O acesso de todos ao ensino público militar

24/12/2018 às 15:08
Leia nesta página:

O Colégio da Polícia Militar Percy Geraldo Bolsonaro, nome dado em homenagem ao pai do presidente eleito Jair Bolsonaro, inaugurado há uma semana em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, não poderá oferecer vagas apenas para filhos e dependentes de PMs e bombeiros, conforme prevê convênio assinado entre a Prefeitura caxiense e o governo do estado. É o que diz decisão do juiz federal Márcio Santoro Rocha, titular da 1ª Vara Federal de Duque de Caxias. “O equipamento municipal deverá ser destinado a quem é seu dono por direito, ou seja, o povo de Duque de Caxias”, diz trecho da decisão que determina ampla concorrência para as vagas da unidade. Caso a decisão seja descumprida, será cobrada uma multa de R$ 10 mil por dia. No último dia 17, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) e o Ministério Público Federal (MPF) ingressaram com ação civil pública questionando, entre outros pontos, o fato de o colégio estar sendo financiado com recursos municipais, mesmo pertencendo ao governo estadual.

A decisão judicial, em atendimento a pedido liminar emanado do Parquet, leva em conta os princípios republicano, democrático por si só, da isonomia, que se inserem no Estado Democrático de Direito.

O acesso à educação, em condições igualitárias, nas palavras do Ministro Celso de Mello, proferidas em sede doutrinária, "é uma das formas de realização concreta do ideal democrático, como se lê em “Constituição Federal anotada, 1986, pág. 533”.

A Constituição Federal em norma programática assim salientou:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais.

Determinar que apenas filhos de militares ali tenham ingresso é forma de privilégio e não de direito.

Ademais o acesso à educação constitui direito fundamental que deve ser assegurado com absoluta prioridade (exegese dos arts. 6º, 7º, XXV, 205, 208, IV,e  227, da Constituição Federal).

Lembra-se que a Constituição Federal estatui ser o serviço militar obrigatório nos termos da lei (art. 143, caput). Não se trata de mera faculdade, porquanto servir à Pátria é primordial e imposto a todos, salvo expressas exceções. Portanto, da mesma forma o deve ser a oferta para o ingresso ao Colégio Militar, sem acepção de pessoas, assim como labuta a Carta Magna quanto ao serviço militar obrigatório.

A isso se some o argumento de que a expressa distinção e predileção à determinada classe de estudantes, valendo-se de recursos provenientes da Secretaria de Segurança Pública e, portanto, do erário estadual, afronta o princípio da isonomia e do acesso universal à educação e fomenta a discriminação.

 Dito isso, volto-me às lições de Luís Roberto Barroso e Aline Rezende Peres Osório (“Sabe com quem estou falando?”) ao dizer:

“A igualdade constitui um direito fundamental e integra o conteúdo essencial da ideia de democracia. Da dignidade humana resulta que todas as pessoas são fins em si mesmas , possuem o mesmo valor e merecem, por essa razão, igual respeito e consideração . A igualdade veda a hierarquização dos indivíduos e as desequiparações infundadas, mas impõe a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais, bem como o respeito à diferença. Em torno de sua maior ou menor centralidade nos arranjos institucionais, bem como no papel do Estado na sua promoção, dividiram-se as principais ideologias e correntes políticas dos últimos séculos. No mundo contemporâneo, a igualdade se expressa particularmente em três dimensões: a igualdade formal, que funciona como proteção contra a existência de privilégios e tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem estar social; e a igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e sua diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras.

A Constituição brasileira de 1988 contempla essas três dimensões da igualdade. A igualdade formal vem prevista no art. 5º, caput: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Já a igualdade como redistribuição decorre de objetivos da República, como “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3o , I) e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3o , III). Por fim, a igualdade como reconhecimento tem seu lastro em outros dos objetivos fundamentais do país: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3o , IV).”

Disseram ainda Luís Roberto Barroso e Aline Peres Osório (obra citada):

“A igualdade formal é a do Estado liberal, cuja origem foi a reação aos privilégios da nobreza e do clero. Na sua formulação contemporânea, ela se projeta em dois âmbitos diversos. Em primeiro lugar, na proposição tradicional da igualdade perante a lei, comando dirigido ao aplicador da lei – judicial e administrativo –, que deverá aplicar as normas em vigor de maneira impessoal e uniforme a todos aqueles que se encontrem sob sua incidência. Em segundo lugar, no domínio da igualdade na lei, comando dirigido ao legislador, que não deve instituir discriminações ou tratamentos diferenciados baseados em fundamento que não seja razoável ou que não vise a um fim legítimo. Esta é uma página virada na maior parte dos países desenvolvidos, mas ainda existem problemas não resolvidos entre nós. É certo que a maior parte das dificuldades nessa área têm mais a ver com comportamentos sociais do que com prescrições normativas. O Brasil é um país no qual relações pessoais, conexões políticas ou hierarquizações informais ainda permitem, aqui e ali, contornar a lei, pela “pessoalização”, pelo “jeitinho” ou pelo “sabe com quem está falando”. Trata-se de uma disfunção decrescente, mas ainda encontrável com certa frequência. Paralelamente a isso, as estatísticas registram que os casos de violência policial injustificada têm nos mais pobres a clientela natural. Sem mencionar que certos direitos que prevalecem no “asfalto” nem sempre valem no “morro”, como a inviolabilidade do domicílio e a presunção de inocência.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Raízes históricas de conteúdo patrimonialista e corporativa contribuíram de forma clara para tudo isso que hoje o Brasil vive.

E o saldo continua: desemprego, falta de educação, deficiência de atendimento de saúde pública e ainda falta de segurança.

Ainda lecionando sobre a igualdade formal, bem lembrou o Ministro Luís Roberto Barroso e ainda Aline Perez Osório (obra citada):

“A igualdade formal é um ponto obrigatório de passagem na construção de uma sociedade democrática e justa. Porém, notadamente em países com níveis importantes de desigualdade socioeconômica e exclusão social, como é o caso do Brasil, ela é necessária, mas insuficiente. A linguagem universal da lei formal nem sempre é sensível aos desequilíbrios verificáveis na realidade material. Tomem-se dois exemplos históricos. O princípio da igualdade está presente nas constituições brasileiras desde a Constituição Imperial de 1824. Sob sua vigência, porém, o país conviveu, sem que se assinalassem perplexidade ou constrangimento, com o voto censitário, os privilégios aristocráticos e o regime escravocrata. Já a Constituição de 1891, a segunda constituição do país, editada após a proclamação da república, aboliu a necessidade de comprovação de renda para votar. No entanto, como o sufrágio não era estendido aos analfabetos, que correspondiam à esmagadora maioria da população, na prática, o voto permanecia censitário. A igualdade de todos perante a lei convivia perfeitamente com a exclusão dos pobres, dos negros e das mulheres da vida social. A miopia da igualdade formal é perfeitamente captada pela irônica observação do escritor francês Anatole France, em passagem frequentemente lembrada: “A majestosa igualdade da lei, que proíbe ricos e pobres de dormirem sob pontes, de mendigarem pelas ruas e de furtarem pão”.

Fala-se na igualdade material: mas ela exige tanto redistribuição de renda quanto reconhecimento. Mas nenhum dos dois elementos, por si só, não é suficiente

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos