexual desire; or
2. subjects another person to sexual contact for the purpose ofgratifying the actor's sexual desire and with intent to degrade or abuse such other person while such other person is a passenger on a bus, train, or subway car operated by any transit agency, authority or company, public or private, whose operation is authorized by New York state or any of its political subdivisions.
For the purposes of this section, forcible touching includes
squeezing, grabbing or pinching.
Forcible touching is a class A misdemeanor.”
Quanto a pena prevista em um delito Class A misdemeanor há a previsão de multa, serviço comunitário, programa de reabilitação ou até um ano de prisão efetivamente. Ao compararmos, temos um avanço no ordenamento brasileiro quando punimos com mínima de 1 a 5 anos de Reclusão, que no Direito Penal admite até mesmo o cumprimento de pena no Regime Fechado, observando obviamente, os termos do artigo 59 do Código Penal.
Diferenças quanto aos crimes de Estupro
O novo tipo penal diferencia-se do crime de estupro por não prever que haja a necessidade de Violência ou Grave ameaça para o agente cometer o ato libidinoso. Estes são elementos do tipo e necessários para a configuração do delito de estupro, não sendo permitidos pelo princípio da especialidade que em casos que haja ímpeto ou brutalidade no cometimento dos atos libidinosos a possibilidade do enquadramento no artigo 215-A.
Conforme tratado anteriormente, quando o agente pratica algum ato contra pessoa em situação de vulnerabilidade como exemplo, seja ela dormindo, em embriaguez total, ou menor de 14 anos, sabendo o agente de tal condição e aproveitando-se desta, aplicar-lhe-se-ão os ditames previstos no Art. 217- A
Em aspectos processuais, ambos os crimes do Art. 213 quanto do 217-A estão presente no rol de crimes presentes na Lei 8072/90 e enquadram-se como Crimes Hediondos tendo condições específica de início do cumprimento de pena ou ainda frações diferentes quando da possibilidade de Progressão de Regime. Lembrando que o Art. 215-A não é considerado um crime hediondo pelo fato de estar relacionado na lei de crimes hediondos
Considerações Finais
O Legislador sabiamente criou um tipo penal rigoroso quanto aos atos de importunação ofensiva ao pudor. O novo tipo penal tem eficácia imediata e não retroagirá para atingir os condenados até então pela contravenção penal “Novatio Legis In Pejus” não sendo esta admitida pelo nosso Direito Penal. A pena prevista de 1 a 5 anos de Reclusão é um grande avanço frente a retrógrada pena de multa prevista na Lei das Contravencoes Penais.
Inicia-se assim um aspecto de prevenção terciária. Acreditamos que a pena de reclusão é um dos fatores que desencoraja eventuais práticas de atos libidinosos, sejam em transportes públicos ou na privacidade do lar. Lembrando que o tipo penal deixou claro que esta pena é se o fato não constituir crime mais grave, ou seja, se não se enquadra nas hipóteses do crime de Estupro ou ainda o crime de Estupro de Vulnerável. Antes tarde do que nunca, a Lei foi elaborada para evitar que a sensação de impunidade pairasse sobre a sociedade. Quanto a esta conduta, e apesar de recente, há grandes expectativas jurídicas sobre quais seriam as próximas etapas.
BIBLIOGRAFIA
BITTENCOURT, Carlos César -- Anatomia do crime de importunação sexual tipificado na Lei 13.718/2018 – disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-set-30/cezar-bitencourt-anatomia-crime-importunacao-sexual?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook – acesso em 01 de outubro de 2018 às 17:00
BRASIL, República Federativa – Decreto Lei 2848 de 1940 – Disponível em : http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm - acesso em: 01 de Outubro de 2018 às 17:30
BRASIL, República Federativa – Decreto Lei 3688 de 1941 – Disponível em: http://www2.câmara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3688-3-outubro-1941-413573-publicacaooriginal-1-pe.html -- acesso em: 01 de Outubro de 2018 às 17:45
NEW YORK, State Of – NY Penal Law – Disponível em: http://ypdcrime.com/penal.law/article130.htm?zoom_highlight=rape#p130.52 – acesso em: 01 de Outubro de 2018 às 17:55
AHKBARI, Kim -- Class A Misdemeanors – Disponível em: https://www.legalmatch.com/law-library/article/classamisdemeanor-laws.html -- acesso em: 01 de Outubro de 2018 às 17:55