1- INTRODUÇÃO:
O presente artigo tem como foco os aplicativos de transporte de passageiros (Uber, Cabify, 99pop) dando um foco mais amplo nas relações da Uber (empresa multinacional prestadora de serviços eletrônicos na área do transporte privado urbano, através de um aplicativo) já que a empresa detém 90% do mercado dos aplicativos. Buscando dar atenção na precarização das relações (e não relações) de trabalho criadas pela multinacional (onde essa nega qualquer vínculo empregatício), e como tais relações oferecem os riscos a sociedade e aos motoristas (sendo eles tendo a denominação de parceiros), gerado uma grande informalidade.
Palavras chaves: trabalho precário – risco – motoristas parceiros – modernidade líquida – incerteza – vínculo empregatício.
2- FUNCIONAMENTO:
Com a ideia de trazer mais mobilidade dentro dos grandes centros urbanos por um preço mais acessível surge os aplicativos de transporte de passageiros, tentando melhorar o sistema de transporte existente que quando não é de má qualidade é de alto custo. A empresa disponibiliza a plataforma para que motoristas se cadastrem e se conectem juntamente com os passageiros para que assim o serviço de transporte seja realizado, de forma prática, barata e confortável, fazendo jus ao termo da economia compartilhada.
A ideia ganhou grandes proporções, ganhando adeptos pelo mundo todo, e assim concorrentes. O aumento gerou uma grande demanda pelo serviço, fazendo com que mais motoristas de cadastrassem com a pretensão de maximizar seus lucros. Vendo nos aplicativos as vantagens de fazer seus próprios horários e ser independentes.
A empresa utiliza de uma tática de marketing básica para atrair novos clientes, como: oferecer “mimos” (como água e balinha) que os táxis não oferecem, até mesmo os descontos oferecidos para quem trazer mais usuários para o aplicativo, tendo em vista que o que une as pessoas na modernidade é a comunicação. Indicação de nota e qualidade confirmada pelos usuários da plataforma servem para popularizar o serviço e diminuir a insegurança dos passageiros, oferecendo também formas seguras de pagamento.
3- ANÁLISE CRÍTICA:
Baseado na economia compartilhada a Uber conecta passageiros e motoristas particulares, faz com que quem consome não assuma a posse, mas utilize de alguma forma o serviço. Partindo desse modelo pessoas físicas podem ter relações diretas de compra e venda de qualquer demanda.
Com o crescimento exponencial da demanda a empresa a cada dia investe em novos marketings que levam a visão de uma grande oportunidade para o motorista, fazendo com que ele se sinta livre e autônomo, como se fosse um empreendedor, criando sempre mais oportunidades de trabalho não formais e temporárias, oferecendo metas e incentivos financeiros (também temporários), “a contratação das metas abre o caminho para a intensificação do trabalho. Os trabalhadores estão contratando seu desgaste e a própria corrosão daquilo que poderia protegê-los disso” (SILVA, Leonardo Mello, 2010, P. 82). Esse adiamento da satisfação é entendido pelo trabalho como: investir mais para lucrar no futuro, plantar mais para colher no futuro.
Um marketing bem “Fordista” o mito de aumento da renda, onde se esconde a real intenção: manter trabalhadores até que toda a capacidade produtiva tenha se esgotado. Exercendo o trabalho baseado nas oportunidades, esquecendo o projeto de vida. Feito pelo que se tem de imediato, não ao ponto que é preciso chegar. Mesmo sem salário-base essa análise pode ser compreendida no trecho de Leonardo Mello, onde explica sobre como um salário por produtividade gera efeitos negativos:
"O efeito líquido é a individualização dos salários e o incremento da competição entre trabalhadores, além da percepção distorcida de que tal ganho é o correspondente fiel do esforço empreendido por cada uma em sua especificidade produtiva, entendido aquele como o conjunto agregado e indissociável, na pessoa, de vários componentes: dispêndio de energia, cuidado, treinamento, dedicação e investimento subjetivo na execução da tarefa. (SILVA, Leonardo Mello, 2010, P. 65)."
O motorista funciona como se fosse um manufatureiro: ele produz seu dinheiro, vendendo sua mão de obra e meio de produção (o carro) para todas as pessoas que o solicitarem. Vendem também seu tempo (o qual tem-se um paradoxo: como vender algo que não se tem o controle?).
Os motoristas exercem uma atividade imprevisível no que diz respeito aos direitos e garantias de salários fixos, que geram uma certa instabilidade e para a maioria, mesmo usando da Uber para complementar a renda (é o que muitos buscam). Uma renda fixa para que no final do mês consigam pagar suas dívidas. Exercendo sobre o motorista uma grande pressão psicológica, paralelamente relacionada ao mal-estar, e uma má qualidade do serviço prestado. O que pode ser claramente notado no texto de Kalleberg quando disserta sobre o aumento da percepção de insegurança no emprego:
"A precariedade está intimamente relacionada à percepção de insegurança no trabalho. Embora existam diferenças individuais na percepção da insegurança e do risco, as pessoas têm, em geral, cada vez mais medo de perder seu emprego – em grande parte porque as consequências dessa perda se tornaram muito mais graves nos últimos anos – e estão menos seguras de conseguir postos comparáveis. (KALLEBERG, Arne L., 2010, P. 52)."
É possível perceber que grandes empresas sempre querem se isentar da responsabilidade dos seus riscos. Assumindo os riscos da multinacional, os trabalhadores se ligam diretamente a globalização. Onde tais riscos são democráticos, e afetam não só aos trabalhadores brasileiros, como trabalhadores pelo mundo a fora. Independente de classe social, gênero ou etnia.
O que para Ulrich Beck o risco representa a principal característica do trabalho precário, ponto que também pode ser observado pela grande adesão de seguros contra roubos de motoristas, já que apenas estes enfrentam o “mercado” frente a frente.
Frente a modernidade ela mesma passa a se olhar e reconhecer seus problemas e a sua complexidade. Tendo esse grande reflexo nas leis trabalhistas, onde estas não garantem mais a empregabilidade.
Neste ponto de vista trabalhadores são alugados, já que não se tem interesse em se manter um vínculo da empresa com eles. O trabalho vira sinônimo de intermitência, a incerteza é rotineira, é uma força que individualiza ainda mais o trabalhador, sendo também uma maneira de evitar/desvalorizar a solidariedade. Sem solidariedade há a perda da associação de trabalhadores, e assim, sem grupo, sem forças para lutar na busca de possibilidades de mudanças.
O tempo passa a não ser mais contado como cálculo do valor trabalhado. Sendo o novo cálculo tudo aquilo que foi produzido semanalmente, independentemente do tempo gasto ou do esforço, só é contabilizado o tempo com o passageiro dentro do carro. Com a falta de preocupação e o notável desinteresse com o vínculo trabalhista, pode-se notar uma questão abordada por Kalleberg, sobre como a globalização na modernidade vê tais relações:
"Mudanças em instituições legais e outras mediaram os impactos da globalização e da tecnologia no trabalho e nas relações de emprego. Os sindicatos continuaram a declinar, enfraquecendo uma fonte tradicional de garantias e de proteções aos trabalhadores e rompendo o contrato social entre capital e trabalho do pós-guerra. As regulamentações governamentais que estabeleciam os mínimos padrões aceitáveis no mercado de trabalho erodiram com as normas que governavam a competição no mercado de produtos. Os sindicatos declinaram, e a desregulação trabalhista e econômica reduziu o poder das forças de equilíbrio que permitiam aos trabalhadores compartilhar ganhos de produção. Com isso, a balança do poder pendeu dos trabalhadores para os empregadores. (KALLEBERG, Arne L., 2010, P. 49)."
Para alcançar as metas individuais os motoristas enfrentam diversos trade-off (onde avaliam o custo benefício de utilizar de seus recursos - gasolina, as longas horas de trabalho, etc - para tentar lucrar algo). Buscando sempre um ótimo de Pareto, um sinônimo para a máxima eficiência. Tais buscam geram grande consequências e incerteza que nem sempre recaem apenas sobre ele, mas entre sua família e sociedade.
"O trabalho precário também traz uma vasta gama de consequências para indivíduos que estão fora do mercado de trabalho. Polanyi afirmava que o funcionamento desregulado do livre mercado deslocava as pessoas física, psicológica e moralmente. Os impactos da incerteza e da insegurança sobre a saúde e o estresse dos indivíduos são fartamente documentados. A experiência da precariedade também corrói a identidade individual e promove a anomia. (KALLEBERG, Arne L., 2010, P. 55)."
Como o Brasil carece de proteção social na zona cinzenta da regulação de aplicativos, os empregados carecem também de segurança, gerando uma dependência. Onde também faltam políticas públicas que regulem tais deficiências, já que quem comanda o crescimento do trabalho precário não perde força nem rápido nem fácil. Estimular a criação de empregos não precários, seria fundamental na atual sociedade moderna. Sendo também importante destacar a interferência do estado na regulamentação dos aplicativos de transporte particular.
O estado se preocupa apenas em se adequar à modernidade e a economia, não tratando de nenhum direito fundamental (como obrigatoriedade da empresa fornecer um seguro para motoristas, assistência médica, e etc.) por parte da empresa aos prestadores de serviços. Já que o importante no capital é apenas a acumulação de capital. Deixando trabalhadores abaixo da lei, onde tais deveriam estar no mesmo patamar.
A empresa sempre negou vínculo empregatício entre ela e seus parceiros, mas tal negação não deve ser aplicada a todos em geral. Onde grande parte configura os requisitos de vínculo como os:
· Serviço prestado por pessoa física: apenas uma pessoa física pode dirigir o carro (em dias atuais, onde a própria empresa investe em carros autônomos)
· Pessoalidade: já que para ser parceiro Uber, apenas o motorista cadastrado pode dirigir o carro, demonstrando clara a relação motorista-Uber.
· Não eventualidade: onde está o requisito mais debatido, já que motoristas seguem seus próprios horários, alguns de maneira pontual, mas o que aqui está sendo questionado são os que continuamente sempre prestam o serviço, fazendo com que ser motorista da Uber se torne um trabalho.
· Subordinação: caracteriza o recebimento de ordens, onde a Uber exige que se tenha uma boa avaliação (uma média de 4,6) para continuar na plataforma, o que exige subjetivamente o uso de elementos que se façam alcançar tais exigências, como oferecer balinha e água aos passageiros. Além da exigência dos modelos dos carros e funcionalidades.
· Onerosidade: determina que os serviços sejam remunerados, o que também ocorre na Uber. Sendo cobrado 25% do valor arrecadado com a corrida pelo motorista, depois de cobrado seus 25% a Uber enfim, paga os 75%, que ficam com o motorista.
Sendo a categoria de motorista que exerce a atividade regularmente podendo até ser comparados com o empregado doméstico, já que estes estão na mesma situação. A situação exposta já deixou claro o grande problema da modernidade.
As relações entre motorista-Uber mostram uma grande questão levantada por Zygmunt Bauman. O desinteresse pelo vínculo no trabalho demonstra uma grande decadência não só nas questões trabalhistas, mas também nas relações indivíduos-sociedade. A tecnologia influenciando a forma de relações, ao mesmo tempo que deixa tudo mais perto/conectado, é tudo facilmente desconectado. Sendo o maior atrativo dessa modernidade: a facilidade de se desconectar, é tudo muito líquido. Fazendo que a modernidade seja marcada pela efemeridade e a insegurança.
Seria de grande reflexão pensar que se permitir o exercício de atividades sem vínculos, os grandes empresários em vez de cumprir as obrigações trabalhistas criariam maneiras de fazer com que o trabalhador sempre vire seu parceiro, isentando-se de pagar salários. Onde muitos empregadores creem que a Consolidação das Leis Trabalhistas apresenta uma grande regulação do Estado no seu negócio: “como a legislação trabalhista é muito detalhista, estimularia o descarte dos trabalhadores oriundos do mercado formal (porque seriam muito “caros”) e sua substituição por trabalhadores do mercado informal” (SILVA, Leonardo Mello, 2010, P. 68).
4 – CONCLUSÃO:
Pode concluir que ao mesmo tempo que tecnologias facilitam a vida, esconde-se uma zona de penumbra por trás dela. Uma ideia simples contribui para expandir um problema grande. Mostra o Estado omisso na zona cinzenta da regulação e a falta de interesse com seus trabalhadores. Fazer uma reflexão crítica permite entender as relações fora do senso comum, permitindo ver os problemas, mais crônicos e de difícil diagnóstico.
5 - AUTOR:
Vítor Hugo Firmino de Figueirêdo Carvalho
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
KALLEBERG, Arne L. O trabalho precário nos Estados Unidos. In: OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (org.). Hegemonia às avessas: economia política e cultura financeira na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. p. 47-60.
PAULANI, Leda Maria. Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas no Brasil. In: OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (org.). Hegemonia às avessas: economia política e cultura financeira na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. p. 109-134.
SILVA, Leonardo Mello e. Trabalho e regresso: entre desregulação e re-regulação. In: OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (org.). Hegemonia às avessas: economia política e cultura financeira na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. p. 61-91.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidad liquida. Trad. Mirta Rosemberg e Jaime Arrabide Squirru. 1ª ed. 3ª reimp. Buenos Aires: Ed. Fondo de Cultura Económica. Jorge Zahar, 2004. p. 139-177, cap. 4.
BECK, Ulrich. Teoría de la sociedad del riesgo. In: GIDDENS, Anthony; et al. Las consecuencias perversas de la modernidad: modernidad, contigencia y riesgo. Trad. Celso Sánchez Capdequí. Rev. Josetxo Beriain. Barcelona: Ed. cultura Libre, 1996. p. 201-222. cap. 6.