A efetividade do direito à saúde através da iniciativa privada no Estado social de direito

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Resumo: A partir da Constituição Federal de 1988 o direito à saúde passou a ser um dos pilares na promoção da dignidade da pessoa humana, sendo incluído no rol dos direitos sociais. Para sua concretização do acesso ao direito à saúde a Carta Magna anunciou também ser direito de todos e dever do Estado, porém, as medidas públicas para promover esse direito social não foram suficientes para cumprir o desiderato constitucional. Nesse contexto, o presente artigo tem por escopo analisar e demonstrar a relevância da atuação da iniciativa privada na consecução da concretização do direito social à saúde. Para tanto, serão utilizadas pesquisas estatísticas do mercado da saúde pública e privada, bem como uma breve análise histórica constitucional do direito à saúde no direito brasileiro, de forma a contextualizar o presente estudo.

Palavras-chave: Direito fundamental à saúde; Sistema público de saúde; Saúde Suplementar; Concretização de direitos.

Abstract: From the 1988 Federal Constitution the right to health hasbecome a mainstay in promoting human dignity, being included in the list of social rights. For your implementation of the access to theright to health the Magna Carta also announced to be all rightand duty of the State, however, the public measures to promote this social rightwere not suficiente to meet the constitutional requerimento. In this contexto, this article aims to analyse and demonstrate the relevance oh the work of the private sector in achieving the realization of the social right to health. To do so, use market statistics surveys of public and private health, as well as brief historical analysis of the constitutional right to health in brasilian law, in order to contextualize the presente study.

Keywords: Fundamental right to health; Public health system; Health supplements; Realization of rigths.


Introdução

A partir da Constituição Federal brasileira de 1988 a saúde dos indivíduos passou de coadjuvante a protagonista na ordem jurídica, sendo alçada ao patamar de direito fundamental e incluída no rol dos direitos sociais e, inclusive, com seção própria no corpo do texto constitucional tratando diretamente do assunto.

Apesar dessa conquista para a ordem jurídica constitucional e, principalmente, para os cidadãos, e já chegando próximo a um terço de século com a Constituição Federal de 1988, e o que pode-se dizer também, de três décadas de estabilidade institucional dos Poderes, o Estado contemporâneo brasileiro ainda não conseguiu concretizar, por si, de forma eficiente a concretização do direito básico à saúde.

Os princípios constitucionais da universalidade, integralidade e igualdade de atendimento pela rede pública de saúde ainda estão muito longe de sua concretude ideal, mesmo com a estruturação realizada pela criação do Sistema Único de Saúde – SUS, de modo a promover o adequado atendimento da população.

Assim, não obstante a garantia do direito à saúde ser função do Estado para promoção dos serviços de assistência à saúde, o legislador constituinte, talvez até mesmo prevendo a dificuldade de implantação de um sistema público eficiente como idealizado na Constituição federal, autorizou a atuação da iniciativa privada na exploração dos serviços de assistência à saúde, o que denominou-se de Saúde Suplementar.

A partir disso, o setor de assistência privada à saúde passou a tomar corpo ao longo dos anos, chegando, inclusive a superar o orçamento do Estado com o custo de coberturas assistenciais aos indivíduos participantes dos planos e seguros privados, auxiliando de forma evidente o acesso a tratamento de saúde pelos cidadãos.

Nesse processo evolutivo da Saúde Suplementar é que passar-se-á a análise do presente artigo, discorrendo sobre os aspectos históricos do direito à saúde nas Constituições Federais anteriores a de 1988, até a configuração da assistência à saúde pela iniciativa privada no contexto constitucional, bem como pela atividade reguladora e fiscalizatória deste setor pelo Estado.

Tendo em vista que o direito à saúde é corolário do direito à vida e requisito mínimo fundamental para garantida da dignidade da pessoa humana, verificar-se-á também a relevância que a Saúde Suplementar tem na concretização do direito fundamental de acesso à saúde, a fim de se chegar o mais próximo possível do Estado de Bem-Estar Social, que reclama positivação e concretização de direitos sociais básicos.


O direito fundamental à saúde nas constituições brasileiras

O direto à saúde, especificamente, passou a ser protegido pelos ordenamentos legais a partir do início do século XX, sendo que até então o direito à saúde não era protegido como um verdadeiro direito fundamental, mas sim estava relacionada ao direito à vida e protegida por algumas declarações iniciais de direitos fundamentais como a Declaração dos Povos da Virginia de 1776 ao mencionar que “o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança”, bem como a Declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão de 1789.

Foi com a passagem do Estado liberal para o Estado do bem-estar social (welfare state), que começou a se falar sobre a saúde na perspectiva de um verdadeiro direito fundamental, sendo firmemente tratada como tal no final da segunda guerra mundial, sendo este fato histórico um verdadeiro paradigma para efetivação dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, por sua vez, criou valores a ser observados por todos os povos, e mencionou a saúde no seu artigo XXV, incluindo-a em um contexto relacionado a um ambiente favorável a um padrão mínimo de defesa da dignidade do ser humano, sendo a saúde e o bem-estar esse padrão mínimo, devidamente relacionado com outros direitos, bem como estendidos à maternidade e à infância. Dispõe o artigo XXV:

1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social (grifo nosso).

No Brasil, em um breve apanhado histórico nas Constituições da República é possível afirmar que a saúde, a partir de certo momento histórico, passou a figurar entre as principais preocupações do Estado, mas nem sempre foi assim, haja vista que antes da Constituição Federal de 1988 poucas foram as disposições acerca do direito à saúde, em sequer era selecionada como um direito fundamental.

Na Constituição Política do Império de 1824 não havia nenhuma proteção à saúde, propriamente dita, ou seja, apenas há uma única menção ao termo “saúde”, porém, no sentido de proteção ao trabalho, de forma que nenhum tipo de atividade poderia ser pernicioso à saúde dos cidadãos. Tal disposição encontrava-se no capítulo relacionado às Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos brasileiros, em seu artigo 179, inciso XXIV, no seguinte sentido: “Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos.”

Também, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, não trouxe nenhuma disposição relacionada à proteção à saúde do povo brasileiro. Nesse sentido, nenhuma das Constituições do século XIX trouxe uma base normativa específica para a proteção da saúde.

Já a primeira Constituição Federal brasileira do século XX, no ano de 1934, de maneira tímida, estabeleceu dentro das regras de proteção ao trabalho à assistência médica e sanitária ao trabalhador (Artigo 121, §1º, letra “h”). Também, dentro da organização federativa, incumbiu o cuidado à saúde e assistência públicas aos Estados e à União, de forma concorrente (Artigo 10, inciso II).

Na Constituição Federal de 1937, que procurou atender à paz política e social da época, houve certo avanço na proteção da saúde, trazendo agora no Artigo 16, inciso XXVII, de forma privativa, a competência da União para legislar sobre “normas fundamentais da defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança”. Desse modo, pode-se verificar a ampliação da proteção à saúde para as crianças.

Ainda, na mesma Constituição, houve pela primeira vez menção às “Casas de saúde”, ao regulamentar a competência supletiva dos Estados na falta de lei federal sobre a matéria. As denominadas “Casas de saúde”, eram consideradas como entidades privadas que forneciam “hospitalização de luxo”, sendo esta uma realidade ainda de pouca acessibilidade à população da época, devida ao seu caráter comercial, sendo assim, as primeiras instituições de finalidade lucrativa, ou seja, de caráter privado.

A Constituição Federal de 1946 não trouxe nenhuma novidade em relação à proteção do direito à saúde, mantendo as disposições sobre a proteção da assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva ao trabalhador, bem como mantendo a competência legislativa da União sobre a defesa e proteção da saúde.

Nas Constituições da década de 1960, sendo a Constituição de 1967 e a controversa Constituição de 1969, não houve praticamente nenhum avanço constitucional relacionado ao direito à saúde, mantendo-se as regras relacionadas à competência legislativa da União para tratar da defesa e proteção da saúde.

Até aqui verifica-se que o direito à saúde não possuía proteção específica nas Cartas Constitucionais brasileiras, sendo tal proteção tratada de maneira indireta, ora relacionada ao direito dos trabalhadores, ora regra de competência legislativa da União, porém, em nenhum momento consagra-se o direito à saúde como um direito fundamental do indivíduo, mesmo as Constituições erigidas após a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.

Somente na Constituição Federal de 1988 a direito à saúde encontrou seu maior reconhecimento, sendo alçado ao patamar de direito fundamental, razão pela qual demonstra sua importância evolutiva para a consecução e complementação dos direitos que compõem os princípios básicos de proteção à vida e a dignidade humana, de modo que passou a ter proteção não somente no rol de garantias e direitos fundamentais, mas ganhou seção exclusiva no texto constitucional, com várias disposições protetivas, inclusive como dever fundamental do Estado.


O dever fundamental de proteção ao direito à saúde na Constituição Federal de 1988

A base do direito fundamental à saúde na Constituição Federal de 1988 surgiu na 8ª Conferência Nacional da Saúde, realizada em março de 1986, ao tratar de três principais temas sendo: (1) a Saúde como direito; (2) a reformulação do Sistema Nacional de Saúde e; (3) o financiamento setorial.

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Assim, a Carta Constitucional de 1988 albergou o direito à saúde a um novo patamar jurídico, especifica e diretamente protegido, através da sua inclusão no artigo 6º, fazendo parte, portanto, de um conjunto básico de direitos necessários para garantia da dignidade da pessoa humana, assim, pode-se dizer que encontra-se em uma categoria de direito social fundamental, sendo-lhe ainda atribuídos efeitos imediatos, de acordo com o artigo 5º, §1º, efetivando assim, a saúde como gênero de primeira necessidade dos indivíduos.

A Carta Magna brasileira estampa no artigo 196 que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, proclamando assim que cabe prioritariamente ao Estado e prestação dos serviços de saúde aos indivíduos, de modo universal e igualitário, compreendendo tal prestação, todas as ações destinadas a concretização deste direito fundamental.

Aliás, importante mencionar que, não obstante a direito à saúde estar estampado em seção específica própria, fora do Título II que trata dos direitos e garantias fundamentais, as disposições relacionadas ao direito à saúde na sua seção não perdem o caráter da fundamentalidade segundo Dallari e Nunes Júnior (2010, p. 66-67), in verbis:

Um importante aspecto – aliás, com inúmeros desdobramentos no regime jurídico do direito à saúde – é a chamada fundamentalidade extrínseca do direito à saúde. Em outras palavras, a Constituição Federal alojou formalmente o direito à saúde no catálogo dos direitos fundamentais, fazendo-o por meio do art.6º da Lei Maior, visto que este integra em seu título II, destinado expressamente à disciplina dos Direitos e Garantias Fundamentais. Essa fundamentalidade do direito à saúde se estende, por evidente, a todos os dispositivos dedicados ao tratamento do tema, o que revela que os arts. 196 a 200 da Constituição também fazem jus a tal identificação.

Para concretização do direito à saúde, bem como para organização do sistema, a Constituição Federal em seu artigo 198 criou o Sistema Único de Saúde, instituindo um serviço público de saúde de forma integrada, regionalizada e hierarquizada entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, de modo que seja realizado o adequado atendimento aos indivíduos, bem como estabeleceu as diretrizes desse sistema:

(...)

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Do mesmo modo em que a Constituição Federal de 1988 garantiu o direito à saúde de forma ampla aos indivíduos, garantiu também o atendimento por meio de princípios norteadores de observância obrigatória pelo Estado, tendo como seus principais os da universalidade, integralidade, igualdade e gratuidade.

De forma breve, o principio da universalidade segundo Mapelli, Coimbra e Matos (2012, p.24) refere-se a abrangência do sistema único de saúde no que diz respeito aos seus destinatários “(...) se consubstancia no direito de qualquer indivíduo, independentemente de suas condições pessoais (nacionalidade, naturalidade, classe social, etc.) de ser atendido pelos órgãos da saúde pública (...)”. Assim, todas as pessoas, mesmo aquelas que possuem condições financeiras suficientes para tratamentos particulares, podem se beneficiar do atendimento público.

A integralidade do atendimento diz respeito também de acordo com Mapelli, Coimbra e Matos (2012, p.25): “Significa dizer que o Estado deve prover aos indivíduos, de acordo com o mais avançado conhecimento técnico existente, o acesso a todos os meios e mecanismos de recuperação e prevenção da saúde (...)”. Desse modo, verifica-se que atuação do Estado deve ser de forma ampla, não podendo se furtar ao fornecimento de qualquer tipo de tratamento para a prevenção e recuperação da saúde dos indivíduos.

Os principio da igualdade de tratamento significa dizer que o Estado não pode fornecer privilégios subjetivos de atendimento a qualquer indivíduo, ou seja, todo e qualquer atendimento realizado pela rede pública de saúde deve ser destituído de qualquer tipo de discriminação, salvo algumas exceções de ordem objetiva dispostas em Lei, como, por exemplo, o atendimento prioritário às pessoas idosas e as crianças.

Por último, o principio da gratuidade que, por si só, já demonstra que o Estado não pode exigir nenhuma forma de contraprestação do indivíduo que utiliza a rede pública de atendimento à saúde, nem mesmo pode fazer distinção entre o que contribuem ou não para a previdência social, na medida em que a assistência à saúde é um direito fundamental sem qualquer tipo de requisito posto pela Constituição Federal brasileira de 1988.

Desta forma, tendo em vista os princípios acima apontados, bem como levando em consideração que as necessidades relacionadas à saúde são infinitas e os recursos financeiros são finitos, fazem com que a concretização desse direito fundamental seja de difícil aplicação prática pelo Estado, haja vista que os reflexos dos problemas relacionados à saúde decorrem da falta de outros recursos para outras áreas, como, por exemplo, na educação, moradia e saneamento básico, de modo que a escassez na atuação do Estado nessas áreas agravam sobremaneira os problemas de saúde da população mais carentes que, por sua vez, demanda maior recurso orçamentário do Estado.

Por sua vez, levando ainda em consideração outros fatores relacionados à realidade social e política (corrupção, má gestão de recursos públicos, sonegação fiscal etc.) a concretização do direito fundamental à saúde da forma como idealizada pelo legislador constituinte fica praticamente impossível se ser realizada única e exclusivamente pelo Estado sem gerar impactos orçamentários negativos em outros setores.

Desta forma, para garantir a concretização do direito social e fundamental à saúde, a própria Constituição Federal abriu a possibilidade de participação na assistência à saúde pela iniciativa privada, de forma complementar do sistema único de saúde, ficando tal atuação conhecida como “Saúde Suplementar”, bem como definiu diretrizes básicas para atuação do setor privado, conforme será analisa a seguir.

Sobre o autor
Marco Aurélio Franqueira Yamada

Mestrando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito do Centro Universitário de Bauru/SP, mantido pela Instituição Toledo de Ensino - ITE. MBA em Direito Empresarial pela FGV-SP. Pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil para Instituição Toledo de Ensino – ITE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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