A Exacerbação de Respostas Simplórias e da Irracionalidade Como Solução de Problemas Sociais Complexos

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Os discursos de violência, intolerância e ódio oferecem simplórias respostas para os problemas sociais mais complexos, que só serão realmente solucionados por meio do diálogo e do uso efetivo da racionalidade e, acima de tudo, respeito ao outro.

O homem é definido como homo sapiens, cujo adjetivo “sapiens” pode ser traduzido ao português por “sábio”. Por definição, todos nós somos considerados sábios. A racionalidade é o atributo que é próprio do ser humano.

Melhor seria se fôssemos definidos como aqueles que têm a aptidão para a racionalidade e para a sabedoria. Sim, podemos ser muito racionais e sábios. O seu oposto também é verdadeiro, porque podemos ser extremamente estúpidos. No ser humano, existem as opostas potencialidades para o há de mais sublime e desprezível, o que é comum a todos nós.

A sabedoria é um atributo que só pode ser alcançado pela racionalidade, cuja definição essencial é ser uma aptidão que permite se chegar aos fins com maior eficiência, aplicando efetivamente conhecimentos para perseguir objetivos. Para sermos racionais, os fins buscados precisam estar claros, para que possamos buscar os melhores caminhos para alcançá-los por meio da aplicação de conhecimentos. Se fizermos isso, poderemos ser considerados sábios.

O adjetivo de homo sapiens e sua aplicação a todas as pessoas e para tudo o que fazem encerra, em si, um grande risco. Como todos se consideram racionais e mesmo sábios, parece que toda opinião e posicionamento são válidos e, pior, têm igual valor. Assim, a opinião de um jurista que passou a vida inteira a estudar o funcionamento do sistema penal pode ter, aos olhos de muitos, tanto valor como a de alguém cujo raso e unilateral conhecimento sobre o tema vem deturpado por meio de mídias policialescas, dos “patrulhas policiais”, em que o sangue escorre diariamente e o dia todo, sendo repetido reiteradamente o lema de prender ou mesmo matar tanto quanto possível. Para muitos, a opinião de qualquer um sobre o problema da violência e insegurança no Brasil tem tanto valor quanto a dos maiores estudiosos sobre o tema, o que é comum a várias outras matérias (combate à corrupção, gestão de recursos estatais, programas governamentais assistenciais). Apesar de esse mesmo “qualquer um” não se atrever a opinar sobre questões de medicina, engenharia, física ou jardinagem, ele pode se sentir extremamente capacitado a propor soluções para os problemas mais complexos da sociedade, propondo-lhe simplórias respostas; não poderia ser diferente: uma visão simplória só pode gerar soluções simplórias.

Se fosse tão fácil resolver os mais graves problemas da sociedade que qualquer um soubesse a solução, tudo leva a crer que já teriam sido resolvidos. Por que não teriam sido resolvidos.

Se o lema “um homem um voto” é legítimo para a política, não é para o conhecimento e para a ciência. Não há nada de elitista ou excludente nessas ideias. Apenas se reconhece que existem algumas pessoas melhores versadas sobre alguns assuntos e que, por isso, seria engrandecedor para todos nós darmos atenção e aprendermos com elas. Não é indigno reconhecer que conhecemos menos uma matéria que aquele que estudou e pesquisou incontáveis horas sobre o tema – milhares, dezenas de milhares de horas --, tendo acesso à inúmeros e diferentes posicionamentos sobre dado assunto. Essa humildade é essencial para aprender com o outro, seja um célebre estudioso ou mesmo uma pessoa simples que, mesmo sem estudo formal, guarda em si valioso conhecimento de mundo sobre tantas matérias. Mas é muito difícil ter e exercer essa humildade, sendo a arrogância mais fácil e comum de se encontrar no ser humano. 

O Brasil é um país sem tradição acadêmica e de desvalorização do estudo, ensino e pesquisa. Apenas como um indicador dessa realidade, tradicionalmente, o país está entre os últimos no ranking de leitura[1], ficando atrás inclusive da Venezuela, que parece ser o novo paradigma de comparação de muitos Brasileiros (acompanhada de Cuba). A leitura não é o único meio de se obter conhecimento sobre o mundo. Mas certamente há algo de muito precioso em ter acesso às palavras, pensamentos e ideias dos homens e mulheres mais brilhantes que já passaram por esse planeta. Ora, dificilmente se aprende tanto numa conversa de bar ou uma tarde acompanhando o patrulha policial como em uma biblioteca, porque é lá que estão guardadas as lições de Platão, Victor Hugo, Pontes de Miranda, Celso Furtado e tantas outras mentes brilhantes que depuraram e resumiram suas ideias e experiências de vida em um livro (ou vários, ou muitos), que podem ser acessados em algumas horas de leitura. Por isso, o livro acaba sendo a maneira privilegiada de ter acesso ao que de foi produzido de mais elevado pela racionalidade humana. Não é por acaso que as pessoas mais inteligentes costumam estar cercadas por livros, pelos milhares que leram e também pelos que escreveram, bem como o conhecimento costuma ser representado por esse poderoso objeto. 

A leitura, estudo, ensino e pesquisa são formas de diálogo, em que o saber é transmitido de uma pessoa para a outra. Uma sociedade que menospreza essas formas de transmissão do conhecimento revela forte tendência a menosprezar o outro e a qualquer forma de diálogo. Aquele que não precisa do outro para conhecer o mundo e para evoluir, tenda a instrumentalizar o ser humano e ver como obstáculo aqueles que não lhe servem. Além disso, a reflexão e o estudo exigem tempo e esforço, incompatíveis com pensamento e respostas simplórios, o que provavelmente explica a desvalorização do estudo, ensino e pesquisa. De fato, é muito mais fácil e cômodo continuar sendo a mesma pessoa, sem evoluir, principalmente quando existe uma visão superior de si, quando há arrogância. 

Vivemos em tempos de notícias falsas (fake news) e de discurso irracional de  violência, intolerância e ódio, cuja facilidade impressiona: com facilidade é proferido e obtem muitos adeptos. Quanto mais mentiroso for um discurso e quanto mais incitar ao ódio,  violência e intolerância, parece que esse discurso será mais eficaz e terá mais adeptos. Como se resolve o problema do crime no Brasil? Matando geral. Como se resolve o problema da corrupção? Prendendo (ou matando também) geral. Como se resolve o desrespeito dentro do seio familiar? Na porrada. Como lidar com as minorias? Com intolerância e ódio, o que tem por consequência natural a violência. 

A pauta político-social de aumentar o acesso à armas de fogos é apenas um reflexo dessa realidade, em que a violência é preconizada como forma privilegiada de resolver conflitos. Os livros andam esquecidos, como é de costume no Brasil. A violência tornou-se a resposta simples para todas as questões, inclusive aquelas que envolvem a sociedade como um todo, o que é destituído de racionalidade, inexistindo correlação entre meios e fins. 

Nesses discursos simplórios, irracionais e carregados de ódio pelo outro, são veladas as suas próprias dificuldades, sendo ignoradas suas possíveis consequências. E se o torturado for você? Quem são os bandidos? Quem terá poder de livremente matá-los? E se o morto não for bandido? E se o morto não bandido for você? Sob a crença de que a violência só será dirigida ao outro, o egoísmo desprezível grassa, ainda que possa ter resultados piores para quase todos, promovendo uma sociedade ainda mais problemática do que a que existe hoje. Mesmo o egoísta pode se beneficiar mais em uma sociedade livre, justa e solidária. Porém, não há clareza entre meios e fins, de modo que muita gente valorosa acaba por cair nas teias desse conveniente discurso que promete fáceis soluções para os problemas mais graves da sociedade. É muito fácil e cômodo acreditar em salvadores e em soluções fáceis. A ilusão é sempre mais fácil de vender que a realidade.

Quando se adota princípios tão contrários a pessoa do outro, suas opiniões, posições, convições, interesses e mesmo seus direitos, os resultados serão necessáriamente excludentes. Existirão os que ganharão e os que perderão. O cenário pode ser até pior, porque, para muitos, a diferença justifica a aniquilação, como no slogan “bandido bom é bandido morto”. Nesse tipo de sociedade, apenas uma reduzida parcela se beneficia e a paz social é, acima de tudo, uma trégua. A proposta implícita dos discursos que propagam a violência, intolerância e ódio são a intensificação de uma sociedade ainda mais iníqua e injusta.

Os princípios que estão por trás desse discurso de violência, intolerância e ódio são contrários à ordem jurídica nacional, cujo objetivo é construir uma sociedade livre, justa e solidária (Constituição, artigo 3º, inciso III), à ordem jurídica internacional em seus diplomas jurídicos mais importantes (p. ex., Declaração Internacional de Direitos Humanos e Convenção Americana sobre Direitos Humanos), como também à ordem moral e religiosa de praticamente todos os credos, cujos preceitos basilares são “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39). A importância de se refletir sobre a adequação desses discursos de violência, intolerância e ódio vai além de posicionamentos políticos, idológicos ou religiosas, sendo do interesse de todos nós que convivemos nessa sociedade.

É preciso alijar os discursos de violência, intolerância e ódio, cujos resultados são históricamente sentidos no Brasil. O que está sendo proposto como novo não passa de uma roupagem do que já está posto há muito. Mais do mesmo. A sociedade atual foi formada por esse discurso, sendo a desigualdade e violência as suas consequências naturais. Esse discurso irracional foi o que moldou a sociedade atual. 

Respeitar é mais que tolerar. Em tempos em que a tolerância já é uma distante meta, o respeito do outro, do diferente, parece ser um ideal inalcancável. Para mudar as realidade social, é preciso realmente mudar o modo de ser da sociedade, o que não vai acontecer com maior liberdade estatal de encarcerar e matar (o que já é feito com profusão) e, pior, com a liberdade individual para armar-se. A polícia brasileira é uma das que mais mata em todo o mundo e com reduzida prestação de contas sobre essas mortes[2]; em seis dias, a polícia brasileira mata o mesmo número de pessoas que a polícia britânica em vinte e cinco anos[3]. No Brasil, a população carcerária aumentou 85% entre 2004 e 20141. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. O aumento no encarceramento não vem apresentando resultados positivos, porquanto o crime não vem sendo reduzido[4]. Como respostta para essa realidade, defende-se medidas que visivelmente não conferem resultados positivos, isto é: aumento da violência policial e encarceramento. Basicamente é isso que defendem os áudios de whatsapp e postagens facebook, assim como as mídias policialescas. 

Os discursos que predominam nas redes sociais são carentes de referencial empírico e teórico. Não existem estudos ou pesquisas que os fundamentem, além de serem, vários deles, mentirosos mesmos. Promete-se solução fáceis para os problemas sociais mais complexos, o que seria resolvido basicamente pela violência, intolerância e ódio. Trata-se de um discurso irracional, pois despido de clareza e adequação entre fins e meios. Não é claro quais os fins a serem alcançados, nem os meios para tal; “bandido bom é bandido morto” não diz muita coisa, apenas transmite os princípios de violência, de intolerância e de ódio. Como fundamento desses discursos, está o desrespeito com relação ao outro. 

Sobre os problemas mais graves, a maioria da população não faz as perguntas certas, de modo que não serão encontradas também as melhores respostas. Limita-se a reproduzir o discurso de violência, intolerância e ódio que contamina as redes sociais. O caminho da razão indica que primeiro se faz as perguntas para depois se encontrar as respostas. Atualmente, as respostas já são dadas antes de tudo, dificultando enormemente qualquer reflexão. A falta de verdadeiro diálogo é o principal resultado de já se ter as respostas antes de se questionar sobre os problemas existentes; e do desrespeito ao outro, cujo saber e interesses são desprezados. 

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Também se costuma desconsiderar os exemplos dos países em que foi obtido os maiores índices em qualidade de vida. Como foram resolvidos as questões sociais mais graves na Suécia, Dinamarca, Noruega, Canadá, Nova Zelândia etc? Será que foi pelo encarceramento em massa, pelo linchamento dos suspeitos de pequenos crimes contra o patrimônio, pela condenação sem o devido processo legal? Enquanto se fala tanto de Venezuela e Cuba[5], esquece-se de buscar soluções em países modelos, em que as coisas parecem funcionar muito bem. Provavelmente a causa desse esquecimento seja porque, nesses países, os princípios do discurso de violência, intolerância e ódio e intolerância sejam rejeitados, como a tortura, a violência policial, o linchamento (justiça pelas próprias mãos) e vários dos ideais atualmente propagados nos grupos de whatsapp e facebook à exaustão, reforçado pelas mídias policialescas. É sempre sábio se instruir com aqueles que já conhecem o caminho, que já estão voltando de viagem.

Um bom caminho para se tentar resolver os problemas mais graves que existem no Brasil é ouvir com atenção as palavras e ideias dos maiores especialistas e estudiosos em seus campos de estudo. Isso é feito basicamente por meio de estudo e reflexão, não por meio do desrespeito, do ódio, da intolerância e da violência. Ademais, os exemplos dos países mais avançados pode servir de guia em busca de soluções[6]. Estaremos seguindo um caminho melhor quando nos fizermos perguntas do tipo: como os países com melhorres índices de desenvolvimento resolveram seus problemas sociais? Foi por meio da tortura, do linchamento, dos discursos de violência, intolerância e ódio, por meio da violência generalizada ou foi por meio do uso ponderado da razão, da reflexão e do diálogo? O que dizem os estudiosos sobre questões sociais como a criminalidade, o desemprego, a violência, a corrupção?

Não há garantias de que esse método irá funcionar. Mas ele promete melhores resultados que a repetição irrefletida do discurso superficial e carregado de ódio e intolerância que influencia dezenas de milhões de brasileiros todos os dias, pela mídia policialesca, grupos de whatsapp e postagens de facebook.

Os problemas mais complexos da sociedade não serão resolvidos com facilidade por nenhum salvador. A reflexão e o diálogo são instrumentos essenciais para se chegar a uma sociedade mais livre, justa e solidária, sendo extremamente benéfico dar atenção aos estudiosos e analisar o exemplo de países que já venceram os problemas enfrentados atualmente no país. As questões complexas só podem ser resolvidas por meio de complexas soluções, que demandam muito estudo, pesquisa, empenho e, principalmente, diálogo e respeito ao outro, ao próximo, ao diferente.


[1] Cf. http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/05/brasil-ocupa-60-posicao-em-ranking-de-educacao-em-lista-com-76-paises.html . Consultado em 02/11/2018.

[2]      Cf. https://www.amnesty.org.uk/files/use_of_force.pdf ; https://www.amnesty.org/en/latest/news/2015/09/amnesty-international-releases-new-guide-to-curb-excessive-use-of-force-by-police/ ; http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/policia-brasileira-e-a-que-mais-mata-no-mundo-diz-anistia-internacional/ ; e http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150803_anistia_mdb_lk . Consultados em 15/08/2017.

[3] Cf. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/10/1827203-policia-brasileira-mata-em-6-dias-o-mesmo-que-a-britanica-em-25-anos.shtml . Consultado em 23/03/2018.

[4]      Cf. https://www.brasildefato.com.br/2017/01/20/em-dez-anos-numero-de-presos-no-brasil-aumenta-85/ e http://fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2016/04/26/numero-de-presos-no-brasil-mais-que-dobra-em-14-anos/ . Consultados em 26/05/2017.

[5]      Países que sofrem severos embargos econômicos que os prejudiciam enormemente e que são grandes responsáveis por muitos de seus problemas

[6]      De forma alguma, não se defende a importação irrefletida de “soluções enlatadas”, principalmente quando originadas dos Estados Unidos, que, apesar de todas as suas riquezas,  nem sequer é bom exemplo de justiça social .

Sobre o autor
André Filipe do Nascimento Mendes

Bacharel em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN - 2014) Pós-graduado em Residência Judicial pela Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte (ESMARN) e UFRN

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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