5 A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO
O problema da coerência surge em função do ordenamento jurídico constituir-se por um conjunto de normas, as quais por emergirem de variadas fontes podem apresentar oposições entre si. Essas oposições somente podem ser avaliadas ou julgadas se levado em conta o conteúdo das normas, não bastando referir-se à autoridade jurídica da qual emanaram. É neste ponto que Bobbio diverge de Kelsen. Para Kelsen o sistema jurídico é fundamentalmente um sistema dinâmico – entendido este como um sistema puramente formal, que não se refere à conduta que as normas regulam, mas tão somente à maneira como essas normas foram postas. Para Kelsen, a existência de duas normas cujo conteúdo seja contraditório não torna ilegítimo o sistema nem invalida as normas contraditórias. Bobbio não admite esse ponto de vista porque considera que viola a idéia de sistema como totalidade ordenada: como considerar um sistema permeado de normas opostas como uma "totalidade ordenada"?
Bobbio apresenta então três concepções de sistema distintas, que foram desenvolvidas na filosofia do direito. O primeiro significado de sistema é no sentido de sistema dedutivo, no qual todas as normas de um ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais, considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema científico. Essa concepção de sistema foi típica do jusnaturalismo. A segunda concepção de sistema indica um ordenamento da matéria realizado através do processo indutivo, isto é, partindo do conteúdo das simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais e classificações ou divisões da matéria inteira, gerando um procedimento de classificação. Por fim, o terceiro significado de sistema é considerado por Bobbio o mais interessante e é o significado que será utilizado em todo o capítulo sobre a coerência do ordenamento. O ordenamento, nesse sentido, é um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Se houver normas incompatíveis, uma ou ambas devem ser eliminadas.
5.1 O problema das antinomias
Antinomia é a existência de normas incompatíveis entre si dentro de um sistema jurídico. A tradição, ao abordar o direito como um sistema no terceiro sentido acima apontado, irá afirmar que o Direito não tolera antinomias.
Ao definir-se normas incompatíveis como aquelas que não podem ser ambas verdadeiras, essas relações de incompatibilidade normativa serão verificadas em três casos:
1) entre uma norma que ordena fazer algo e outra que proíbe fazê-lo (contrariedade);
2) entre uma norma que ordena fazer e outra que permite não fazer (contraditoriedade);
3) entre uma norma que proíbe fazer e outra que permite fazer (contraditoriedade);
Além das situações acima descritas, para que haja antinomia é ainda necessário que:
1) as duas normas pertençam ao mesmo ordenamento
2) as duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade: temporal, espacial, pessoal e material [3].
A partir das observações acima, o conceito de antinomia fica ampliado, podendo ser considerada a antinomia jurídica como "aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade" (p. 88).
Paralelamente a essa concepção de antinomia proposta por Bobbio, há outras situações que as concepções tradicionais também atribuem o significado de antinomia, mas que Bobbio irá chamar de antinomias impróprias, para distinguir das antinomias já definidas, por ele consideradas como antinomias próprias.
As antinomias impróprias podem ser:
1) antinomia de princípio – refere-se ao fato dos ordenamento jurídicos serem normalmente inspirados em valores contrapostos, como, por exemplo, liberdade e segurança;
2) antinomia de avaliação – ocorre quando um delito menor é punido com uma pena mais grave que um delito maior.
3) antinomias teleológicas – têm lugar quando existe uma oposição entre a norma que prescreve o meio para alcançar o fim e a que prescreve o fim, de modo que se aplico a primeira não chego ao fim estabelecido na segunda.
5.2 Critérios para solução de antinomias
A presença de antinomias no sistema jurídico é considerada um defeito que o intérprete irá tentar eliminar. Surge aí a questão de qual das normas deverá ser eliminada e quais critérios poderão ser utilizados para realizá-la.
Ao tentar solucionar as antinomias, pode-se deparar com duas situações diferentes: 1) é possível resolver a antinomia a partir dos cirtérios tradicionais (cronológico, hierárquico e especialidade); 2) não é possível resolver a antinomia porque não se pode aplicar nenhum dos critérios existentes ou porque se podem aplicar ao mesmo tempo duas ou mais regras em conflito entre si. Às antinomias da primeira situação Bobbio chamará de antinomias aparentes (ou solúveis) e às da segunda situação de antinomias reais (ou insolúveis).
As regras fundamentais para a solução das antinomias aparentes (solúveis) são três:
1) critério cronológico – é aquele no qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a norma posterior (lex posterior derogat priori).
2) critério hierárquico – é aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior (lex superior derogat inferiori).
3) critério da especialidade - é aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, uma geral e outra especial (ou excepcional), prevalece a segunda (lex specialis derogat generali).
Contudo, há casos em que não é possível aplicar esses critérios facilmente, pois pode ocorrer antinomia entre duas normas contemporâneas, do mesmo nível ou ambas gerais. Nessa situação, os critérios acima indicados não servem mais e não existe um "quarto critério" que possa resolver esse tipo de antinomia. Alguns tratadistas mais antigos tentaram elaborar alguns critérios para tentar resolver esse tipo de antinomia, segundo a forma das normas antinômicas, que poderiam ser imperativas, proibitivas ou permissivas [4], porém deve-se reconhecer que essas regras não têm a mesma legitimidade daquelas deduzidas dos três critérios acima analisados.
Não havendo critério para resolver a antinomia, o juiz ou intérprete tem três possibilidades: 1) elimina uma das normas, 2) elimina as duas ou 3) conserva as duas. No primeiro caso, trata-se de interpretação ab-rogante, mas que não corresponde a uma ab-rogação em sentido próprio, já que o intérprete não tem poder normativo. O segundo caso ocorre normalmente quando a relação entre as normas não é de contradição, mas de contrariedade, no qual ocorre uma dupla ab-rogação [5]. A terceira solução é talvez aquela à qual o intérprete recorre mais freqüentemente e consiste em demonstrar que existe compatibilidade, que a suposta incompatibilidade é fruto de uma interpretação superficial ou ruim. É a chamada interpretação corretiva, que pretende conciliar duas normas aparentemente incompatíveis para conservá-las ambas no sistema, evitando assim o remédio extremo da ab-rogação.
A situação antinômica mais delicada, contudo, é aquela na qual pode acontecer que duas normas incompatíveis mantenham entre si uma relação em que se podem aplicar concomitantemente, não apenas um, mas dois ou três critérios, sendo que cada um que for aplicado levará a uma solução diferente. Sendo três os critérios, os conflitos entre critérios podem ser três tipos:
1) conflito entre o critério hierárquico e cronológico – neste caso, o critério hierárquico prevalece sobre o cronológico, pois do contrário a estrutura hierárquica do ordenamento perderia seu sentido.
2) conflito entre o critério da especialidade e o cronológico – neste caso, deve o critério da especialidade preponderar sobre o cronológico. Contudo, essa regra deve ser tomada com cautela e ter como fundamento uma ampla casuística.
3) conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade – neste caso, Bobbio afirma que é impossível uma resposta segura e que não existe uma regra geral consolidada. A solução dependerá do intérprete.
Esse problema indicado no item 3 acima traz à tona a questão da regra de coerência do ordenamento, que proibiria as antinomias no sistema jurídico. Essa questão, por sua vez, levanta também o problema da validade: a compatibilidade seria uma condição necessária para a validade de uma norma jurídica? Bobbio afirma expressamente que não. Não existe no ordenamento nenhuma regra de coerência e, portanto, duas normas incompatíveis do mesmo nível e contemporâneas são ambas válidas. Essas normas, entretanto, não podem ser ao mesmo tempo eficazes, no sentido de que a aplicação de uma no caso concreto exclui a aplicação da outra, mas são ambas válidas no sentido de que, apesar de seu conflito, ambas continuam a existir no sistema e não há remédio para sua eliminação. Assim, a coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento, pois a aplicação de duas normas contraditórias gerará decisões diferentes a casos semelhantes e viola dos princípios considerados importantes para os ordenamento jurídico: o princípio da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem) e o princípio da justiça (que corresponde ao valor da igualdade).
BIBLIOGRAFIA
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 4 ed. Brasília: EdUNB, 1994.
______. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.
______. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 3 ed. Brasília: EdUNB, 1995.
______. Teoria da norma jurídica. Bauru: Edipro, 2001.
FALCON Y TELLA, Maria José. Conceito e fundamento de validade do direito. Terra de Areia [RS]: Triângulo, 1998.
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2001.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
______. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
NOTAS
01 Atenção: divergência "perigosa" com Kelsen. Perigosa porque, a princípio, Kelsen negaria qualquer interferência do mundo do ser no mundo do dever ser jurídico – assim, quando Bobbio admite que o ordenamento só existe (ou seja, é válido) quando for eficaz, admite a necessidade de uma situação fática (do mundo do ser) como condição de validade para o ordenamento. A princípio, essa tese seria inadmissível para Kelsen. Contudo, verificar em Kelsen o capítulo sobre o "mínimo de eficácia", no qual ele admite a possibilidade de uma norma perder a validade por jamais ter tido qualquer eficácia. A admissão do "mínimo de eficácia" por Kelsen é considerado uma falha interna na sua Teoria Pura do Direito. Bobbio, por sua vez, irá admitir a possibilidade de uma norma ser válida sem qualquer eficácia – para Bobbio, o ordenamento é que precisa ser eficaz.
02 Observar que Bobbio, assim como Kelsen, exclui a preocupação com a justiça do âmbito jurídico, em função da concepção positivista do direito que exige uma ciência do direito avalorativa.
03 Ver exemplos no Cap. 3, início do item 4 (p. 88).
04 Ver detalhes no Cap. 3, item 6, p. 98-9.
05 Ver exemplos Cap. 3, item 6, p. 102.