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O preço da dor

27/10/2018 às 08:00
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O que se repara com a fixação de certa soma em dinheiro não é a lesão, abstratamente considerada, mas a dor moral, o sofrimento (ainda que físico), a humilhação, a quebra do decoro, da autoestima, a diminuição social, o afeamento da pessoa considerado do seu ponto de vista, isto é, do conceito que faz de si mesma (honra subjetiva), e do ponto de vista das pessoas com quem se relaciona habitualmente (honra objetiva).

É relativamente fácil quantificar o dano material porque esse consiste na diferença entre o valor atual do patrimônio do credor e aquele que teria se a obrigação tivesse sido cumprida como combinada ou se a lesão não tivesse ocorrido[1]. Essa noção aritmética de dano não basta, contudo, para a indenização do dano moral porque esse não é quantificável, não sendo possível medi-lo por uma soma em dinheiro ou por qualquer outro tipo de ressarcimento. Se patrimônio é o conjunto das relações jurídicas de uma pessoa, apreciáveis em dinheiro[2], dano moral é toda desvantagem experimentada em nosso patrimônio jurídico imaterial, como o corpo, a vida, a saúde física, psíquica e emocional, a honra, o crédito, o nome, o bem-estar, a capacidade de aquisição, etc)[3]. Durante muito tempo os tribunais brasileiros afirmaram que a “dor não tem preço” e por isso negaram, sistematicamente, indenização por lesões morais às pessoas. Danos morais são inquietações graves do espírito, turbações de ânimo, desassossego aviltante e constrangedor que tira a pessoa do eixo de sua rotina a ponto de lhe impor sofrimento psicofísico cuja sequela é facilmente identificável se comparado o comportamento atual do ofendido e aquele outro, anterior à conduta ofensiva[4]. Numa palavra, dano moral é todo sofrimento que não seja causado por uma perda pecuniária[5], é a “penosa sensação de ofensa, na humilhação perante terceiros, na dor sofrida, enfim, nos efeitos puramente psíquicos e sensoriais experimentados pela vítima do dano, em consequência deste, seja provocada pela recordação do defeito da lesão, quando não tenha deixado resíduo mais concreto, seja pela atitude de repugnância ou de reação ao ridículo tomada pelas pessoas que o defrontam”[6].

Em certas circunstâncias, não se exige prova da consequência da agressão moral (prejuízo concreto)[7] porque a sequela moral é subjetiva[8]. Nesses casos, o dano moral existe in re ipsa, isto é, deriva do próprio fato ofensivo, da coisa mesma, de modo que, provada a ocorrência do fato lesivo, a sequela moral aflora como presunção hominis (ou facti), que decorre das regras da experiência comum, daquilo que ordinariamente acontece[9]. Basta a prova do fato e do nexo causal para que a dor moral se presuma, pois se liga à esfera íntima da personalidade da vítima e somente ela é capaz de avaliar a extensão de sua dor. Os pais não precisam provar a dor moral que sofrem pela morte de um filho vítima de acidente do trabalho, a mulher ou o homem não precisam provar a dor moral que decorre do vexame de terem sido abandonados no altar no dia do casamento, o empregado não precisa provar a dor moral de ser conduzido algemado a uma delegacia de polícia sob acusação da empresa de ter furtado um bem de valor do patrão ou certa quantia em dinheiro. Todos esses exemplos configuram lesão in re ipsa[10] cuja dor moral dispensa qualquer prova.

Superada essa questão retórica de saber se o bem moral pode ou não ser indenizado, e pacificado o entendimento de que tanto quanto os bens materiais os valores morais de uma pessoa são bens jurídicos que devem ser tutelados, a discussão mudou de rumo e os tribunais passaram a debater outras duas outras questões igualmente importantes: que tipo de lesão constitui, efetivamente, dano a um bem imaterial, e qual o valor das indenizações.

Essas duas questões estão longe do consenso nos tribunais e basta um passar de olhos nos cadernos autorizados de jurisprudência para se ter ideia de que nesses dois aspectos a responsabilidade civil ainda é uma terra de ninguém.  Pequenas agressões do dia a dia, próprias de quem vive em uma sociedade invasiva e pouco solidária, são judicializadas sem a menor necessidade, e pequenos prejuízos que poderiam ser reparados com um sincero pedido de desculpas rendem milhões aos advogados e suas pretensas “vítimas”. Há, reconheço ⸺ e não sem um certo constrangimento acadêmico ⸺, o outro lado da moeda: lesões gravíssimas são subestimadas pelo judiciário e apenadas com indenizações irrisórias, e isso, além de desacreditar a Justiça, aprofunda na vítima a sensação de angústia, de impunidade e de impotência. O escárnio da justiça com essas indenizações pífias talvez constitua lesão ainda mais grave que a própria agressão original e crie no agressor a impressão de que vale apena insistir no delito.

O que se repara com a fixação de certa soma em dinheiro não é a lesão, abstratamente considerada — que essa, sendo subjetiva, não pode ser medida eficazmente nem mesmo pela própria vítima —, mas a dor moral, o sofrimento (ainda que físico), a humilhação, a quebra do decoro, da autoestima, a diminuição social, o afeamento da pessoa considerado do seu ponto de vista, isto é, do conceito que faz de si mesma (honra subjetiva), e do ponto de vista das pessoas com quem se relaciona habitualmente (honra objetiva)[11]. A indenização, por mais polpuda que seja, nunca será restitutio in integrum (restituição integral, indenização pelo todo) pela só-razão de que não se pode conhecer, exatamente, a extensão do dano, nem pretium doloris (preço da dor) porque dor não se paga em dinheiro. É um mero conforto material dado à vítima. Não pode ser exorbitante a ponto de constituir-se em lucro capiendo (captação de lucro) nem minguado a ponto de deixar na vítima e no agressor a sensação de impunidade[12].

Quanto ao primeiro aspecto ⸺ o que é lesão moral ⸺, a doutrina se apoia em algumas premissas. A primeira, é que dano não é fonte de lucro[13], daí o juiz levar em conta o binômio necessidade do ofendido e possibilidade do ofensor. A segunda, é a de que nem todo dano é indenizável. Apenas o injusto o é. São danos justos, e portanto irreparáveis, os que provêm das forças da natureza ou do acaso (caso fortuito e força maior) e aqueles assim conceituados pelo próprio direito, como a legítima defesa própria ou de terceiros, a devolução da injúria, o desforço pessoal e a destruição de coisa para remoção de perigo, entre outros, ou aqueles causados pelo próprio lesado (culpa exclusiva da vítima).

Nem todo sofrimento, dissabor ou chateação em razão de uma ofensa tipifica dano moral[14]. É necessário que a agressão extrapole os aborrecimentos normais da vida em sociedade[15]. A noção de “aborrecimentos normais” é também casuística e depende de uma avaliação objetiva e subjetiva que somente o juiz pode fazer diante do caso concreto. Por fim, a doutrina recomenda que na avaliação de situações de fato onde se pede reparação moral o juiz siga a lógica do razoável, isto é, que tome por paradigma o meio-termo entre o homem frio e insensível e o homem extremamente sensível[16].

No que se refere ao valor da indenização pela lesão moral, têm sido inúteis todas as tentativas de uma tarifação. É melhor que seja assim.

A Lei nº 13.467/2017[17], ao positivar a discussão do dano moral no âmbito da CLT, introduziu os arts.223-A a G, nestes termos:

 “Art.223-A. Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título.”

“Art. 223-B. Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação.” 

“Art. 223-C. A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física.”

“Art.223-D. A imagem, a marca, o nome, o segredo empresarial e o sigilo da correspondência são bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa jurídica.”  

“Art.223-E. São responsáveis pelo dano extrapatrimonial todos os que tenham colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, na proporção da ação ou da omissão.”

“Art.223-F. A reparação por danos extrapatrimoniais pode ser pedida cumulativamente com a indenização por danos materiais decorrentes do mesmo ato lesivo.

§1º  Se houver cumulação de pedidos, o juízo, ao proferir a decisão, discriminará os valores das indenizações a título de danos patrimoniais e das reparações por danos de natureza extrapatrimonial.  

§2º  A composição das perdas e danos, assim compreendidos os lucros cessantes e os danos emergentes, não interfere na avaliação dos danos extrapatrimoniais.”

“Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará: 

I - a natureza do bem jurídico tutelado;  II - a intensidade do sofrimento ou da humilhação;  

III - a possibilidade de superação física ou psicológica; 

IV - os reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão; 

V - a extensão e a duração dos efeitos da ofensa;  

VI - as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral; 

VII - o grau de dolo ou culpa; 

VIII - a ocorrência de retratação espontânea;  

IX - o esforço efetivo para minimizar a ofensa;  

X - o perdão, tácito ou expresso; 

XI - a situação social e econômica das partes envolvidas;  

XII - o grau de publicidade da ofensa. 

O art.223-A positiva o dano moral na CLT. Antes, não havia nenhuma regra sobre o assunto. Já disse, em outro artigo de doutrina, que a expressão apenas contida no caput do art.223-A não deve induzir o intérprete a crer que apenas esse novo capítulo pode ser aplicado no processo pelo juiz do trabalho na aferição da lesão moral. Obviamente, e como a própria CLT prevê, a legislação processual comum e todas as demais leis extravagantes podem ser aplicadas. O art.223-B tipifica a lesão moral e nomina o titular da reparação. Ainda aqui, o fato de dizer que os ofendidos (pessoa física ou jurídica) são titulares exclusivos do direito à reparação não pode, obviamente, excluir os herdeiros e descendentes legais da vítima, assim como não impede que o sucessor da pessoa jurídica também seja titular da reparação porque na sucessão o sucessor assume ônus e bônus. Também em artigo anterior já expliquei que o rol dos arts.223-C e D da CLT é meramente exemplificativo. Há outros bens não albergados ali que são, tanto quanto os outros, passíveis de tutela jurídica. O art.223-E arrola os sujeitos passivos da obrigação de indenizar por ato ilícito, mas é claro que também ali a indenização pode ir além da pessoa dos ofensores diretos e atingir herdeiros ou os próprios titulares da pessoa jurídica. O art.223-F espanca outra dúvida que já atormentou a doutrina e que consistia em saber se a pretensão à indenização por dano moral podia ser cumulada com indenizações materiais decorrentes do mesmo ato lesivo. Essa questão, embora já pacificada em súmula do STJ, era duvidosa no âmbito do processo do trabalho. O §1° do art.223F é norma programática dirigida ao juiz e determina a forma como as indenizações por danos material e moral devem constar da sentença. Por fim, o art.223-G dá ao juiz parâmetros para a aferição da lesão moral. Ainda aqui, como já dito em outro artigo, a lista de pressupostos é meramente exemplificativa.

O dispositivo da Lei nº 13.467/2017 que certamente trará maior inquietação doutrinária e jurisprudencial será o §1° do art.223-G. Está dito:

“§1º  Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:  

I - ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido; 

II - ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido; 

III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido;  

IV - ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.  

§2º  Se o ofendido for pessoa jurídica, a indenização será fixada com observância dos mesmos parâmetros estabelecidos no §1º deste artigo, mas em relação ao salário contratual do ofensor. 

§3º  Na reincidência entre partes idênticas, o juízo poderá elevar ao dobro o valor da indenização.”  

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A única certeza que se poderá ter no processo será a base de cálculo (o valor do último salário contratual do ofendido) e o número de parcelas indenizatórias (três, cinco, vinte e cinquenta, respectivamente) segundo o grau das ofensas. Ainda aqui, será preciso distinguir entre salário e remuneração. Mas o que é ofensa de natureza leve, média, grave e gravíssima fica, ainda desta vez, a critério exclusivo do juiz.


Notas

[1]  POLACCO. Le obbligazione nel diritto civile italiano, vol. I,nº 126.

[2]  STOCCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil, Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p.1.179.

[3]  ENNECERUS. Direito das Obrigações, vol.. I,§10.

[4]  BITTAR, Carlos Alberto, Op. et p.cit: “... os morais se traduzem em turbações de ânimo, em reações desagradáveis, desconfortáveis, ou constrangedoras, ou outros desse nível, produzidas na esfera do lesado. Atingem, respectivamente, a conformação física, a psíquica e o patrimônio do lesado, ou seu espírito, com as diferentes repercussões possíveis...”.

[5]  AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil, 11ª edição, 2006, Ed. Renovar, p.1008, diz, citando acórdão de Pedro Lessa: “O dano moral é o que se sofre como repercussão de um mal ou dano não conversível em dinheiro. A indenização por dano moral tem por fim ministrar uma sanção para a violação de um direito que não tem dominador econômico. Não é possível a sua avaliação em dinheiro, pois não há equivalência entre o prejuízo e o ressarcimento. Quando se condena o responsável a reparar o dano moral, usa-se de um processo imperfeito, mas o único realizável, para que o ofendido não fique sem uma satisfação”.

[6]  AGUIAR DIAS, José de; cit., p.1.009.

[7]  O II TACSP-Ap. 630.010-0/6, de 22/4/2002, Rel. Juiz Artur Marques, disse: “É presumível a dor que dá ensejo à indenização por dano moral  pois se trata de cônjuge e filhas.

[8]  Em sentido contrário, CIANCI, Mirna. O valor da reparação moral. Ed. Saraiva, 2003, p.44, verbis: “O reconhecimento do dano moral depende da verificação do efetivo abalo causado à esfera ideal do ofendido”.

[9]  CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, Malheiros Editores, 2ª ed., 1998, p.80.

[10] “Que decorre da própria coisa”.

[11] MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rego. Elementos da Responsabilidade Civil por Dano Moral. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.103/104.

[12] SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Responsabilidade Civil. Ed. Forense, RJ, 1977, p.316/317.

[13] CAVALIERI FILHO, Sergio, op.cit.,p.81.

[14] CAVALIERI FILHO, Sergio, op.cit.,p. 78.

[15] CAVALIERI FILHO, Sergio, op.cit.,p.78, diz: “Nessa linha de princípio, só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos”.

[16] CAVALIERI FILHO, Sergio, op.cit.p.76.

[17] Reforma Trabalhista, em vigor em 11 de novembro de 2017.

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Sobre a autora
Luiza Steele

Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STEELE, Luiza. O preço da dor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5596, 27 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69907. Acesso em: 19 abr. 2024.

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