4. Democracia Formal (Aparente) e Democracia Material (Substantiva)
É exatamente desta virtual omissão do dever estatal de agir que em muitos casos, mesmo existindo um indiscutível Estado Democrático de Direito (pelo menos sob a ótica formal), a democracia (na qualidade de império da lei e da ordem jurídica) não se realiza em sua plenitude (democracia material ou substantiva), forjando o que, no últimos anos, convencionamos chamar de democracia formal (ou aparente).
Neste regime, ainda que possa existir ampla liberdade, efetivo respeito (por parte do Estado) aos direitos individuais e coletivos e outras características próprias da democracia, não há a necessária efetividade plena da lei e, sobretudo, da ordem jurídica, existindo um Estado que, em essência, não consegue, por simples omissão (de seus governantes) e/ou sinérgica impotência de meios, concretizar, na prática, o próprio direito positivo (constitucional e infraconstitucional) que produz e continua a produzir.
Em grande medida, este é, para muitos estudiosos, o retrato do Estado brasileiro que, não obstante toda a sorte de avanços legislativos e de outras matizes, não consegue fazer valer, em termos práticos e concretos, para todos os cidadãos e em todos os casos, como determina a Constituição, elementos legais básicos, muitas vezes relativos à direitos fundamentais (de natureza constitucional) e que, neste aspecto, apenas aparentemente, se encontram assegurados.
Neste particular, é lícito afirmar que, em certo aspecto, o denominado período revolucionário de 64-84 (relativo ao movimento militar inaugurado em 1964 e que parte da doutrina define como autêntica revolução, ao passo que alguns autores prefere caracterizar como golpe de estado - ou, em essência, golpe de governo) inaugurou, em nosso País, o chamado estrito Estado de Legalidade, consolidado, particularmente, com a obediência sublime, por todos (e, inclusive, por parte do próprio Estado) ao novo regime constitucional introduzido com o advento da Constituição de 1967 e, posteriormente, da EC 1/69, não obstante a malsinada edição do AI-5, em 1968, que tanto contribuiu para o sinérgico comprometimento da inicial feição democrática do regime.
Todavia, deixando de lado as discussões de cunho ideológico (e, no campo do direito, mais precisamente, de natureza de legitimidade jurídica do regime político implantado), não há como deixar de reconhecer que aquele período vis-a-vis com a atual fase política brasileira se caracterizou por uma presença viva (de natureza efetivamente comissiva) do Estado, garantidora, em última instância, da lei e da ordem jurídica vigentes à época (ainda que se pudesse ser discutida a legitimidade estrita do sistema legal).
O próprio presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, em discurso proferido em 20/01/1998, neste aspecto, não poupou elogios ao regime político patrocinado pelos militares e, muito particularmente, ao regime constitucional anterior à vigência da Constituição Federal de 1988, verbis:
“O regime militar, tão malsinado, teve realmente pontos muito positivos. Faço questão de dizer isso. Poucos têm coragem de dizer isso hoje. Talvez a falta de prática dos militares com o poder tenha tido alguns erros e exageros. Talvez por isso tivéssemos uma situação no Brasil que levou à Constituição de 88, tão aplaudida por todos na época. Mas tenho a consciência tranqüila porque não aplaudi. A Constituição Cidadã é a causa de grandes males do Brasil.”
Em necessária comparação elucidativa entre os dois regimes (o pretérito e o atual), a verdade é que, independente da intenção dos governantes, o Estado brasileiro recente, de forma diversa do anterior, tem se pautado, em grande medida, por uma crescente e altamente preocupante omissão, geradora não só de virtual insegurança jurídica, mas, particularmente, de perigosa ausência de sinérgico comprometimento em relação ao provimento de garantias reais aos direitos constitucionais básicos dos cidadãos e demais nacionais e estrangeiros em solo pátrio.
É o caso, por exemplo, de diversas situações cotidianas, onde o Estado brasileiro atual, por sinérgica omissão (e, algumas vezes, até mesmo impotência), não assegura direitos constitucionais elementares, como o direito de ir e vir em amplas áreas públicas dominadas por grupos civis armados. Também, é a hipótese, quase que comum, entre outras tantas, do não-acatamento, pelo Estado-Executivo, de decisões judiciais liminares ou mesmo transitadas em julgado, especialmente em situações de reintegração possessória (situação em que as forças policiais, mesmo oficialmente acionadas, ficam inertes diante do dever de agir) e de toda a sorte de situações em que os cidadãos comuns são obrigados a pagar, direta ou indiretamente, por proteção (de sua própria vida ou de seu patrimônio) a grupos criminosos e a diversas estruturas organizacionais transestatais, de cunho mafioso, que simplesmente competem (muitas vezes em situação mais favorável) com o Estado formal.
Para alguns, inclusive, este é o Estado de Legitimidade (pois, o consensus ao regime político democrático atual resta incontestável) que não conseguiu se firmar como Estado de Legalidade, em curiosa oposição ao anterior Estado de Legalidade que, muito possivelmente (pelo menos para uma expressiva parcela da doutrina), não conseguiu se caracterizar como Estado de Legitimidade, forjando, em ambas as situações, apenas uma democracia formal (aparente), considerando a inexorável necessidade da presença de ambas características para a verdadeira consolidação do regime democrático, convencionalmente designado, nos últimos anos, por democracia material, posto que o verdadeiro Estado Democrático de Direito não se constitui apenas em um conjunto de sérias e rigorosas limitações ao poder estatal, em face dos direitos individuais e coletivos fundamentais, mas, sobretudo, na efetiva garantia, por parte do Estado, de que esses mesmos direitos não serão violados por outros indivíduos e grupos trans ou paraestatais.
Alguns estudiosos, têm inclusive, a este respeito, elencado interessante comparação entre o Estado pretérito e o atual em pontos considerados nevrálgicos durante a vigência do regime anterior, como a questão da tortura. Sob o aspecto jurídico, resta afirmar que, em ambas situações, o Estado Democrático Formal não só vedava (como veda) a abominável prática da tortura, como a tipificava, ainda que de forma legislativa diversa, como crime. Na prática efetiva, contudo, os dois regimes estatais, em certa ótica, compactuam, ainda que de forma diferente, por sinérgica omissão (e às vezes virtual impotência), com a tortura, ainda que, no passado praticado por eventuais criminosos infiltrados no serviço público e no presente praticado por grupos civis mafiosos, em sua maioria distantes da estrutura estatal oficial, através, particularmente, de seqüestros com fins extorsivos.