CAPÍTULO III – Discriminação indireta
Roger Raupp Rios (2008) defende que a maior parte das práticas discriminatórias não é realizada explicitamente. Para ele, a discriminação é um fenômeno objetivo e difuso, de modo que para enfrentá-la, não basta a censura em face das manifestações intencionais explícitas ou implícitas. Distinções ilegítimas nascem, crescem e se reproduzem no seio social ainda que não haja vontade em discriminar. Segundo ele, comportamentos sociais, e até mesmo normativos, que carecem de carga intencional prima facie, são capazes de influir distintamente sobre os extratos sociais, fomentando de maneira inconsciente preconceitos e estereótipos que não se coadunam com a ordem constitucional (Rios, 2008, p. 117).
O autor faz uma abordagem através do direito comparado afirmando que as legislações australiana, britânica e italiana entendem que a discriminação indireta é um tratamento diferenciado, não intencional, baseado em um critério, condição ou prática inexigível e com lesão a certos grupos. No direito europeu, há uma previsão, condição ou prática aparentemente neutra, mas que gera uma desproporção substancial em membros de grupos identificáveis que, em razão disso, forma uma situação de desvantagem, salvo se tal prática, conduta ou previsão sejam apropriados e necessários para serem justificados objetivamente.
Ao analisar o julgamento de Brotehrhood of Texas vs. United States, Raupp Rios (2008, p. 119) sustenta que o disparate impact é definido como práticas empregadas que são aparentemente neutras nos diferentes grupos, mas que incidem de maneira mais intensa sobre um grupo e que não podem ser justificadas pelas necessidades dos negócios. Em tais práticas, não se exige a comprovação da motivação discriminatória. O disparate impact (discriminação indireta) diferencia-se do disparate treatment (discriminação direta) porque esse pressupõe a intencionalidade.
A discussão da discriminação indireta no direito norte-americano está primordialmente na esfera trabalhista, adverte Rios, mas sua formulação aplica-se a outras situações e áreas.
Inicialmente, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Washington vs. Davis, ao examinar o Civil Right Acts, restringiu a aplicação da equal protection doctrine, fundada na 14ª Emenda, para os casos de discriminação direta. Diante disso Rios (2008, p. 120) ressalta que o cerne do debate jurídico recai sobre a amplitude do princípio da igualdade no ordenamento americano e suas consequências, pois a própria Suprema Corte possuía entendimento mais restritivo sobre o tema, ao passo que reconhecia a possibilidade do legislador expandir sua aplicabilidade. Nesta esteira, alguns julgados se destacam.
No caso Griggs vs. Duke Powers Co, discutiu-se a utilização de testes de inteligências para contratação ou promoção de professores em face da alegação de que uma percentagem muito maior de negros era reprovada (58% de aprovação entre brancos e 6% entre negros) em contraposição à neutralidade racial dos testes e na livre iniciativa do empregador. A Suprema Corte, por unanimidade, considerou inconstitucional tais testes em face do caráter discriminatório dos resultados obtidos (impacto real diferenciado), pois os empregados brancos possuíam significativamente maior formação que os empregados negros, de modo que a imposição de tais testes perpetrava obliquamente a continuidade da ação discriminatória. Para aquele Tribunal, o conceito de discriminação deve ser interpretado amplamente, não alcançando apenas medidas com intenção discriminatória, mas também as medidas com impacto racial diferenciado, ainda que não intencionais. Práticas aparentemente neutras e sem intenção não podem ser mantidas se elas produzem resultados discriminatórios. Tal decisão, de 1971, abriu caminho para o desenvolvimento do conceito de discriminação indireta em vários países.
No caso Wards Cove Packing Inc vs. Atonio, em 1989, discutiu-se a questão do ônus da prova em face do debate da divisão do trabalho em uma indústria de salmão em lata entre um grupo, com menores salários de filipinos e nativos do Alasca responsável pelo enlatamento do peixe, e outro, com salários elevados, composto por brancos e que tinham funções de administração, chefia e planejamento. A maioria concluiu que os autores não produziram prova prima facie da discriminação indireta (disparate impact), sendo necessária mais do que uma simples comparação da porcentagem de brancos entre os dois grupos. Caberia ao demandante identificar qual prática empregatícia provoca tal diferenciação, bem como fazer a correlação da distribuição percentual considerando a qualificação da população local (Rios, 2008, p. 123).
Esse precedente revelou a dificuldade para o combate à discriminação indireta, gerando uma reação legislativa por parte do Congresso americano que alterou o Civil Rights Act em 1991, passando a exigir do demandado a comprovação da necessidade da prática do ato cujo efeito discriminatório se combate.
A partir das decisões dos casos Griggs e de Wards Cove e do Civil Rights Act de 1991, Raupp Rios esclarece que o demandante passou a ter que: i) identificar a prática que causa o efeito discriminatório, salvo se impossível; ii) demonstrar estatisticamente que essa medida causa um impacto diferenciado que atinge um grupo específico protegido pela igualdade; iii) demonstrar os efeitos concretos onde tal prática produz o impacto diferenciado.
A Constituição brasileira não fixa qualquer entendimento restritivo do princípio da igualdade e por diversas vezes ela apresenta normas igualitárias e antidiscriminatória, ao passo que os tratados internacionais de direitos humanos, incorporados à legislação brasileira, consagram a defesa contra a discriminação indireta. Rios (2008, p. 132-134) aponta que o STF, na MC-ADI 1.946-DF, rel. Min. Sydney Sanches, DJU 4/9/2001, afastou a impacto diferenciado e chancelou a discriminação indireta na discussão sobre o limite do pagamento do auxílio-gestante pelo INSS.
Charles Lawrence III (1987, p. 356, apud RIOS, 2008, p. 133), a partir de uma perspectiva psicológica, identificou a natureza inconsciente da discriminação e sublinhou a necessidade do disparate impact. Ele propôs ir além do debate acerca da intencionalidade da discriminação e identificou dois fatores que dificultam o reconhecimento de uma discriminação inconsciente, difusa e que tem consequências altamente efetivas. O primeiro fator é a existência de um mecanismo de defesa, na qual o indivíduo procura defender-se diante do desconforto da culpa, negando ou recusando-se a reconhecer a presença de ideias, desejos e crenças discriminatórias. O segundo fato é a onipresença de estereótipos raciais na cultura por meio da qual são transmitidas tacitamente certas convicções. Diante disso, Rios (2008, p. 134) propõe que a Justiça, ao analisar uma conduta ou medida governamental, utilize o critério do significado cultural para aferir, a exemplo de um antropólogo cultural, se tal medida transmite uma mensagem simbólica carregada culturalmente de um significado racial, isto é, se seus resultados reforçam estereótipos e estigmas, hipótese em que a medida será discriminatória.
Em sua obra, Rios (2008, p.135) lembra que as teorias sociológicas da discriminação nos Estados Unidos abordam a questão por duas perspectivas: a tradicional, centrada em comportamentos discriminatórios praticadas por indivíduos ou grupos, e a institucional, preocupada com a origem da discriminação à luz da dinâmica social, do ambiente social e das organizações sociais. Essa última enfatiza a importância do contexto social e organizacional como gênese do problema. Com base nessas premissas, Raupp Rios (2008, p. 136) desenvolve um paralelo entre ambas a partir da sistematização trazidas porJ. Feagin e C. Feagin (1978, p. 22), que elaboraram uma tabela comparativa tomando os elementos que compõem uma discriminação:
Tabela: perspectivas sobre a discriminação
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Elemento |
Perspectiva tradicional |
Perspectiva institucional |
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Autor da discriminação |
individual ou pequenos grupos |
Multiplicidade |
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Conduta discriminatória |
individual ou múltipla’ |
Múltipla |
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Frequência da conduta |
episódica ou esporádica |
contínua ou rotineira |
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Vítima da discriminação |
indivíduo ou grupo |
indivíduo ou grupo |
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Publicidade da conduta |
Explícita |
explícita ou implícita |
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Dimensão do agente |
pessoa ou grupo pequeno e identificável |
instituições ou organizações |
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Vontade |
intencional (especialmente preconceito) |
intencional ou não intencional |
Fonte: RIOS, 2008, p. 136
Pela teoria institucional, as ações individuais ou coletivas produzem efeitos discriminatórios por estarem inseridas numa sociedade cujas instituições (conceito que inclui normas e práticas informais de organização) atuam em prejuízo a certos indivíduos ou grupos, objeto da discriminação, de modo que tais práticas são frutos do inconsciente dos indivíduos que se inserem nesta sociedade de valores derivados da supremacia do grupo dominante. Seu foco é a origem e a perpetuação da discriminação. Por isso, é inadequado combater a discriminação apenas na modalidade intencional.
A literatura norte-americana identifica como fator fundamental para a origem, reprodução e perpetuação da discriminação a situação privilegiada vivenciada por grupos dominantes, de modo que os valores e padrões sociais são criados sob a perspectiva destes indivíduos. Raupp Rios salienta que a ideia de uma normalidade social, que valoriza certas escolhas e comportamentos e desvaloriza outros que, continuamente, necessitam ser justificados. Desconsiderar a teoria institucional de discriminação, com o esvaziamento do disparate impact, enfraquece o princípio da igualdade, legitimando todo o racismo que vai além da discriminação racial.
Para Rios (Rios, 2008, p. 140), a discriminação institucional demonstra que o “mérito individual” depende da concessão de prêmios e de punições de acordo com o grau de adesão ou resistência a esses parâmetros, estabelecidos por uma pseudoneutralidade criada pelos grupos dominantes. Daí porque muitos benefícios recebidos por tais indivíduos não sejam vistos por eles como privilegiados, mas sim como “mérito”. A teoria institucional é necessária em face do “mérito individual”, revelando uma impropriedade de avaliação desse mérito e do demérito dos demais.
Rios trabalha ainda com os conceitos de assimilacionimo, o multiculturalismo e o pluralismo cultural.
Assimilacionismo é um processo social através do qual membros de etnias ou raças de grupos subordinados ou identificados como inferiores adotam padrões culturais e sociais de grupos dominantes em detrimento daqueles que originalmente os caracterizavam (melting pot). Trata-se de um processo multifacetado que pode ocorrer pela: i) aculturação, onde os conceitos do grupo minoritário cedem em face daqueles propagados pelo grupo dominante; ii) assimilação cultural, em que os indivíduos são gradativamente dissolvidos nas instituições sociais do grupo prevalecente.
A assimilação revela-se como corolário de práticas discriminatórias institucionais, pois aponta para eventual dissolução do grupo minoritário no majoritário (Rios, 2008, p. 141). No julgamento do caso Rogers vs. American Airlines, discutiu-se a proibição do uso de certas tranças nos cabelos de mulheres negras e associadas à afirmação da identidade racial e a Corte Distrital de Nova Iorque entendeu pela assimilação estética de que a empregada deve adaptar-se à regra da companhia como qualquer outro empregado, impondo “verdadeira anulação da identidade cultural da empregada negra” (Rios, 2008, p. 142).
O pluralismo cultural, por sua vez, permite a precária sobrevivência da identidade e cultura próprias destes grupos, porém os restringe a parcelas diminutas e isoladas dos demais, preservando-o da dissolução no seio dos dominantes. Nesse pluralismo, a sociedade se torna estratificada e hierarquizada, surgindo níveis de hierarquia entre os indivíduos, colocando-os sobre tensão constante.
O multiculturalismo, o menos agressivo dentre os três, pressupõe a inexistência de padrões de superioridade-inferioridade entre os grupos raciais e étnicos, mas os enxergam como uma simbiose societária, respeitando-se a área de cada contingente social, mas o observando na sua totalidade e também as interações existentes entre si.
Rios assinala que disparate impact procura evitar a generalização de parâmetros específicos do grupo dominante, assumidos como neutros e imparciais, e atua também na hierarquização de tendências raciais, podendo despertar oposição dos assimilacionistas e dos pluralistas culturais.
A discriminação, pela sua onipresença e difusão, sempre estará presente e desafia inclusive as políticas sociais de cunho universalistas. A teoria institucional conduziria a impossibilidade de superação da discriminação, mas, apesar disso, o disparate impact é a resposta jurídica mais adequada porque volta sua atenção para os difusos e arraigados efeitos das práticas discriminatórias aparentemente neutras e não intencionais.
Raupp Rios (2008, p. 146), a partir da concepção de Barbara Flagg (1998, p. 144-148), afirma que, em uma sociedade em que há uma dominação racial, aparece o “fenômeno da transparência”, de modo que a raça dominante (a branca, por exemplo) desconsidera inconscientemente sua raça (inconsciência da branquidade e a compreensão da negritude como diferença). Esse sentimento inconsciente é a todo momento confrontado por Flagg na tentativa de despertar os indivíduos para sua existência, e diante disso propõe o uso de disparate impact sob duas perspectivas: de quem pratica a discriminação (modelo da previsibilidade) e do quem a sofre (modelo das alternativas).
O modelo da previsibilidade do impacto discriminatório considera, em conjunto com ou alternativamente à prova estatística, a previsibilidade dos efeitos discriminatórios das medidas aparentemente neutras e não intencionais como elemento constitutivo de um prima facie case. Ele pode ser descrito como um modelo a partir do ponto de vista do agente discriminador, na medida em que toda a análise está centrada nos efeitos do critério por este eleito e na transparência racial que este critério pode estar carregando (Rios, 2008, p. 147). Esse modelo permite ver que o critério utilizado está associado à população dominante, de modo que o acusado poderá justificar a prática como business necessity.
O modelo das alternativas permite vislumbrar consequências mais diretas do fenômeno da transparência, pois analisa a estrutura de ambientes de trabalho e de organizações pela distribuição das etnias, do seguinte modo:
(1) diante de um ambiente predominantemente branco ou estruturado de um modo em que brancos ocupassem majoritariamente posições de decisão, medidas com impacto racial diferenciado prejudicial às pessoas negras seriam presumidas discriminatórias, ainda que aparentemente neutras e não intencionais; (2) a defesa, diante deste fato e da presunção por ele desencadeada, teria a oportunidade de justificar o critério empregado em tal medida e os objetivos por ele almejados; (3) respeitados tais objetivos, a parte autora, então, poderia propor alternativas à medida discutida, cujo impacto diferenciado não fosse racialmente discriminatório; (4) a defesa, frente a tais alternativas, teria o dever de adotar uma delas, a não ser que a adoção de qualquer uma das alternativas se revelasse descabida (Rios, 2008, p. 148-149).
O primeiro modelo possui maior facilidade para ser incorporado à dinâmica dos tribunais, a medida discriminatória e impõe ao agente a adoção de outra medida diversa da reprovada e o segundo, mais eficaz em atacar o problema, limita a liberdade de ação do agente obrigando-a a adotar uma dentre as medidas propostas. Segundo Rios (2008, p. 149), há um dever de uso do meio menos discriminatório, sob pena de violação de um dever jurídico de proteção alheia. Tal dever, em um ambiente de trabalho, por exemplo, inclui os cuidados com a segurança física e proteção em face de colegas e superiores e, também, a proteção em face do assédio sexual, discriminação racial e étnica e a adequada acomodação de grávidas ou por orientação religiosa.
Nesse contexto, haveria uma responsabilização por danos, por negligência, quando era possível adotar uma alternativa menos discriminatória, acaso possível e adequada às suas finalidades. A discriminação indireta, ainda que aparentemente neutras e não intencionais, produzem danos a indivíduos e grupos, por ignorarem características fundamentais de suas identidades (como sexo, religião, peso, altura, etc.), reproduzindo uma mensagem social e diminuindo as possibilidades de participação, adverte Raupp Rios. (Rios, 2008, p. 150)
Havendo uma relação direta entre a proteção jurídica dada a um determinado direito e a importância deste direito propriamente dito, o modelo proposto extrapola o caráter de mera repressão a uma discriminação efetivamente realizada, para se tornar um mecanismo de combate às fontes da própria discriminação.
O conceito de discriminação indireta é útil no Brasil, propiciando uma maior eficácia possível do princípio da igualdade, segundo Rios. Há diversas representações e medidas, além da citada decisão do STF que limitou o valor da licença-gestante, que constituem mecanismos de discriminação indireta de grupos não dominantes, além de dados que revelam a desproporção social existente no país.
A responsabilidade civil por culpa, sob a modalidade da negligência, por omissão que conduz à grave lesão à dignidade e ao patrimônio alheio, danos previsíveis, pode ser aplicada nos casos de discriminação indireta.
Raupp Rios defende (Rios, 2008, p. 153) o aperfeiçoamento do direito processual brasileiro para dotá-lo de instrumentos que permitam enfrentar a dinâmica do fenômeno discriminatório.