Se há pluralidade de créditos, sendo da mesma espécie a prestação, surge, ao querer o devedor ou terceiro solver alguma dívida, o problema teórico de se saber qual a dívida a que se há de imputar a prestação insuficiente para solver todas as dívidas. Quem pode imputar?
No direito comparado notam-se algumas tendências: a) para o Código Federal suíço das obrigações de um lado, como expressão da corrente que prefere assegurar a situação do credor; b) para o Código Civil argentino, de outro lado, que se define pelo devedor; c) o Código Civil de 1916, no Brasil(artigos 991 a 994), ao mesmo passo que procura adaptar-se mais seguramente aos princípios herdados do direito romano, adota uma linha módica que nem é francamente do lado do devedor nem procura reforçar a posição do credor. Segundo o Código Civil austríaco, § 1.415, segunda parte, é necessário o acordo com o credor; o devedor indica, mas a eficácia depende do consentimento do credor. Há influência do antigo direito prussiano.
Na matéria tem-se o disposto no atual Código Civil de 2002:
Art. 352. A pessoa obrigada por dois ou mais débitos da mesma natureza, a um só credor, tem o direito de indicar a qual deles oferece pagamento, se todos forem líquidos e vencidos.
Art. 353. Não tendo o devedor declarado em qual das dívidas líquidas e vencidas quer imputar o pagamento, se aceitar a quitação de uma delas, não terá direito a reclamar contra a imputação feita pelo credor, salvo provando haver ele cometido violência ou dolo.
Art. 354. Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros vencidos, e depois no capital, salvo estipulação em contrário, ou se o credor passar a quitação por conta do capital.
Art. 355. Se o devedor não fizer a indicação do art. 352, e a quitação for omissa quanto à imputação, esta se fará nas dívidas líquidas e vencidas em primeiro lugar. Se as dívidas forem todas líquidas e vencidas ao mesmo tempo, a imputação far-se-á na mais onerosa.
No caso do artigo 352 do CC de 2012, a indicação é manifestação de vontade, exercício de direito formativo. Tal manifestação acompanha a oblação; de modo nenhum retira ao adimplemento o seu apenas ato-fato jurídico, como indicou Pontes de Miranda(obra citada, pág. 345).
A declaração há de ser expressa. Todavia tem-se admitido a manifestação tácita, se o devedor não se opõe à declaração do credor de que imputará a determinada dívida o adimplemento, ou se o devedor enviou ao credor o que corresponde a um dos crédito; e não ao outro ou aos outros.
O artigo 354 do Código Civil envolve ius dispositivum.
O artigo 355 do Código Civil não é de invocar-se na execução forçada.
Veja-se o que se diz no artigo 433 do Comercial:
Art. 433 - Quando se deve por diversas causas ou títulos diferentes, e dos recibos ou livros não consta a dívida a que se fez aplicação da quantia paga, presume-se o pagamento feito:
1 - por conta de dívida líquida em concorrência com outra ilíquida;
2 - na concorrência de dívidas igualmente líquidas, por conta da que for mais onerosa;
3 - havendo igualdade na natureza dos débitos, imputar-se-á o pagamento na dívida mais antiga;
4 - sendo as dívidas da mesma data e de igual natureza, entende-se feito o pagamento por conta de todas em devida proporção;
5 - quando a dívida vence juros, os pagamentos por conta imputam-se primeiro nos juros, quanto baste para solução dos vencidos.
A antiguidade das dívidas é determinada pelo vencimento e não pela constituição delas. Se havia termo ou condição, ao advento daquele ou implemento dessa é que se data a dívida para as consequências da imputação. As dívidas com data certa vêm antes daquelas que se prestam por interpelação; as em que já houve interpelação, antes das que têm data certa de vencimento posterior à interpelação e das que precisam de interpelação e ainda não a tiveram, posto que pudesse ter havido interpelação anterior.
As circunstâncias dizem se uma dívida é mais onerosa que outra.
Se o devedor faz a indicação e se a dívida é líquida e vencida, a recepção pelo credor extingue a dívida ou parte dela, se é o caso. Se o devedor fez indicação que não podia fazer, o credor pode recusar a prestação.
Mas se o credor recebe, mas protesta, por entender que a outra dívida se há de imputar o adimplemento, é ineficaz o seu protesto.
O devedor poderá ajuizar ação declaratória em que alegue estar extinta a dívida a que imputou o adimplemento.
Por sua vez, se o credor alega que o débito não foi solvido, será caso de ajuizamento de ação condenatória ou ainda executiva. O ônus de provar que o demandado não tinha o direito de indicação toca ao autor.
Na execução forçada, não há direito de indicação do devedor cujos bens vão ou já foram penhorados. Tem-se que, no direito brasileiro, o credor executa forçosamente a dívida que ele quer executar. Se há relações jurídicas processuais diferentes, o que o devedor pode fazer é promover com adimplemento, a extinção da que entender. O que o devedor, no caso de uma só relação jurídica processual com res in iudicium deducta compreensiva de duas ou mais dívidas, pode fazer. É solver qualquer delas, separadamente, se o credor consente.
Se quem presta é o fiador, ele, e não o devedor, tem o direito da indicação, como ensinou Plank(Kommentar, II, 1, 486).
Para que ao devedor contra quem tem o credor créditos líquidos, vencidos e eficazes, se atribua solver a dívida prescrita, ou dívida a vencer-se, ou prestar à conta da dívida ilíquida, é necessário que tenha havido prévio acordo com o credor ou que o diga o credor na quitação, ou que resulte evidentemente, das circunstâncias.
O adimplemento tem de ser feito ao credor, ou a quem o represente ou tenha legitimação para receber. Se foi feita a terceiro, só se considera eficaz após ratificação pelo credor, ou até onde houver enriquecimento pelo credor(Código Civil, artigo 308).
Ensinou Pontes de Miranda(obra citada, pág. 347) que a pós-eficacização também se dá se o não-credor sucede, entre vivos ou a causa da morte, ao credor.
Se houve penhora, a solução ao penhorante tem de ser através do juízo, em virtude de decisão judicial na execução forçada. Se adimplemento foi antes disso, a pós-eficacização só se dá se o recebente ficou legitimado à adjudicação, ou a receber o importe da arrematação.
A imputação em pagamento é a faculdade de escolher, dentre várias prestações de coisa fungível, devidos ao mesmo credor, pelo mesmo devedor qual dos débitos satisfazer como ensinou M. I. Carvalho de Mendonça(Obrigações, I, n. 326).
Se houver acordo anterior para a imputação, inclusive numeração das dívidas, para os efeitos da imputação, é inoperante o protesto do credor, que recebe a prestação, por entender, erradamente, que seria de imputar-se a outra dívida que aquela que foi apontada pelo devedor (protestatio facto contraria).
Se o devedor não podia imputar à dívida que imputou, o credor pode receber como paga da dívida a que se haveria, segundo o acordo, de imputar; o credor pode não receber, porque houve uma violação do acordo pelo devedor; ou receber, protestando, ou receber, anuindo na imputação pelo devedor, discordante do estabelecido no acordo. Na primeira espécie, como disse Pontes de Miranda(Tratado de Direito Privado, tomo XXIV, Bookseller, pág. 344), há mora debitoris; na segunda, a prestação está retida pelo credor, que deixa a espécie ao exame da justiça ou ulterior entendimento dos figurantes, como eficácia declaratória; na terceira, o obstáculo à solução da dívida indicada pelo devedor seria a oposição do credor e essa não ocorreu, como ensinou Enneccerus(Lehrbuch, II, 31ª a 35ª ed. 211, nota 3). Mas F. Schollmeyer e H. Rehbein mencionados por Pontes de Miranda(obra citada), argumentaram que foi o devedor que renunciou ao direito de imputar, o que, para Pontes de Miranda, é erro pois se houve recepção, cessou o direito de imputação e não se renuncia a direito que deixara de existir.
O certo é que quando a pessoa é obrigada, simultaneamente, por mais de um débito da mesma natureza, a um só credor, tem o direito a indicar a qual deles oferece pagamento(imputação do devedor). Mas tal faculdade é extensiva a terceiro que paga, nos casos em que tenha o direito. Para Caio Mário da Silva Pereira(Instituições de Direito Civil, volume II, quarta edição, pág. 188), o princípio, entretanto, não pode ser entendido de maneira rígida e absoluta, pois que ao credor é reservado recusar a imputação do pagamento na dívida ilíquida ou não vencida. Por isso é necessário que se indiquem os requisitos extremos desse fenômeno jurídico, como ainda salientou Serpa Lopes(Curso de Direito Civil, II, n. 193), segundo as exigências da lei: a) a existência de diversos débitos; sem esta pluralidade não há hipótese de imputar-se pagamento em um deles. Não obstante a lógica da observação, há quem admita pagamento imputável em unidade de débito. Carvalho de Mendonça(Doutrina e prática das obrigações, n. 326) classificou tal solução como heterodoxa, pois não passa de admissão de pagamento parcial. A identidade dos sujeitos, pois que não se foram os mesmos o devedor e o credor não se configura; os débitos devem ser da mesma natureza; a prestação oferecida deve bastar a extinção de qualquer das dívidas, pois, a princípio, o credor não pode ser compelido a receber pagamento parcial.
Reconhecida a imputação de pagamento ao devedor, não se pode deixar de conceder ao credor certas faculdades. Disse Caio Mário da Silva Pereira(obra citada, pág. 189) que assim, se o débito for de capital e juros, imputar-se-á o pagamento, primeiramente, nos juros vencidos e depois no capital, a não ser que haja estipulação em contrário, a qual será respeitada, como expressão da vontade das partes.
Por sua vez, a dívida a termo suporta imputação antes do vencimento do prazo, quando este é o benefício do devedor, pois que não se lhe pode recusar a renúncia a um benefício instituído a seu favor; mas não se dá na hipótese reversa, de ser a termo a favor do credor.
Assim efetuado o pagamento sem se valer do direito de opção por qual das dívidas oferece a prestação, sendo todas elas líquidas e vencidas, transfere o devedor ao credor a faculdade de escolha(imputação do credor), e, pois, não tem o direito de reclamar contra a que ele realizar.
Uma vez feita a escolha, seja pelo devedor seja pelo credor, e passado o recibo, não pode mais o devedor arrepender-se da indicação ou da omissão própria, para reclamar contra a imputação feita, ainda que a ele danosa. Se deixou de exercer um direito seu, a si mesmo, se recuse e suporte as consequências. Cumpre-lhe aceitá-la, salvo provando que o credor se conduziu de forma maliciosa ou cometeu violência ou procedeu com o dolo.
Omitindo o devedor a indicação da dívida a que oferece pagamento e deixando o credor de mencionar no recibo a imputação, esta far-se-á ex vi legis, já que não há qualquer declaração dos interessados a respeito.