INTRODUÇÃO
O propósito deste artigo é discutir a validade da aplicação das normas do art. 50 do Código Civil, que dispõem sobre desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito do direito tributário que já conta com regras sobre atribuição de responsabilidade pessoal ou solidária a sócios ou diretores. Não tratarei da desconsideração da personalidade jurídica como medida de coibição de práticas de elisão ou evasão tributária, sobre as quais escrevi no livro sobre “Planejamento Tributário”. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 305-340.
O assunto é atual e momentoso em razão do advento das regras de direito processual que dispõem sobre o denominado “incidente de desconsideração da personalidade jurídica” que estão contidas no novo Código de Processo Civil.
RAZÕES DA INAPLICABILIDADE DO ART. 50 NO DIREITO TRIBUTPARIO
Considero que existem três questões que tornam indevida a aplicação do art. 50 do Código Civil em matéria de atribuição de responsabilidade por débito tributário. Em primeiro lugar, entendo que a adoção das normas de direito privado sobre responsabilidade esbarra num primeiro obstáculo de ordem formal; é que essa matéria – em direito tributário – só pode ser veiculada por intermédio de lei complementar na forma do disposto no item III do art. 146 da Constituição Federal. Essa conclusão foi a adotada pelo Plenário da Suprema Corte por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 562.276, ocorrido em 3 de novembro de 2010. Portanto, sendo o Código Civil uma lei ordinária, não poderia tratar de responsabilidade tributária. No mais, a aplicação da norma é problemática porquanto amputa alguns poderes da administração na medida em ela só é aplicável no âmbito de um processo judicial, enquanto que as normas tributárias são aplicadas também pela administração tributária.
Em segundo lugar, há a questão da inconstitucionalidade material das regras contidas em leis ordinárias que dispõem sobre a matéria. No julgamento do RE 562.276, o STF decidiu que: “7. O art. 13 da Lei 8.620/93 também se reveste de inconstitucionalidade material, porquanto não é dado ao legislador estabelecer confusão entre os patrimônios das pessoas física e jurídica, o que, além de impor desconsideração ex lege e objetiva da personalidade jurídica, descaracterizando as sociedades limitadas, implica irrazoabilidade e inibe a iniciativa privada, afrontando os arts. 5º, XIII, e 170, parágrafo único, da Constituição”. O Tribunal decidiu, portanto, que a matéria tem conexão com o princípio constitucional que consagra a livre iniciativa que é um dos fundamentos da República.
Em terceiro lugar, considero que a regra do art. 50 do Código Civil é desnecessária. Afinal, é fato notório que o CTN contém diversas normas sobre responsabilidade tributária, e outras foram editadas pelos legisladores ordinários da União, Distrito Federal, Estados e Municípios. No plano federal tratam da mesma matéria, por exemplo, o art. 8º do Decreto-lei n. 1.736/79 que é claro ao dispor que: “são solidariamente responsáveis com o sujeito passivo os acionistas controladores, os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado, pelos créditos decorrentes do não recolhimento do imposto sobre produtos industrializados e do imposto sobre a renda descontado na fonte”. O item IX do art. 30 da Lei n. 8.212/91 é igualmente claro ao estabelecer que: “as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações decorrentes desta Lei”. No âmbito do ICMS há o art. 5º da Lei Complementar 87/96 que contém regras sobre responsabilidade tributária. Por fim, há o preceito do art. 9º da Lei Complementar n. 123/96, que atribui responsabilidade aos sócios de microempresas e empresas de pequeno porte que tenham sido extintas.
A suficiência das normas sobre responsabilidade tributária repele a aplicação dos preceitos do art. 50 do Código Civil na medida em que estas cumprem as mesmas funções das normas sobre responsabilidade tributária e porque existem, no subsistema normativo do direito tributário, outras normas de reforço aos direitos do credor – o erário. Um inventário dessas normas pode ser visto na Portaria 1.2.65/15 da Receita Federal do Brasil e que foi robustecido pela Lei n. 13.606/18, que ampliou os poderes de persuasão fiscal da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Esse quadro mostra que a adoção, por analogia, das normas do art. 50 do Código Civil constitui um exagero, que não se coaduna com a mais rudimentar noção de razoabilidade.
CONCLUSÕES
Se o direito tributário já conta com normas sobre atribuição de responsabilidade tributária aos sócios e dirigentes, parece claro que a adoção do art. 50 do Código Civil é desnecessária além de ser ilegal. Na lição de Luciano Amaro: “Em suma, quando o direito já fornece o remédio legal, não é preciso “superar” ou “penetrar” nenhuma forma jurídica. Basta aplicar a solução legal, que já se apresenta axiologicamente correta” (Desconsideração da pessoa jurídica no código de defesa do consumidor. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro n. 88. São Paulo: RT, 1992, p. 75). De igual modo, para Humberto Theodoro Júnior: “Na verdade, não se pode falar em desconsideração da personalidade jurídica, quando pela lei já existe uma previsão expressa de responsabilidade direta do sócio. Em tal caso, a obrigação é originariamente do sócio, mesmo que tenha praticado o ato na gestão social”. (O processo civil brasileiro no limiar do novo século. 1. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 266). Em adição, o autor afirma que a desconsideração só é cabível nos casos em que o sócio não possa ser alcançado senão “afastando-se o véu da personalidade jurídica”. Enfim, no âmbito do direito tributário, as normas sobre responsabilização dos sócios e administradores que estão no CTN e em diplomas normativos posteriores representam as decisões políticas segundo juízos de conveniência e oportunidade feitas pelo legislador que pode mudar as regras a qualquer momento, desde que o faça por intermédio de lei complementar. Por estas razões, a recepção das normas do Código Civil sobre desconsideração da personalidade não é racionalmente justificável.
Essas conclusões não negam a vigência das normas processuais sobre incidente de desconsideração da personalidade porquanto elas prestam relevantes serviços ao princípio constitucional que consagra o devido processo legal. Todavia, o nome deve ser mudado para: “incidente de atribuição de responsabilidade tributária”, ou similar, porquanto é disto que se trata.