CAPÍTULO IV – Ações afirmativas
Os Estados Unidos exerceram relevante papel histórico e social para o desenvolvimento de tais medidas, influenciando diretamente na discussão sobre o tema, inclusive no Brasil. As ações afirmativas estão cada vez mais se inserido na centralidade do debate sobre combate à discriminação no Brasil, especialmente após a Constituição Federal de 1988, e após a publicação de algumas obras e artigos.
No ordenamento brasileiro, para alguns o princípio da igualdade (artigo 5º da Constituição) tem dimensão meramente formal, diversamente do que entendeu o STF[18]. Todavia, é possível extrair sua dimensão material, a legitimar as ações afirmativas, nos valores e objetivos fundamentais da República, especialmente quando propugna pela edificação de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos ou desigualdades sociais e regionais, tendo por valor basilar a dignidade da pessoa humana (artigos 1º e 3º da Carta Magna).
Raupp Rios (2008, p.157-158) aponta a dificuldade de estabelecer um conceito unívoco sobre o tema de ações afirmativas, como “discriminação inversa”, “discriminação benigna” ou “tratamentos preferenciais”. A denominação “ações afirmativas” surge como uma evolução de programas focados meramente na igualdade racial, passando a envolver diversos critérios que ensejavam discriminação, buscando a equidade para aqueles grupos que eram menosprezados ou passavam por situações excludentes, notadamente em relação ao sexo ou etnia.
As ações afirmativas no direito americano evoluem a partir de dois momentos marcantes. Inicialmente o objetivo era reprimir a discriminação direta, trazendo para si um forte viés de busca à igualdade formal.
O Civil Rights Act de 1972 inovou ao vedar a prevalência de critérios raciais, étnicos, sexuais, religiosos ou de nacionalidade, sobre os de competência e qualificação, mas não trouxe, naquele momento, qualquer vantagem especial aos grupos afetados, garantindo tão somente a igualdade no processo de contratação, sendo inclusive reconhecido esta limitação pela Suprema Corte no caso Griggs vs. Duke Power Co. Para Rios (2008, p. 161), a lei objetivava claramente a igualdade formal entre os grupos, sem fornecer qualquer favorecimento em relação a um deles.
As mudanças trazidas pelo Civil Rights Act de1972 não foram capazes de assegurar a igualdade entre brancos e negros. O governo dos Estados Unidos passa a preocupar-se em assegurar uma igualdade material, saindo de uma postura neutra e inerte, para a buscar efeitos concretos e ativos na gestão e contratação de pessoal, fornecendo caracteres diferenciadores favoráveis à população negra, notadamente a implementação de cotas raciais. As ações afirmativas (“affirmative actions”) vai de uma política tímida passando por um acalorado debate até se corporificar, de modo mais intenso, através da uniformização das políticas de combate à discriminação no emprego (Rios, 2008, p. 163).
Na seara trabalhista houve grande destaque para o aumento das atribuições da Comissão de Igualdade de Oportunidades de Emprego, passando a atuar como verdadeiro órgão regulador da matéria, bem como o reforço no combate à discriminação, trazido pelo Civil Rights Act de 1991, que adotou os critérios apontados pela Suprema Corte no caso Griggs vs. Duke Power Co., possibilitando expressamente a adoção de ações afirmativas no âmbito do trabalho (Rios, 2008 p. 164). A Suprema Corte decidiu, com base na XIV Emenda, que beneficiários diretos ou indiretos de recursos públicos deveriam adotar programas de ações afirmativas, no ficou conhecido como state action doctrine, afetando principalmente as instituições de ensino (Rios, 2008, p. 165-166).
Acerca da constitucionalidade das ações afirmativas, a jurisprudência da Suprema Corte americana, entre os anos de 1978 a 2007, oscilou entre momentos de apoio e de retaliação às diversas sistemáticas de promoção da igualdade (Rios, 2008, p. 168), como em casos como a legitimidade da aplicação de cotas voluntárias para contratação de empregados negros (United Steelworkers of America v. Weber, de 1979) e de negativa da adequação e necessidade de medidas preferenciais adotadas por instituições de ensino (Regents of the University of California v. Bakke, de 1978).
Nos casos Fullilove v. Klutznick, em 1980, e em Firefighters Local Union nº 1784 v. Stotts, de 1984, a Suprema Corte reconheceu que o agente realizador da ação afirmativa deveria ser responsável pela discriminação para que a reparação fosse considerada válida. Diversamente, em Firefighters v. Cleveland, de 1986, ficou sedimentado que a política afirmativa não estava condicionada ao fato de que os seus destinatários tivessem sofrido qualquer discriminação anterior (Rios, 2008, p.169-170). Em 1987, a questão de cotas em função de gênero foi apreciada na ação entre Johnson v. Transporation Agency. A partir de 1989 a jurisprudência tornou-se novamente mais conservadora, trazendo novamente a necessidade da apresentação de movimento discriminatório anterior como elemento essencial para justificação da medida afirmativa adotada[19].
Foram examinadas questões do interesse substancial (substantial interest), sob o prisma da necessidade e adequação, eram constitucionais, no caso Metro Broadcasting, Inc v. FCC, de 1990. Houve criticas a decisão no caso Adarand Constructors v. Pena, em 1995. Em Grutter v.Bollinger e Gratz v. Bollinger, 2003, a Suprema Corte demonstrou que a utilização de fator racial durante o processo seletivo não viola a cláusula de igualdade de proteção (equal protection clause) desde que se objetive, a um só tempo, a promoção da diversidade racial e a utilização de medida com menor grau de restrição notadamente ao considerar o critério racial em conjunto com outros elementos. Tais aspectos foram confirmados em 2007, no caso Parents Involved in Community Schools v. Seattle School District n. 1 et al.
Percebe-se que a Suprema Corte americana tem dificuldades para decidir em matéria de ações afirmativas, pois seu exame é casuístico. Não há uma tendência uniforme, mas há uma linha de que as ações afirmativas devem ser adequadamente concebidas e tenham duração temporária, visando a remediar efeitos presentes da discriminação passada (Rios, 2008, p. 176-177).
É justificativa das ações afirmativas a sua natureza reparatória, através de uma promoção da diversidade, buscando contornar, mediante a reinserção com maior participação dos grupos minoritários na dinâmica social, na tentativa de conciliar-se com os atos do passado. A resistência está na dificuldade de delimitar quais indivíduos realmente necessitam da medida, por serem vítimas da discriminação anterior, bem como quais agentes foram responsáveis por estes atos, sob o risco de impor a eles “sanções” por atitudes que não deram causa (Rios, 2008, p. 178-179).
Raupp Rios (2008, p. 180) afirma que estudos científicos comprovaram o efetivo retorno em prol das minorias, na qualidade dos serviços prestados, de modo que os indivíduos beneficiados pelas respectivas políticas, convertem tais conhecimentos agregados em favor do grupo que fazem parte, embora a Suprema Corte entenda que o estímulo direto seria uma maneira menos intrusiva do que o proposto por este argumento.
O demérito de indivíduos mais qualificados e a “discriminação inversa” em relação à população branca é o primeiro dos argumentos invocados por aqueles que se posicionam contrariamente às ações afirmativas, porém seus apoiadores consignam que a sua aplicabilidade é temporária até o momento em que o critério racial não seja mais relevante. Rios (2008, p. 181) aponta que a análise do critério de mérito deve ser compreendida não apenas pelas habilidades e qualificações apuradas entre os indivíduos, mas também abarcar a situação de que modo o favorecimento de um pode consubstanciar um resultado futuro de combate à discriminação[20] e redução da desigualdade, pois a contrário senso considerar apenas a igualdade através da desconsideração deste critério impor-se-ia uma vantagem indevida da população branca que historicamente desfrutou de maiores oportunidades.
A diferença entre o modelo de proteção individual e o grupal dos direitos, gera tensão sob a perspectiva daqueles que são contrários ao modelo estatuído pelas ações afirmativas. Para eles (Rios, 2008, p. 183) o primeiro tem íntima relação com a questão do mérito individual e as denominadas “vítimas inocentes”, atrelado ao escrutínio estrito, de modo que as ações deveriam ser reflexos de atitudes discriminatórias anterior praticado por aquele que as implantou, é criticado pela sua desconsideração à dimensão institucional da segregação. Já o modelo grupal considera a situação vivida pela discriminação indireta e tendo por base a injustiça institucional vivida por aquele grupo segregado, de modo que as ações pontuais não são suficientes para reduzir o âmbito institucional de tais práticas, todavia sua generalidade é questionada sobre o argumento de eventualmente propor tratamento injusto frente a indivíduos de grupo majoritários.
A solução para este conflito entre as duas metodologias é trazida por Richard Fallon e Paul Weiler, para quem devem ser implementadas ações relativas “tanto a repressão a atos individualizados quanto a adoção de medidas racialmente conscientes voltadas para o combate da discriminação institucional”, por eles denominado de “modelo de justiça social”. (Rios, 2008, p. 186)
Rios destaca que as ações reforçariam os estigmas sociais de desmerecimento dos seus beneficiários dado que de outro modo não alcançariam tais oportunidades por seus próprios esforços. Este argumento foi cientificamente refutado pelas Universidades de Princeton e Harvard (Rios, 2008, p. 189) ao demonstrar que os egressos beneficiados por estes programas apresentavam grau de excelência equivalente ao daqueles que não foram abrangidos.
Rios (2008, p. 190-192) lança mão desta análise da realidade americana para então adentrar ao modelo brasileiro.
O Supremo Tribunal Federal pautou-se fortemente na Suprema Corte americana quando instado a se pronunciar sobre a constitucionalidade das ações afirmativas brasileiras. O Ministro Carlos (Ayres) Britto, no RMS nº 26.071-1 sintetiza bem o posicionamento da corte ao dizer que “a reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica, constitui política de ação afirmativa que se insere nos quadros da sociedade fraterna desde o Preâmbulo da Constituição de 1988”.
O posicionamento favorável da Suprema Corte Brasileira, como era de se esperar, não foi o suficiente para afastar as diversas objeções às políticas públicas de ações afirmativas também no direito brasileiro, não se distanciando muito daquelas críticas elaboradas no âmbito americano. Ao afirmarem que o objetivo da promoção da igualdade sem distinções raciais impediria a implementação de ações afirmativas, restringem o alcance normativo ao interpretá-lo de maneira inversa ao objetivo do constituinte, dado a sensível diferença entre discriminação racial e discriminação fundada na raça. Rios (Rios, 2008, p. 201) reconhece a falibilidade da metodologia brasileira ante o critério de justiça social, tendo em vista que nacionalmente utilizou-se somente do critério racial, ao contrário do modelo americano que o utilizou conjuntamente a outros inerentes à atividade universitária.
A suposta violação ao princípio da dignidade da pessoa humana pela implantação das políticas ao considerar que o acesso ao ensino superior não é um bem conferido a todos não prospera, pois segundo o autor (Rios, 2008, p. 203) a reduzida participação de grupos étnicos segregados na composição do ambiente universitário decorre das reiteradas práticas discriminatórias perpetradas ao logo do tempo e não da condição de inferioridade dessa parcela da população, a bem dizer a dificuldade enfrentada por esse grupo decorre das condições sociais a que são submetidas como reflexo desta discriminação indireta.
Na esteira do entendimento americano, a análise da consideração entre o mérito individual e as ações afirmativas, vale relembrar que não há vítimas inocentes com direitos violados, mas tão somente o usufruto da população branca de condições favoráveis indevidas pelo racismo histórico, de modo que, especialmente as universidades, devem priorizar um corpo discente integrado aos valores defendidos pela instituição e não somente premiar aqueles que se destacam, conforme preceitua Ronald Dworkin (Rios, 2008,p. 204).
Para o autor, a construção de uma sociedade pluralística exige do processo político democrático uma atuação mais efetiva no sentido de não apenas conter a discriminação, mas também de reverter os efeitos de sua existência histórica, não fugindo ao aspecto essencial de que se trata de uma discussão histórico-sociológica e não meramente jurídica. Os diversos precedentes da experiência norte americana servem de fonte de conhecimento no processo de implementação no território nacional.