3 A LICITAÇÃO PÚBLICA
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, XXI, instituiu a obrigatoriedade de a Administração instalar procedimento licitatório prévio para a seleção de melhor proposta visando à celebração de negócios jurídicos, tais como a realização de obras, serviços, compras e alienações. Obriga-se a seguir tal regra tanto os órgãos, quantos a entidades da Administração Pública, é dizer as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as fundações, as autarquias (inclusive as ditas “especiais”, denominadas de agências reguladoras e executivas), bem como toda e qualquer entidade de direito privado gestora de recursos públicos.
Contudo, para vislumbrar a análise que é feita nesse trabalho, se faz necessário entender o que é licitação pública e como ocorre o seu procedimento tradicional. Outrossim, cabe pontuar quais seus princípios específicos para somente após enfrentar a aplicação do princípio da eficiência e suas conseqüências para este instituto.
3.1 CONCEITO
Ventilou-se quando se torna obrigatória a utilização da licitação pública, escrevendo, em linhas gerais, que é o procedimento para a administração adquirir, alienar, locar, construir, etc. Contudo, o tema merece um conceito específico que vá além do que se encontra estabelecido em lei, porquanto a mesma não foi feita para conceituar institutos jurídicos.
Sendo assim, cabe então se valer de conceitos já estabelecidos por juristas renomados da doutrina pátria, que podem melhor explicitar em poucas palavras o que é a tal afamada licitação pública.
De acordo com Marçal Justen Filho (1999, p. 40):
‘Licitação’ significa um procedimento administrativo formal, realizado sob o regime de direito público, prévio a uma contratação, pelo qual a Administração seleciona com quem contrata e define as condições de direito e de fato que regularão essa relação jurídica futura.
Outro conceito que merece especial atenção é o formulado por Celso Antônio Bandeira de Mello (2005, p. 493), que diz:
Licitação – em suma síntese – é um certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa entre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas. Estriba-se na idéia de competição, a ser travada isonomicamente entre os que preencham os atributos e aptidões necessários ao bom cumprimento das obrigações que se propõem assumir.
Após o conceito, onde se observa que a licitação é um procedimento que visa selecionar a melhor proposta para a Administração, e antes de adentrar ao estudo dos princípios, cabe observar o desenvolvimento deste instituto no Brasil.
3.2 BREVE HISTÓRICO
A licitação surgiu no Direito Público brasileiro há cerca de cento e quarenta e cinco anos, introduzida no positivismo normativo da Administração Central pelo Decreto nº 2.926, de 14.05.1862, que regulamentava as arrematações dos serviços a cargo do então Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Mais tarde, a Lei Orçamentária nº 2.221, de 30.12.1909, em seu art. 54, fixou as regras a serem observadas no processo de concorrências, e as Leis nº 3.232, de 5.01.1917, em seu art. 94; 3.454, de 06.01.1918, em seu art. 170, e 3.991, de 05.01.1920, em seu art. 73 e no decreto nº 4.555, de 10.08.1922, também se ocuparam deste assunto (PEREIRA JÚNIOR, 2003).
Após isso, o procedimento concorrencial foi regido pelo Código da Contabilidade Pública da União (Decreto Federal nº 4.536, de 28 de janeiro de 1922), que explicitou em seu minucioso Regulamento-Geral, Decreto Federal nº 15.783, de 08 de dezembro de 1922, diploma que teve vigência por cerca de meio século até ser substituído pelo Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, que implantou, no Brasil, pela primeira vez, a Reforma Administrativa Federal, mais tarde adotada pelos Estados e Municípios em razão da extensão que lhe deu o Ato Institucional nº 8/69.
Embora sendo estabelecida para o plano federal, o Decreto-lei nº 200 equiparou-se a verdadeiro Código ou, nas palavras de Cretella Jr. (1993, p. 01), a uma “Constituição, em matéria administrativa”, estabelecendo parâmetros ou normas gerais que os governos locais deveriam seguir. Observou-se que, no Brasil, a União nunca havia legislado privativamente sobre matéria Administrativa, limitando-se sua competência à matéria de Direito Civil, processo civil, penal, processo penal e trabalhista.
No capítulo das licitações, nome que substituiu a expressão anterior concorrência pública, o Decreto-lei nº 200, em seus vinte dispositivos, do art. 125 ao 144, apresentou relevantes inovações, aludindo à compra, venda e a serviços na Administração direta e autárquica, que somente poderia ser objeto de contratação após prévio certame ou procedimento licitatório. Definiu ainda expressões Administração Direta e Administração Indireta, conceituou e deu natureza jurídica à empresa pública e à sociedade de economia mista.
De acordo com J. Cretella Jr. (1993), as normas dos arts. 125 a 144 foram adotadas no Estado de São Paulo (Lei nº 89/72), com fundamento no Ato Institucional nº 8/69, que atribuiu competência para a realização de reformas administrativas no âmbito dos Estados, Municípios e Distrito Federal.
Em 20 de junho de 1969, passou a vigorar a Lei Federal nº 5.456, que dispunha sobre a aplicação aos Estados e Municípios das normas referentes às licitações, constantes dos arts. 125 a 144, do Decreto-lei nº 200/67, a pretexto de que tais normas seriam pertinentes ao Direito Financeiro, valendo como normas gerais, de competência da União, mas devendo ser observadas pelos Estados e Municípios.
Com o advento da EC nº 1/69, legitimou-se tal orientação ao outorgar competência à União para legislar sobre licitação, já que se tratava de questão patrimonial.
O Decreto-lei nº 2.300, de 21 de novembro de 1986, alterado pelos Decretos-leis nºs 2.348, de 24 de julho de 1987, e 2.360, de 16 de setembro de 1987, completou o diploma básico. Passou-se então a falar em obras, serviços, compras, alienações, locações e fornecimentos.
Assim, historicamente, observa-se a seguinte seqüência no Direito brasileiro: a) o Código de Contabilidade Pública da União e seu Regulamento, de 1922; b) O Decreto-lei nº 200/67, alterado pelo Decreto-lei nº 900/69; c) o Decreto-lei nº 2.300/86, alterado pelo Decreto-lei nº 2.348/87 e pelo Decreto-lei nº 2.360/87, todos referentes ao procedimento concorrencial ou procedimento licitatório.
Em maio de 1993, o Projeto de Lei nº 59, transformou-se na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, aprovada pela Câmara Federal e enviada ao Presidente da República para sanção (e eventuais vetos), sendo atualmente a norma nacional de licitações pública e contratos administrativos, complementada pela Lei nº 10.520/2002, que dispõe sobre o pregão.
3.3 PRINCÍPIOS DA LICITAÇÃO
Os princípios específicos que regem o procedimento licitatório encontram-se estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.666/1993.
Esses princípios devem conduzir a atuação dos administradores durante todo o curso do certame, sob pena de tornar-se nulo o ato praticado sem a sua observância. Contudo, não há falar-se que somente os princípios ali estabelecidos serão observados pelo Administrador. Ora, ao realizar um certame, o Administrador necessita observar toda a conjuntura que cerca a Administração Pública.
Cabe aqui analisar cada um dos princípios contidos na lei geral de licitações para, após isso, analisar detidamente o princípio da eficiência aplicado às licitações públicas.
3.3.1 Princípio da legalidade
O princípio da legalidade tem aplicação distinta para o particular e para a Administração Pública. Para aquele, implica: o que não é legalmente proibido é legalmente permitido. Por sua vez, para a Administração, inverte-se a assertiva: o que não é legalmente permitido é legalmente proibido.
É sob este último enfoque que deve se dar aplicação ao princípio da legalidade no âmbito das licitações públicas. Se não há previsão para a prática de um determinado ato, em dada circunstância, esse não poderá ser praticado.
Assim, como o procedimento licitatório é atividade administrativa formal e vinculada (que tem seu procedimento integralmente previsto em lei), toda e qualquer ação do administrador deverá ater-se aos estritos limites prescritos na norma, não havendo espaço para quaisquer inovações.
3.3.2 Princípio da impessoalidade
Princípio da impessoalidade reza que o administrador deve sempre tratar indistintamente a todos os licitantes, independentemente de características pessoais legalmente irrelevantes, não se deixando levar por considerações subjetivas de predileção ou repúdio.
Esse princípio impede que favoritismos beneficiem determinados licitantes ou afastem outros injustificadamente, em função da vontade pessoal e subjetiva do julgador.
Por isso, a impessoalidade deve conduzir a elaboração do ato convocatório, o qual não poderá ser dirigido a determinado licitante predestinado a ser o vencedor da disputa. Deve, também, embasar todos os julgamentos proferidos, para que não sejam rigorosos demais com alguns licitantes e flexíveis para com outros.
3.3.3 Princípio da moralidade
A conduta do administrador, ainda quando não esteja integralmente delineada na lei, deve sempre se pautar na observância dos valores jurídicos básicos, bem como na ética e na moral arraigadas na sociedade. Por isso, mesmo que aparentemente seja legal uma determinada conduta, ou seja, mesmo que se observe formalmente o preceito da lei, se for contrária à moral, será passível de anulação.
3.3.4 Isonomia
Comentado como uma das características do princípio da eficiência, o princípio da Isonomia é um dos basilares do Estado Democrático de Direito, e indispensável no desenvolvimento das licitações públicas.
Com efeito, a igualdade goza de status constitucional no ordenamento jurídico pátrio (art. 5º, da CF/88).
Segundo esse princípio, devem ser tratados de maneira uniforme todos os que se encontram em situação semelhante, podendo haver tratamento distinto quando houver diferença juridicamente justificável para tal.
Assim, para que a Administração imponha um critério de discriminação, deverá observar a relevância e pertinência deste critério, em face do objetivo direto que a norma visa alcançar.
3.3.5 Princípio da publicidade
O princípio da publicidade visa garantir a todos os interessados a possibilidade de conhecerem, participarem e acompanharem o desenvolvimento da licitação, bem como permitir a toda a sociedade fiscalizar os atos praticados no processamento dos certames.
Nos termos do art. 3º, § 3º, da Lei nº 8.666/1993, “a licitação não será sigilosa, sendo públicos e acessíveis ao público os atos de seu procedimento, salvo quanto ao conteúdo das propostas, até a respectiva abertura”. Assim, qualquer interessado, e não só os licitantes, tem direito de conhecer o conteúdo do processo licitatório, bem como obter cópias autenticadas do mesmo, mediante pagamento do valor despendido com a sua reprodução.
3.3.6 Princípio da probidade administrativa
Tal princípio é intimamente ligado aos da legalidade e moralidade e assevera que, no trato da coisa pública, o administrador deve portar-se de forma íntegra, visando sempre ao atendimento do interesse público. A probidade administrativa impõe que na gestão dos interesses da Administração, além de observar a adequação do ato a ser praticado aos comandos da lei, e a sua consonância com a moralidade, deverá o agente público atuar com honestidade, objetivando o melhor desempenho da atividade administrativa em detrimento do seu eventual interesse pessoal.
3.3.7 Princípio da vinculação ao instrumento convocatório
O princípio da vinculação ao instrumento convocatório impõe que o administrador, na condução do procedimento licitatório, observe as regras estatuídas no respectivo edital, ou convite. Ou seja, uma vez estabelecidas as regras do jogo, todo o processo a elas restará vinculado.
Ora, é fundamental que as autoridades administrativas respeitem as regras por eles mesmos fixadas no instrumento convocatório, não podendo estabelecer, no curso de uma licitação, novas normas e critérios não previstos inicialmente que possam desestabilizar a segurança jurídica dada aos licitantes com a publicação do ato convocatório.
3.3.8 Princípio do julgamento objetivo
Esse princípio estabelece que no julgamento da habilitação e das propostas devem ser considerados somente os parâmetros objetivamente indicados no edital, não se admitindo a adoção de critérios subjetivos que possam dar margem à escolha arbitrária de proposta vencedora. Assim, o administrador não pode afastar-se das regras estabelecidas no ato convocatório e realizar julgamento baseado no seu entendimento pessoal, sob pena de nulidade da decisão proferida.
Dessa forma, nas deliberações da comissão de licitação não podem ser utilizados elementos, critérios ou fatores sigilosos, secretos, subjetivos ou reservados, capazes de surpreender o licitante. Afinal, conforme o entendimento da mais autorizada doutrina, a única surpresa que o licitante deve ter no processamento da licitação é o preço das propostas dos seus concorrentes.
3.4 PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA NAS LICITAÇÕES PÚBLICAS
Após estudo sobre os princípios previstos expressamente na Lei nº 8.666/1993, cabe então observar o princípio da eficiência e a sua aplicação direta nas licitações públicas – objeto deste estudo.
A eficiência é uma idéia implícita à própria licitação, uma vez que cabe à Administração Pública realizar não uma contratação boa, mas a melhor contratação possível. Ora, isso não seria outra coisa que não o princípio da eficiência aplicado às licitações públicas.
Marçal Justem Filho (2004, p. 48-49) é claro ao expor a finalidade da licitação pública:
A licitação destina-se a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública (com observância do princípio da isonomia) A vantagem se caracteriza em face da adequação e satisfação ao interesse público por via da execução do contrato. A maior vantagem possível configura-se pela conjugação de dois aspectos complementares. Um dos ângulos relaciona-se com a prestação a ser executada por parte da Administração; o outro se vincula à prestação a cargo do particular. A maior vantagem apresenta-se quando a Administração assumi o dever de realizar a prestação menos onerosa e o particular se obrigar a realizar a melhor e mais completa prestação. Configura-se, portanto, uma relação custo-benefício. A maior vantagem corresponde à situação de menor custo e maior benefício para a Administração.
Sendo o administrador um gestor de recursos públicos, ele não pode realizar experiências com estas verbas, aventurando-se em contratos que, ou possam trazer benefícios, ou possam trazer prejuízos ao erário. Ele deve optar sempre pela melhor proposta para a consecução do interesse público.
Para Edith Mesquita Hupsel e Leyla Bianca Correia Lima da Costa (2006, p. 42) o princípio da eficiência aplicado às licitações públicas é visto como:
O princípio da eficiência, também norteador das atividades da Administração Pública, e inserido pela EC nº 19/1998, dentre os princípios elencados no caput do art. 37 da CF/88, vem trazer maior reforço à tendência atual do formalismo moderado, hoje bastante defendido como suporte para a convalidação de atos administrativos e para o aproveitamento de propostas com irregularidades irrelevantes.
Considera-se a necessidade de eficiência nos processos licitatórios, não se justifica a repetição de atos que possam ser sanados ou o afastamento de proponentes, em razão de pequenos equívocos formais nas propostas, que não cheguem a macular o seu conteúdo, como, por exemplo, a mera falta de rubrica em página da proposta. Assim, em situações nas quais não se venha a afrontar o princípio da legalidade, o aproveitamento de atos já praticados ou de propostas, se impõe.
É importante registrar que o princípio da eficiência não foi elencado no art. 3º da Lei Federal nº 8.666/1993, porque somente foi introduzido como princípio constitucional explicito, no caput do art.; 37 da Lei Maior a partir de 4 de junho de 1998, pela EC nº 19.
Decerto, observa-se que as autoras encaram a aplicação do princípio em comento ao instituto das licitações como uma maneira de sobrepor os interesses finais da Administração pública ao excesso de formalismo que foi implementado e cultivado durante anos nos certames. Como exemplo pode-se citar que, em licitações ocorridas no procedimento tradicional desenvolvido no Brasil, é comum observar o licitante com a proposta de preço mais vantajoso ser desclassificado por trocar um item, contudo a correção do mesmo na mesa onde se realiza o certame ou, dando-se prazo mínimo para que o licitante retifique o equívoco, uma vez que não caberia aí qualquer dilação, possibilitaria ao concorrente ajustar sua proposta e apresentá-la de forma satisfatória. Nesse particular, cabe conferir a benesse trazida pelo § 5º do art. 78 da Lei baiana de licitações (Lei Estadual nº 9.433/2005) que faculta à comissão ou autoridade superior, em qualquer das fases da licitação, promover diligência a esclarecer ou completar a instrução do processo.
Merecem destaque as lições de Carlos Pinto Coelho Mota, citado por Uadi Lammêgo Bullos (2000, p. 566), para quem:
um equívoco comportamento punitivo, por parte de dirigentes públicos e membros de Comissão de Licitação, que destaca miúdos erros na formulação de propostas ou na tramitação processual. Nessa perspectiva meramente formalista, a habitual saraivada de reclamações, impugnações e recursos protelatórios – promovida por licitantes avessos à competição legítima, ou insatisfeitos com resultados – logra, freqüentemente, pleno êxito em seus desígnios de atrasar ou anular os procedimentos que lhe tenham sido adversos. Acredito que a concepção da eficiência administrativa se situe em campo mais objetivo, não comportando atos ou decisões que privilegiem a mera correção dos procedimentos, em detrimento de resultados. Não raro, deparar-se o jurista com o ato administrativo que anula sumariamente certame longo, oneroso, respaldado em lei. Dentro de certa mentalidade corrente em nossas Administração, tal ato é reputado legítimo desde que se tenha registrado, nos meandros do processo, qualquer ínfima discrepância relativa à interpretação mais literal da norma. È usual sobrepor-se o inessêncial e o contingente, com prejuízo da economicidade e da eficácia na contratação.
Outro importante aspecto da presença do princípio da eficiência nas licitações é também a economia que sua aplicação poderá trazer a Administração. Ao comentar a economicidade o professor Marçal Justen Filho (2004, p. 60) esclarece que não bastam honestidade e boas intenções para validação de atos administrativos. A economicidade impõe a adoção de solução mais conveniente e eficiente sob o ponto de vista da gestão dos recursos públicos. Toda atividade administrativa envolve uma relação sujeitável a enfoque de custo-benefício. O desenvolvimento da atividade implica produção de custo em diversos níveis. Assim, há custos relacionados ao tempo, à mão-de-obra, etc.
Após conceituar o instituto da licitação, determinar o seu perfil constitucional e analisar seus princípios e, principalmente, analisar o dever de eficiência nas licitações públicas, cabe agora o estudo do procedimento para entender, na prática, a sua aplicação e como ocorre a aplicação da inversão de fases.