A saúde suplementar na constituição federal
De acordo com o modelo de prestação de serviço público de saúde idealizado pelo legislador constituinte de 1988, caberia ao Estado a prestação prioritária desse serviço de modo universal e igualitário, porém, de acordo com Marco Aurélio Mello (2012, p.4) sobre o assunto: “A quadra vivida, todavia, revela deficiências substanciais em praticamente todos os serviços públicos, de maneira que ainda não foi possível alcançar aquele propósito maior de universalização”.
Com isso, tendo em vista que hodiernamente verifica-se a impossibilidade fática do Estado em suprir de modo adequado e suficiente a demanda social de prestação de serviços à saúde, levando ainda em consideração a limitação de recursos orçamentários diante da infinita demanda pela prevenção e recuperação da saúde dos indivíduos, o contrato de assistência privada à saúde torna-se um instrumento alternativo para assegurar o acesso ao atendimento médico-hospitalar.
Nesse contexto fático, sem embargo do dever estatal de assistência à saúde de forma universal, integral e gratuita, a Constituição Federal de 1988, de forma expressa, autorizou a participação da iniciativa privada na assistência â saúde por meio do artigo 199, caput, que dispôs de forma simples que: “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada”.
Assim à luz da Constituição Federal de 1988, estabeleceu de forma expressa a possibilidade de prestação de serviços de assistência à saúde tanto pelo setor público como pelo privado, criando um mix de financiamento público e privado para alcançar o acesso universal do direito à saúde, sendo que a participação do setor privado efetiva-se por meio de planos de saúde e seguro-saúde.
Vale lembrar que, conforme mencionado anteriormente, a Constituição Federal de 1937 fez uma menção em seu texto sobre as “Casas de saúde” que eram consideradas entidades privadas de tratamento de saúde aos mais abastados, de acordo com registro histórico da evolução dos Hospitais do Ministério da Saúde:
As de finalidade não lucrativa, semelhante, de algum modo às filantrópicas, são instituições mantidas por corporação, fábricas ou núcleos para seus empregados; são as de cooperativas, de Associação de classe, Beneficências, Caixas, Ordens Terceiras, etc., isto é, organizações que não distribuem dividendo ou lucros, e cuja renda se destina exclusivamente à finalidade médico-social, a manter, e melhorar, e ampliar a instituição; a bem da saúde. Entre as instituições de finalidade lucrativa se acham as “casas de saúde”, hospitais mantidos por médicos, por sociedades, por quotas, visando uma exploração industrial ou comercial; de firma, sociedade anônima, etc.(BRASIL, 1965, p.87)
Ainda no contexto histórico brasileiro, a atividade de assistência privada à saúde remonta à década de 50, quando houve crescente aceleração no processo industrial automobilístico no ABC paulista, onde, segundo Lima (2016, p.110) tal desenvolvimento “(...) criou uma demanda por sistemas de proteção mais estruturados aos trabalhadores, incorporando práticas consolidadas nos países de origem das empresas multinacionais recém-instaladas”.
Retomando as disposições da Constituição Federal de 1988, a atuação da iniciativa privada na assistência à saúde não foi detalhada no texto constitucional, havendo apenas a forma pela qual a iniciativa privada pode complementar o Sistema Único de Saúde, a vedação de destinação de recursos públicos para as entidades privadas com fins lucrativos e a proibição de participação de capital estrangeiro, conforme disposto nos três primeiro parágrafos que compõem o artigo 199:
(...)
§ 1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
§ 2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.
§ 3º - É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei.
Assim, coube ao legislador infraconstitucional a elaboração de norma ordinária para a regulamentação e fiscalização do sistema privado de saúde no país, o que se deu com duas importantes leis ordinárias, sendo a Lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, conhecida como a “Lei dos Planos de Saúde”.
Por outro lado, a fim de fiscalizar a atividade das operadoras de planos de saúde privados, por meio da Lei federal n. 9.961, de 28 de janeiro de 2000, foi criado a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, sendo esta uma autarquia sob regime especial e vinculada ao Ministério da Saúde.
No que tange aos princípios básicos que regem o sistema privado de assistência à saúde importante mencionar que não se relaciona com os princípios regentes do sistema público, na medida em que o na atividade privada possui uma estrutura financeira que deve ser devidamente controlada sob pena de desestabilizar equilíbrio econômico-financeiro necessário para a manutenção e sobrevivência das operadoras de planos e seguros de saúde.
Não se pode olvidar também que a atividade privada visa a obtenção de lucro, de modo que os princípios à ela aplicados devem respeitar a livre-iniciativa, concorrência e autonomia contratual na escolha pelo indivíduo e pelas empresas do plano de assistência à saúde que melhor atenda seus interesses pessoais e financeiros.
Com base nisso é que os princípios básicos que norteiam a Saúde Suplementar são basicamente os seguintes: 1) Mutualismo; 2) Equilíbrio econômico-financeiro.
O mutualismo, de acordo com Sandro Leal Alves (2015, p.42), foi um termo pinçado da biologia a fim de estabelecer a cooperação entre indivíduos, através do agrupamento de riscos, ou seja, o mencionado autor escreve que: “Na Biologia, quando a interação entre duas espécies proporciona ganhos recíprocos decorrentes da associação entre elas, há mutualismo”.
Nesse sentido tanto o plano como o seguro-saúde através do mutualismo fornecem a possibilidade dos usuários que contratam assistência privada à saúde de dissolução dos riscos com entre si, de modo que haja uma contribuição em comum em troca da garantia de atendimento a sua saúde onde todos são beneficiados em caso de ocorrência de infortúnio. Trata-se basicamente de uma solidariedade entre todos os participantes.
O equilíbrio econômico-financeiro faz com que haja a necessidade de uma diversificação do risco na atividade privada consiste na estrutura de financiamento, porém, para melhor compreensão deste princípio se faz necessária a compreensão de dois aspectos relevantes, haja vista que os recursos para manutenção da atividade privada dependem diretamente do pagamento de valores pelos usuários do sistema.
O primeiro aspecto diz respeito aos eventos cobertos pelos planos e seguros privados de assistência à saúde, tendo em vista que são eventos futuros e incertos que devem ser estimados pelo atuário a fim de que as operadoras possam compor as provisões técnicas de valores para pagamento dos eventos que venham a ocorrer, bem como para estipulação do valor a ser pago pelos usuários (Para os planos de saúde os usuários pagam uma mensalidade e para os seguros-saúde os segurado paga valor denominado de prêmio).
O segundo aspecto, diz respeito à forma pela qual são separados os atendimentos pelo Sistema Único de Saúde e pelas operadoras de planos privados e assistência à saúde de forma a otimizar os recursos financeiros.
Para o sistema público promove-se uma hierarquização do atendimento, de forma que as demandas são divididas em três níveis de complexidade. De acordo com Serrano (2009, p. 81-82):
Seguindo essa direção, a hierarquização indica a divisão de atendimento em distintos níveis de complexidade, assim categorizados: atendimento primário: baixa complexidade; atendimento secundário: complexidade intermediária e atendimento terciário: alta complexidade.
Utiliza-se a expressão hierarquização porque a ideia que orienta essa forma de organização é a de que as unidades de assistência primária constituam uma espécie de porta de entrada do sistema, a partir da qual haveria o eventual referenciamento do paciente a unidades de maior complexidade, conforme as peculiaridades da situação.
O ideário constitucional é o de consolidar os postos de atendimento primário (Programas de Saúde de Família, Postos de Saúde, Unidades Básicas de Saúde etc.) como as portas de entrada do sistema, nas quais, constatando-se a necessidade de soluções de maior complexidade, haveria a referência às unidades de atendimento de maior complexidade, fazendo-se com que nestas haja economia de recursos, uma vez que o atendimento nelas dispensados é de um custo unitário inúmeras vezes maior.
De outra forma, na iniciativa privada de assistência à saúde, dentre muitas variáveis para a preservação do equilíbrio econômico-financeiro, não se faz a segregação em níveis de atendimento, mas sim por meio da segregação dos indivíduos em grupos de risco homogêneos, onde a maneira mais conhecida e divisão por faixas etárias, sendo somente assim, torna-se possível calcular o risco de cada um dos grupos.
A utilização deste sistema de segregação de indivíduos por faixas etárias, de acordo com Carneiro (2012, p. 82) faz com que: “A organização de grupos homogêneos, de acordo com as idades dos beneficiários, é benéfica para o conjunto dos consumidores, pois cada um pagará prêmios adequados ao seu perfil”.
Essa divisão por faixas etárias, com profundos estudos pela ciência atuarial, trabalha com probabilidades, de forma que quanto maior a idade, maior a probabilidade do usuário do sistema privado necessitar de assistência, razão pela qual os preços são maiores para os indivíduos das faixas etárias mais elevadas.
A partir de dezembro de 2003 por meio da Resolução Normativa n. 63, a ANS redefiniu dez faixas etárias, sendo: 0 a 18 anos; 19 a 23 anos; 24 a 28 anos; 29 a 33 anos; 34 a 38 anos; 39 a 43 anos; 44 a 48 anos; 49 a 53 anos; 54 a 58 anos e; 59 anos ou mais.
Desta forma, verifica-se que tanto o sistema público, como o sistema privado de assistência à saúde possuem mecanismos de controle financeiro, de modo a evitar a gastar acimo do orçamento previsto no primeiro caso e a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro no segundo.
Ainda, a fim de atender de forma ampla as demandas essenciais dos indivíduos usuários do sistema privado, a Lei n. 9.656/98, instituiu em seu artigo 10 o “plano-referência de assistência à saúde”, de modo a tornar obrigatória pelas operadoras de assistência privada à saúde um rol mínimo de procedimentos na comercialização de seus planos.
O “plano-referência” também conhecido como “rol de procedimentos da ANS”, caracteriza-se por possuir cobertura para todas as doenças relacionadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados com a saúde (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS), de maneira que as operadoras não podem excluir tratamento decorrente desta lista, bem como impede que os planos possam atuar apenas em segmentos de baixa ocorrência de doenças (sinistros) e com finalidade exclusiva de lucro.
Diz o artigo 10 da Lei n. 9.656/98 que:
Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei
De forma sucinta, nessas breves considerações, verifica-se que a Constituição Federal brasileira de 1988 fez bem em autorizar explicitamente a atuação de entidades privadas no setor de assistência à saúde, assentado no artigo 199, na medida em que a concretização do direito social e fundamental à saúde tão somente pelo Estado, na atual conjuntura social, politica e econômica brasileira seria praticamente impossível de realizar sem a geração de impactos em outros setores sociais.
Por isso, a atividade de assistência privada de assistência à saúde ou mais propriamente pela Saúde Suplementar, é um sistema de suma importância para a sociedade hodierna, bem como seus mecanismos de regulação e fiscalização realizados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), ampliando a concretização da garantia de acesso a atendimento médico-hospitalar à sociedade.
Por fim, importante mencionar que complementariedade do direito à saúde pela Saúde Suplementar não se trata de substituição do papel do Estado pela iniciativa privada, mas de um papel paralelo de atuação, o que não se pode confundir com obrigação subsidiária dos planos de saúde em relação às obrigações do Estado.