4 ESCOLHA DO PERFIL DO ADOTADO
O século passado foi classificado por muitos como consolidação de uma concepção da criança e do adolescente enquanto sujeitos políticos e sujeitos de direitos, que se solidificou com as inovações do Estatuto da Criança e do Adolescente, firmando importantes princípios de proteção integral também relacionados à adoção.
O ECA, em relação à regulamentação da adoção, possui um caráter social e visa proteger e criança e o adolescente para assegurar-lhes os direitos fundamentais presentes na Constituição Federal, referentes à pessoa humana, à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, disposições fortalecidas com a criação da Lei 12.010/2009, Lei Nacional de Adoções, que incorpora mecanismos e estabelece regras capazes de fortalecer o processo de adoção.
O Cadastro Nacional de Adoção (CNA) foi um dispositivos adotados pela Lei 12.010/2009 com o fim social de instituir o respeito à isonomia ou igualdade durante o processo, no intuito de disciplinar a adoção evitando que interesses alheios pudessem influenciar direitamente quanto à escolha de uma pessoa cadastrada em detrimento da outra, além de prevenir de práticas ilícitas, como a compra de crianças e a corrupção de servidores públicos atuantes na área, garantindo assim a proteção integral das crianças e adolescentes durante o processo de adoção (BITENCOURT, 2010).
Para os adotantes, de forma geral o cadastro serve de parâmetro avaliativo quanto aos aspectos socioeconômicos que deverão ser levados em consideração para uma possível confirmação de interesse por parte de quem quer adotar.
Justamente nesta parte, para alguns autores, é que a adoção sofre alguns entraves, pois no Brasil ainda existe em relação ao instituto uma visão “clássica”, ou seja, a adoção busca apenas atender os anseios dos casais inférteis e o desejo de descendência, ao contrário da “adoção moderna”, cujo objetivo é garantir o direito a toda criança de crescer e ser educada em uma família (WEBER, 2010, p. 21).
Corrobora Rizzardo (2009, p. 829-830):
Está ínsito na índole humana ou nasce com a própria natureza do homem a tendência de se perpetuar através dos filhos, o que representa um modo de afastar aparentemente a ideia da própria finitude do tempo. Nesta ideia inata em todas as pessoas, a incapacidade ou impossibilidade de gerar é substituída, pelo menos em parte, através da adoção, que reflete uma forma de realização do próprio indivíduo.
Ao buscar realização através da adoção, o pretendente ao preencher o cadastro visualiza um perfil que mais se aproxima biologicamente, ou fisicamente ao deles, acreditando ser esta a solução para “moldar” os futuros adotantes.
Os formulários realizam um verdadeiro “pente fino” em relação aos adotados, recolhendo dos adotantes informações quanto ao número de crianças que desejam adotar, se desejam adotar irmãos, a faixa etária da criança, cor, raça, sexo, estado de saúde, deficiência física ou mental.
A escolha de um perfil adequado desconstrói a evolução do processo de adoção, pois o número de crianças que não se encaixam neste perfil é infinitamente maior dos que se encontram para serem adotados, pois a maioria dos pretendentes tem um perfil da criança desejada e geralmente preferem meninas, brancas, com até dois anos e sem moléstia e irmãos e poucos se enquadram nesse perfil (CNJ, 2012).
Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça, do total de 44.840 pretendentes cadastrados, 6.994 somente aceitam crianças da raça branca e 365 somente aceitam crianças da raça negra; 5.425 pretendentes aceitam crianças com até 1 anos de idade, 6.846 aceitam crianças com até 2 anos de idade, 8.375 aceitam crianças com até 3 anos de idade, 6.716 aceitam crianças com até 4 anos de idade, 6.668 aceitam crianças com até 5 anos de idade 4.350 aceitam crianças com até 6 anos de idade
Este fato resulta em um crescimento considerável no número de pessoas que estão querendo adotar, quanto ao tempo relativo aos processos de adoção, e automaticamente o número de crianças disponibilizadas para serem adotadas não param de crescer.
No entendimento de Orseli (2011), ao oferecer a oportunidade ao adotante para escolher o perfil da criança a ser adotada buscando características específicas, o foco deixa de ser o interesse do menor em contraposição com a realização pessoal do adulto, revelando assim uma verdadeira possibilidade de preconceito e segregação quando a expectativa da busca por determinado perfil não é atendida.
Entende-se que a possibilidade de escolha quanto ao perfil do adotado permite uma discriminação relação tanto à etnia, ao genro e à idade, além de aflorar a antiga discriminação que sempre permeou os filhos adotivos e biológicos, que mesmo com o advento da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, a ideia de filiação de segunda categoria por inexistência de laços de sangue ainda persiste em alguns núcleos familiares (WEBER, 2010).
A seleção de características específicas do adotado vai contra a dignidade humana, além de prejudicar o trâmite da adoção, que consequentemente vai refletir de maneira negativa na vida da criança e do adolescente que serão mantidos abrigados por mais tempo, fato que impede a aplicação do art. 227 da Constituição Federal que assegura o direito à convivência familiar. (ORSELLI, 2011).
Neste sentido, a escolha do perfil do adotado vai de encontro os interesses da criança e adolescente preconizados pelo E.C.A., pois ao permitir uma escolha caracteriza pelas características físicas e mentais, retira da criança toda a possibilidade se crescer e se desenvolver em um ambiente favorável, fator intrínseco à dignidade da pessoa humana.
No entendimento de Dias (2017) todas as pessoas têm um filho idealizado, portanto para que não ocorresse a questão da escolha, que tanto prejudica as crianças em estado de adoção, essas pessoas que querem adotar, tinham que ter livre acesso às instituições em que as crianças estão, pois apesar de idealizar um conceito físico de filho, ao visitar uma instituição, pode ser que se apaixone por uma criança maior, com problemas de saúde ou portadora de deficiência física, de outra cor, e, para isso, as pessoas têm que ter a chance de conhecê-las.
No entendimento da autora as crianças precisam ter a oportunidade de cativar quem está à procura de um filho, e isso só pode acontecer se as pessoas tiverem acesso aos abrigos, o que faria da adoção um ato baseado na afetividade, valorizando assim todos os aspectos de proteção integral preconizados pelo ordenamento jurídico.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos positivados pela Constituição e que serviram de base párea a construção do Estatuto da Criança e do Adolescente, reconheceu este grupo específico como sujeito de direito, dotados de dignidade e aptos a receberem proteção integral.
Destes direitos, decorreram princípios responsáveis por nortear ações que direcionam as crianças e adolescentes a um estado digno de desenvolvimento, sendo amparados em caso de abandono e encaminhados á uma convivência familiar através da adoção.
Através deste instituto, consolidado e regulamentado pelo Estatuto, é possível inserir a criança em um ambiente familiar apropriado, para que ela possa desenvolver toda a sua formação humana com a devida proteção legal.
Apesar de todo avanço da legislação para tornar a adoção efetiva, uma lacuna é visível e está relacionada a escolha do perfil do adotado, fato que constitui uma afronta aos princípios protetores, pois evidencia exclusivamente o desejo do postulante, em detrimento ao interesse maior da criança.
Os dados colhidos na pesquisa demonstram que a escolha do perfil da criança a ser adotada provoca uma barreira comprometedora ás crianças mais velhas, dificulta a adoção inter-racial, e praticamente exclui a adoção de criança com moléstia e a adoção de irmãos.
Em suma, cabe uma reflexão para ser desenvolvida em futuras pesquisas, se uma mudança na lei em relação à possibilidade de escolha do perfil do adotado seria a solução, ou se, um trabalho de conscientização e sensibilização não seria suficiente para que a sociedade vislumbrasse a importância da adoção sob o ponto de vista do maior interesse da criança, valorizando assim a lei que há anos pretende cumprir o papel de proteger integralmente os infanto-juvenis.
“É o coração que sente a Deus e não a razão...” (La. 424 e Br. 278).
REFERÊNCIAS
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