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Os princípios do direito público e o Estado:

a dialética dos interesses públicos e dos interesses privados na teoria da justiça de John Rawls e na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas

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16/07/2005 às 00:00
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II - HABERMAS E A DIMENSÃO ÉTICA DO DIREITO

            2.1 Herdeiro da Escola de Frankfurt: crítica ao positivismo

            Um dos mais influentes pensadores da contemporaneidade, Jürgen Habermas nasceu em 1929, na cidade de Dusseldorf, na Alemanha. Fez seus estudos em Gottinger, Zurique e Bonn. Após seu doutorado em Marburgo, lecionou filosofia em Heidelberg e, posteriormente, filosofia e sociologia em Frankfurt. De 1971 a 1980 foi diretor do Instituto Max Planck, em Estamberg. Talvez uma das mais importantes passagens da sua carreira foi como auxiliar de Theodor Adorno, de 1954 a 1959, o que praticamente lhe legou o título de herdeiro da Escola de Frankfurt, como crítico do positivismo e do cientificismo.

            Habermas faz parte da chamada Escola de Frankfurt [45], um grupo de estudiosos famosos pelo desenvolvimento da chamada "Teoria Crítica" da sociedade, a partir de um novo olhar do viés marxista por meio de leituras freudianas, entre outras, identificando as novas "patologias" surgidas no seio do mundo pós-industrial atravancado pelos revolução das tecnologias da informação. Trata-se de um marxismo em ruptura com a ortodoxia, cujos mentores – muitos deles exilados nos Estados Unidos – buscavam explicações para as profundas transformações ocorridas na década de 1940, das quais se tira uma conclusão de que os meios de comunicação, outrora vistos como benignos à democracia, podem se converter em instrumentos de dominação e condução do poder.

            A instituição surgiu ainda na República de Weimar e foi caracterizada por ser a primeira instituição alemã de cunho declaradamente marxista. Suas origens remontam ao filósofo Marx Horkheimer e ao economista Friedrich Pollock, que erigiram o Instituto de Pesquisa Social (em alemão Institut für sozialforschung), vinculado à Universidade de Frankfurt.

            2.1.1 Marxismo em ruptura com a ortodoxia

            Seus pensadores, caracterizados por um profundo pessimismo com relação à modernidade, tiveram como marco histórico a obra "Dialética do Iluminismo", de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, nos idos de 1940, em seu exílio nos Estados Unidos. Já na abertura do livro, criticam arduamente o papel da ciência ocidental, calcada nos avanços científicos, que relegou para um patamar inferior a cultura teórica – em franco estado de decadência. Nos seus apontamentos, o pensamento se degenera em mercadoria e a linguagem é algo que lhe serve de referência, pura e simplesmente.

            Em 1968, com "Ciência e técnica como ideologia", Habermas acentua sua crítica ao positivismo e a técnica, ao dispor de uma série de questionamentos com relação as possibilidades de convivência nas sociedades industriais e a democracia.

            Ao tentar resolver as aporias dos seus predecessores, Habermas, de certa forma, inova na teoria crítica e rompe com o pessimismo, ao aderir à chamada "virada lingüística", seguindo as idéias de Karl-Otto Apel, entre outros. Seus estudos encaminham-se para a elaboração daquilo que ele denominou de "Teoria da ação comunicativa", publicada em dois volumes em 1982, como contribuição à ética discursiva, que, posteriormente, além de repercutir na filosofia moral, na filosofia da linguagem, ganhou certa relevância na filosofia do Direito, principalmente, na crítica ao Direito Positivo.

            2.1.2 Uma abertura à possibilidade de diálogo

            Este texto tenta, de maneira sucinta, demonstrar a influência das teorias de Habermas na discussão contemporânea sobre o papel do Direito nas sociedades e de como o agir comunicativo se processa na sua formação, por meio da "comunidade ideal de falantes", demonstrando que o positivismo jurídico ao ater-se rigidamente à norma torna-se uma instância autoritária, fechada a contra-argumentações, desfalecendo todo o rol democrático rumo ao "entendimento". Porém, também se levantam outros aspectos da extrema idealização proposta por Habermas, tais como o fato de a comunidade ideal de falantes ser demasiadamente utópica e o anseio de solidariedade – típico do agir comunicativo, que rejeita a coação – ser um passo muito além do atual estágio da humanidade, que necessita, por outro lado, do poder coercitivo do Estado, regulado pelo Direito, na resolução de conflitos, em situações em que não há mais possibilidade de diálogo.

            A linguagem, como apregoa J. Xavier Herrero, é um "médium constitutivo de todo sentido e validade" que, ao se tornar objeto de estudos mais detalhados, deu vazão a três grandes núcleos de investigação: "(...) a sintática, que investiga a relação dos sinais lingüísticos entre si; a semântica, que se ocupa com a relação dos sinais com o significado, isto é a dimensão referencial com os objetos significados; e a pragmática, que explicita a relação dos sinais com os sujeitos e com o uso que estes fazem dos sinais e das proposições". [46]

            Afere-se, então, que o alicerce da comunicação e de qualquer tipo de conhecimento está no entendimento sobre algo. Em outras palavras, numa língua natural, a primeira coisa a ser averiguada é que haja igual (ou muito semelhante) identidade daquilo que se quer comunicar para todos os membros de uma comunidade comunicativa. Os significados dos sinais veiculados pela linguagem, ao disporem de certa coincidência entre os "falantes", dão margem à dimensão intersubjetiva, que faz com que os inseridos no "mundo da vida" tenham noção de um plano comunitariamente compartilhado. Caso contrário, qualquer possibilidade de entendimento estaria fora de cogitação.

            2.2 Razão instrumental e as relações meio-fim

            A razão comunicativa é o ponto-chave que proporciona aos homens uma reação à intrusão das ciências modernas na vida humana, que globaliza e prioriza a razão instrumental, com roupagem "técnico-científica", pelo planeta. Este perigo contra a humanidade, calcada num projeto de domínio da natureza, requer igualmente uma resposta enquadrada no universalismo. Todos os homens têm de assumir sua responsabilidade moral, solidariamente, em todos os lugares, para mobilizar ações coletivas: a ética discursiva como um clamor rumo a uma macroética nos moldes kantianos.

            A dominação da "teoria da ciência" e o seu império determinam a exclusão do ético, já que a "validação intersubjetiva de argumentos (...) limita-se ao campo das ciências formais, lógico-matemáticas, e ao campo das ciências factuais, as empírico-analíticas, da realidade". [47] Declarado este monopólio do campo do saber objetivo, com validade intersubjetiva, as normas morais estão fora de qualquer consideração. As únicas com pretensão de validade, neste aspecto, são aquelas deduzidas de fatos observáveis.

            2.2.1 Práxis solidária e planejada

            Karl-Otto Apel prega uma práxis solidária e planejada, sinal de humanização da vida humana. Quer dizer, uma maneira de recuperar os homens do dogmatismo técnico-instrumental. Habermas ressalta a linguagem como algo que tem imanente a si um potencial de criticidade indutor à integração social (compreensão lingüística), que, no entanto, é substituído pelos valores instrumentais. A ética é substituída pelo Direito positivo, o possibilitador das relações de troca e poder.

            2.2.2 A dimensão do ético em Habermas

            Para Habermas, baseado em P. F. Strawson, diz que a filosofia deve procurar a dimensão do ético na vida humana. Conforme o segundo, um dos referenciais para esta tarefa é a recuperação da interatividade da relação de sujeitos capazes de falarem e agir, responsáveis pelos seus atos e conseqüências, mediante "compromissos" válidos para todos. Se o ético converge na interação, avança sobre os particularismos, porque "diz respeito a um espaço de possível reconhecimento recíproco entre sujeitos de igual dignidade". [48] E a norma moral só o pode assim ser caso seja válida universalmente, cuja fundamentação pode ser compreendida nos seguintes termos:

            "Dever fazer algo significa ter fundamento para sua ação. Normas éticas perdem toda a autoridade sem um conteúdo cognitivo, se não se puder mostrar que possuem razão de ser. Portanto, qualquer reflexão sobre o ético implica que levemos em consideração essa rede de sentimentos éticos que perpassa a práxis comunicativa da cotidianidade dos homens. Certamente, diz Habermas,esses sentimentos éticos têm para a legitimação moral de normas de ação papel semelhante ao da percepção da explicitação teórica de fatos. Toulmin estabelece um paralelo entre percepções e sentimentos: opiniões e sentimentos funcionam no cotidiano como mediadores não-problematizados de interações. Quando tais proferimentos esbarram em contradiçãos, a pretensão de validade a eles vinculada entra em crise: passa-se então a uma avaliação crítica da pretensão de validade (...) um argumento ético refere-se à rede de sentimentos morais de modo análogo como um argumento teórico relaciona-se com a corrente de percepções. Assim, se pode falar em ‘verdade ética’." (Oliveira, 1993, p. 19)

            Habermas entende a ética como uma ciência reconstrutiva, que, diante da atualidade, possa pretender e justificar a normatividade. Entretanto, qual normatividade? Um tipo que, é claro, seja uma base forte o suficiente para a elaboração de teorias democráticas que afastem "enfermidades" como o paternalismo e a ditadura dos tecnocratas, como se vem reiterando sucessivamente neste texto. O ético, em Habermas, surge somente quando há interatividade entre os sujeitos, desde que, é claro, sejam superadas as particularidades em prol da pretensão de validade universal da norma moral. Há, nestes termos, a empatia entre indivíduos que se reconhecem reciprocamente como pessoas portadoras de dignidade igual. Entretanto, esta interação deve estar imbuída de boa-fé, construída com motivação racional, para que se possa convencer o ouvinte quanto a uma ordem, afirmação, exigência ou proposta.

            Este processo de interação, por meio da comunicação, supõe que aquele que fala não pretende que seu ato de fala seja válido somente para si. Necessita que a sua manifestação (Ausserung) seja reconhecida, como verdadeira, para qualquer um que possa aceitá-la ou, como falsa, para os que quiserem negá-la. Qual seja o resultado, com relação ao ouvinte, há de se esperar sempre que haja uma resposta em algum momento. Os estudos de Habermas sobre a ação comunicativa e o potencial libertador da mesma espelham-se nesta possibilidade de união, em forma de reconhecimento recíproco da validade quanto ao que uma oferta de coordenação pretende.

            2.3 Teoria da ação comunicativa

            Uma das mais polêmicas e comentadas obras de Habermas é "Teoria da ação comunicativa", publicada em dois volumes, em 1982. Por meio desta nova percepção, o alemão adere de vez à chamada "guinada lingüística", ao divulgar que a razão comunicativa – um novo vetor para organizar solidariamente a sociedade – está sufocada pela razão instrumental das relações meio-fim, implementadas pelo modo de produção capitalista.

            A ação comunicativa de Habermas é um contraponto à ação estratégica. Constitui um passo para uma visão mais solidária do agir humano, em geral, pois na ação comunicativa os participantes têm como meta um entendimento sobre uma situação passível de consenso. Na segunda, porém, um dos participantes – em vez de levar em consideração a "vontade" ou o "bem-comum" do grupo – procura levar a cabo suas próprias intenções. Para Habermas, a linguagem tem uma importância como médium, algo que permita estabelecer relações entre o sujeito e o mundo. A interpretação, ademais, deve ser igualmente cooperativa, moldando esta relação com o mundo de modo reflexivo.

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            Distinguem-se três tipos de ação social, cada qual com suas pretensões de validade, orientadas segundo as metas dos participantes. Se a coordenação da ação persegue cálculos egocêntricos de utilidade, a ação é teleológica, podendo converter-se em ação estratégica se houver antecipação de decisões por pelo menos um dos atores. A ação regulada normativamente decorre da coordenação de ação que, pela cultura e socialização, propõe um "acordo socialmente integrante de valores e normas". Caso o objetivo seja uma relação de consenso entre atores e seu público, a ação é dramatúrgica. [49]

            2.3.1 O mundo da vida

            O mundo da vida nada mais seria que um conjunto de sentidos gramaticalmente estruturados, no qual os indivíduos – desde que aptos para a vida social – recorrem para compreender, interpretar e agir sobre o mundo. Nos processos interpretativos, em cooperação, os sujeitos socializados já se utilizam disto implicitamente. O mundo da vida já está constituído, pelas tradições culturais em comum, já estando previamente interpretado. Quando partilhado intersubjetivamente, o mundo da vida é o embasamento da ação comunicativa, pois conjuga os três mundos, formando um sistema referencial que já define, anteriormente, o que será o objeto que recairá a possibilidade de qualquer reconhecimento. [50]

            Aragão tece alguns comentários fundamentais para a melhor compreensão sobre o conceito de mundo da vida:

            "(...) seu caráter não problemático, que deve ser entendido num sentido radical (...) no máximo, pode desmoronar, pois é aceito sem questionamento na atitude do senso comum. Os elementos do mundo da vida (...) não têm o status de fatos, normas ou experiências a respeito dos quais os falantes e ouvintes poderiam chegar a um entendimento. Apenas podem ser objetos de consenso os elementos de uma situação da ação. (...) há um a priori social embutido na intersubjetividade do entendimento mútuo da linguagem. O mundo da vida é anterior a qualquer desacordo, é comum a todos, e não pode se tornar controverso da mesma forma que o conhecimento partilhado intersubjetivamente pode. (...) os limites do mundo da vida não podem ser transcendidos, embora as situações constantemente mudem. (...) Ele forma um contexto em que, ele próprio sem limites, delineia limites. Ele circunscreve situações de ações à maneira de um contexto pré-compreendido que não é endereçado." (Aragão, 1997, p. 45)

            Conforme já se disse anteriormente, Habermas diferencia a ação social em ação instrumental e ação comunicativa. Na primeira, verifica-se o interesse técnico, ou seja, aquele que o homem tem de desejar submeter a seu domínio a natureza, por meio de metidos geralmente calcados nas ciências experimentais e na tecnologia, numa relação de controle, previsão e recriação artificial. Por sua vez, o interesse prático consiste naquele organizar os relacionamentos entre os humanos, implicando numa repressão à sua natureza interna, com normas para regular seus processos de vida em sociedade. Tais normas, se aceitas, serão institucionalizadas e terão força de lei, o que significa possibilidade de sanção previamente cominada em caso de desobediência. [51]

            2.3.2 Interação como conteúdo emancipatório

            Entretanto, esta interação é racionalmente motivada, com conteúdo emancipatório de querer libertar-se da dominação social e política. Esta ação comunicativa, porém, só pode ser atingida se houver novos níveis de reflexão, que serão atingidos por meio "do exercício da prática comunicativa, (cujo objetivo é o entendimento mútuo, e cujo critério é a argumentação racional), com a instituição da esfera do discurso" [52]. Há, então, uma diferença entre os acordos obtidos na prática cotidiana – o consenso fático – e os acordos realmente racionais, já ao nível do discurso, que requer a racionalidade dos argumentos.

            Se, para a geração anterior da Escola de Frankfurt, a razão era o algoz da dominação, para Habermas, a razão transformou-se num vetor de libertação. A partir desta cisão entre razão instrumental e razão comunicativa – em certo ponto, maniqueísta -, Habermas possibilita projetos de um novo tipo de sociedade, pela derrocada em prática da ação comunicativa, nos planos regulativos do mundo da vida.

            Habermas personifica, em sua teoria da ação comunicativa, o "desejo de ser compreendido de qualquer falante certas pretensões de validade universais inerentes a qualquer situação de comunicação, para que o conteúdo de um proferimento possa ser apreendido e possa, além do mais, produzir um entendimento entre falantes e ouvintes" [53].

            Com a ampliação do conceito de razão – que inclui, além da verdade, a correção e a autenticidade -, Habermas sugere que a linguagem não seja somente conhecimento, mas também ações, motores que gerem "expectativas de reações comportamentais tanto ao nível social quanto subjetivo" [54]. Este princípio de universalidade (U) é um dos principais pilares da teoria habermasiana aplicada ao direito, a resposta da modernidade para a regulação de comportamentos.

            2.3.3 Crítica ao Direito Positivo

            A conseqüência direta da interferência da ação instrumental no mundo da vida é a mecanização das relações sociais, que se afastam das identidades dos agentes. O Estado, salienta Manfredo A. de Oliveira, impõe o Direito – imbuído dos pressuspostos jurídicos de uma troca – no lugar das normas de validade tradicional, obtidas por meio de um consenso racional. Assim, Oliveira insiste em dizer que "a vida dos homens vai-se reger muito mais por mecanismos funcionais inconscientes do que por normas éticas", porque "a lógica sistêmica invade a vida privada e pública do homem, recalcando para a marginalidade sua dimensão ética. (...) é a substituição do ético pelo sistêmico" [55].

            Habermas propõe um modelo que seja base para uma nova integração social por meio da sua teoria da ação comunicativa, já que esta se converte, em suas próprias palavras, num "fio condutor para a reconstrução do emaranhado de discursos formadores da opinião e preparadores da decisão, na qual está embutido o poder democrático exercitado conforme o direito" [56] E o direito positivo seria a complementação necessária a qualquer ordem moral que seja orientada por princípios. [57] Enquanto Kant subordina as normais legais às normas morais, Habermas encontra uma relação entre ambas, vendo-as como co-originais, havendo complementaridade recíproca.

            O Direito contemporâneo, de acordo com Habermas, possui dois aspectos de extrema relevância: a positividade e a pretensão de ser aceitado racionalmente. Com relação à positividade, todo o ordenamento jurídico, enquanto estrutura de normas, consiste numa realidade social (ou melhor, um fragmento dela) artificial. Tal realidade, porém, está sujeita a modificação ou mesmo revogação por meio de normas previamente estabelecidas, por quem lhe competir. Desta forma, devido a possibilidade de ser modificado, o Direito Positivo assume a "expressão pura de uma vontade", que determina a duração de certas normas, para que tenham vigência e estejam protegidas quanto a qualquer outra possibilidade [58] de serem declaradas sem validade.

            O voluntarismo da pura criação, aponta Habermas, é a gênese de toda patologia do Direito Positivo. Portanto, o Direito Positivo não pode sustentar-se apenas em decisões arbitrárias, pois se assim o for, são sérios os riscos de perder o seu poderio como integrador social. Ademais, salienta que a força do Direito tem muito mais fundamento na aliança formada que "a positividade do direito estabelece com a pretensão à legitimidade" [59]. Daí, se verifica "o entrelaçamento estrutural entre a aceitação, que fundamenta os fatos, e a aceitabilidade exigida por pretensões de validade, que já estava produzida no agir comunicativo e na ordem social mais ou menos natural, na forma de tensão entre facticidade e validade" [60].

            2.3.4 Facticidade e normatividade

            O Estado regulado pelo Direito emana o próprio Direito. E é neste ciclo que se encontra a tensão entre a facticidade e a normatividade. No entanto, Habermas reconhece que o princípio do discurso e a forma jurídica de relações interativas, sozinhos, não conseguem fundamentar qualquer tipo de direito. Quer dizer, só pode converter-se numa figura de um princípio da democracia caso esteja conectado com o medium do direito, de tal maneira que forme "um sistema de direitos que coloca a autonomia pública numa relação de pressuposição recíproca (...) e vice-versa, qualquer exercício da autonomia política significa, ao mesmo tempo, uma interpretação e configuração desses direitos, em princípio, não saturados, através de um legislador histórico." [61]

            A autonomia privada e a autonomia pública, garantidas pelo Direito, representa também a tensão entre facticidade e validade, vista, por Habermas, como tensão entre positividade e legitimidade do Direito. Ao ocorrer o cruzamento entra a forma do Direito e o princípio do discurso, no qual o Direito emerge para seus destinatários e para seus autores, como numa "bifurcação": as iguais liberdades subjetivas de ação são compatibilizadas e "freadas" pelas leis cogentes (obrigatórias e não meramente dispositivas), enquanto o sistema de direitos agrega as liberdades comunicativas dos civis, como se estivessem acordados pelo bem comum, por meio da Lei.

            Nesta asserção, de que o uso público das liberdades comunicativas deve ser garantido institucionalmente pelos direitos políticos fundamentais, como se fossem direitos subjetivos, abre-se margem para uma colocação de extrema relevância: a linguagem dos direitos de comunicação e participação deve ser elaborada de uma maneira que permita aos sujeitos autônomos do direito a faculdade de escolha, seja de utilizá-los ou não, ou, ainda, de escolher como utilizá-los. [62]

            Considerar o Direito como um círculo que princípios e normas que legitima a si mesmo, tal como conceitua o positivismo jurídico, impede a participação de uma população acostumada com a liberdade, cuja espontaneidade na pode ser reprimida pelo Direito. Para Habermas, o Direito não é um circuito fechado, "se regenera através das tradições libertárias e e se mantém nas condições associacionais de uma cultura política liberal" [63]. A disponibilidade das regulações jurídicas pode comprometer e afunilar o acesso de sujeitos neste processo. Então, os custos das virtudes cidadãs não devem ser muito elevados. Afinal, ao se encarar discursivamente o ordenamento jurídico, há de se olhar para dois lados: "De um lado, a carga da legitimação da normatização jurídica das qualificações dos cidadãos desloca-se para os procedimentos da formação discursiva da opinião e da vontade, institucionalizados juridicamente. De outro lado, a juridificação da liberdade comunicativa significa também que o Direito é levado a explorar fontes de legitimação das quais ele não pode dispor." [64]

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Sobre o autor
Roger Moko Yabiku

Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. Os princípios do direito público e o Estado:: a dialética dos interesses públicos e dos interesses privados na teoria da justiça de John Rawls e na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 742, 16 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7010. Acesso em: 26 abr. 2024.

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