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O problema da cientificidade do Direito Comparado diante de uma noção de ciência baseada em valores.

O estudo comparatista como discurso ético-político

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07/08/2005 às 00:00
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4. O direito comparado a serviço da recepção legislativa: uma abordagem necessariamente interdisciplinar

            Os estudos comparativos de direito têm relevante importância no quadro político globalizado que parece estar em voga na sociedade mundial contemporânea. A necessidade crescente de soluções jurídicas uniformizadas mundialmente ante as semelhanças dos problemas sociais em todo o mundo, bem como a internacionalização do crime, o combate à corrupção e ao terrorismo, e, ainda, a tendência de universalização dos direitos humanos, colocam o direito comparado em posição privilegiada entre estudos jurídico-políticos contemporâneos.

            Isso leva à afirmação de que o direito comparado não pode ser estudado sem a consideração sobre sua principal função, a de servir ao que se convencionou chamar de recepção legislativa.

            É que o direito comparado, dependendo da forma de abordagem utilizada, poderá ser útil a muitas atividades. "O direito comparado pode ser uma disciplina mais teórica quando atua no campo da Filosofia do Direito, ou da História do Direito, ou quando é utilizado para o melhor entendimento entre os povos e maior interpenetração internacional(...)". [37]

            As funções do direito comparado podem ser divididas em dois campos: o campo dos "objetivos pessoais", donde se está a visar tão somente objetivos de satisfação pessoal do estudioso; e, de outro lado, tem-se o que se pode denominar de "direito comparado aplicado" em contraposição ao que seria um "direito comparado descritivo". [38]

            Essa distinção serve para demonstrar a utilidade pragmática de qualquer estudo. Numa linha de pensamento pragmatista, é de se concluir que não há uma diferença ontológica entre conhecer coisas e usá-las. [39] Isto pode muito bem ser aplicado ao direito comparado, cujo estudo, mesmo sendo considerado meramente descritivo, terá um papel informativo que efetivamente servirá como instrumento num discurso político ou sociológico.

            Há também aqueles que destacam uma espécie de "direito comparado profissional", com um aspecto mais técnico e que serve ao profissional de advocacia ou autoridades envolvidas com direito internacional privado, enquanto questões culturais seriam próprias de uma análise de "direito comparado humano", sendo um trabalho "análogo al trabajo realizado por historiadores, filólogos, literatos e filósofos". [40]

            Assim, esse segundo campo de raciocínio se refere ao estudo comparatista quando utilizado "no rumo da política legislativa com objetivo de melhoria do direito nacional" e "quando se põe como auxiliar do direito internacional privado, ajudando-o na eleição da norma aplicável". [41]

            Em verdade, impossível será negar-se que uma das características do mundo contemporâneo é a difusão de soluções jurídicas cada vez mais aproximadas pelos diversos Estados, ao mesmo tempo em que vale insistir na inviabilidade de que seja possível transportar-se um instituto jurídico de uma sociedade para outra, sem se levar em conta os condicionamentos a que estão sujeitos todos os institutos jurídicos. [42]

            Eis aí o campo de atuação da tão importante, mas, pouco discutida, recepção legislativa, que significa nada mais que a utilização, por determinado país, de institutos jurídicos presentes em outros países [43], o que seria impossível de ser feito sem um estudo de direito comparado.

            Não se pode, assim, ver o sistema jurídico como algo estático em relação aos demais sistemas do mundo. Muitas necessidades, ainda mais quanto a sistema ocidentais, são semelhantes e demandam soluções jurídicas semelhantes. Aí é que se tem em consideração um sistema jurídico dinâmico, capaz de receber influências externas. [44]

            Também não se pode negar que os sistemas jurídicos detêm raros institutos próprios do seu país, especialmente quanto aos países latino americanos ou aqueles colonizados, que importam soluções jurídicas mais do que exportam. [45]

            É que só num estudo comparatista seriam analisadas questões sobre a viabilidade da utilização do instituto exterior em um determinado país. A transposição simples e imediata de textos normativos de um sistema jurídico para outro é, senão um absurdo, uma incoerência que pode levar à total ineficácia dos preceitos transportados sem uma prévia análise comparatista minimamente abrangente. Destarte, para a recepção legislativa, deve-se analisar necessariamente a que sistema de direito pertence o instituto a ser transplantado, bem como a forma com que tal instituto é interpretado pelos tribunais de seu país de origem, e, ainda, como a sociedade e as autoridades se comportam diante da aplicação de tal instituto.

            Todo esse estudo envolve sérias análises de direito comparado, tanto a microcomparação (na análise do instituto em si) quanto a macrocomparação (na análise do tipo de sistema a que pertence o instituto estudado). E não se pode deixar de discutir a natureza dessa análise comparatista, no que tange à cientificidade buscada incessantemente pelos doutrinadores.

            Isto porque a recepção legislativa exige não uma mera cópia de institutos jurídicos, mas uma adaptação feita com base em uma análise crítica, "que saberá escoimar o produto importado daquilo que não é adaptável às condições estranhas ao meio próprio e originário". [46]

            Aqui aparece a importante questão sobre a teoria do direito comparado e que diz respeito ao problema de sua eventual "autonomia científica". Muitos autores defendem um direito comparado "autônomo", como uma disciplina com objeto, método e finalidades próprias. [47]

            Este "isolamento", no entanto, não pode ser visto de forma absoluta. O estudo comparativo não pode ser pensado como algo independente de perspectivas políticas e sociais. Como visto acima, qualquer ciência tem de lidar com elementos valorativos e, com o direito comparado não poderia ser diferente.

            As tentativas para alçá-lo à categoria de ciência não podem ter a pretensão de isolá-lo dos fatores políticos, sociais, econômicos e, enfim, valorativos que lhes dizem respeito. Ao comparar um sistema jurídico com outro, noções como justiça, bem estar, dignidade, igualdade, etc., vão estar sempre presentes, ainda mais numa comparação em direito constitucional.

            Destarte, se "autonomia" estiver relacionada com um mero enfoque jurídico-dogmático das instituições em análise, em nada tal estudo será útil a uma aplicação para a recepção legislativa. A autonomia buscada somente pode se referir a uma questão didática, como forma de sistematização acadêmica, nunca como isolamento da problemática jurídica em relação às questões sociológicas, éticas e políticas.

            Qualquer estudo comparativo necessita de uma completa análise sociológica e política das sociedades sob análise quanto aos institutos jurídicos pesquisados. Essa interdisciplinaridade que envolve o direito comparado atesta que sua "autonomia" deve ser encarada com muito cuidado, sob pena de o estudo comparativo não abranger os verdadeiros problemas que a recepção legislativa tem de enfrentar.

            O direito comparado deve lidar não só com a legislação e sua interpretação pelos tribunais. Deve também se ater às práticas sociais, confirmadoras ou não da interpretação dos textos pelos tribunais e o sentido adquirido pelos textos legais na prática social. "O investigador comparatista, realizando sua obra com o material legislativo apenas, fecha seus horizontes(...)". [48]

            Essa interdisciplinaridade é destacada inclusive por Caio Mário:

            Também ao comparatista a história fornecerá subsídio indispensável a um trabalho proveitoso, principalmente se se levar em conta que ela salientará com mais nitidez os pontos de aproximação dos sistemas de origem comum, e fará ressaltar as diferenças dos que provém de troncos ancestrais diversos. [49]

            Sem o subsídio dos saberes sociais o direito comparado nada tem a oferecer à recepção legislativa, que necessita de uma análise crítica, zetética, interdisciplinar, sob pena de não ser útil à transposição de institutos jurídicos entre sistemas de direito diferentes.

            A interdisciplinaridade também está presente na afirmação de que a recepção nem sempre ocorre apenas entre ordenamentos jurídicos. "Ao contrário, embora por vezes sejam transferidas apenas normas ou conjunto de normas, é bastante comum a adoção de mentalidades, ideologias ou, mesmo, formas de ensino jurídico proveniente de outros povos". [50]

            Mesmo sabendo-se que os sistemas jurídicos possuem características comuns que permitem a recepção legislativa, deve-se destacar que "não é possível transportar-se um instituto jurídico de uma sociedade para outra sem se levar em conta os condicionamentos a que estão sujeitos todos os modelos jurídicos". [51]

            É mesmo uma questão de eficácia social. Se a transposição do instituto se dá de forma "literal", a sociedade que o recepciona, diante de suas diferenças para com a sociedade que exporta o instituto, certamente o rejeitará total ou parcialmente. A recepção deve se dar, realmente com uma aclimatação, no sentido de que o instituto deve ser adaptado à nova realidade constitucional e social.

            Logicamente isso só será feito através de pesquisas em direito comparado, envolvendo questões sociológicas e políticas sobre a viabilidade da recepção do instituto específico. Ainda mais na recepção constitucional, onde deve haver um estudo comparativo extremamente abrangente e posto em debate amplo, posto que mudanças constitucionais implicam a alteração substancial no direito e na estrutura político social.

            E os conceitos presentes na constituição implicam sempre em uma discussão ética. É impossível ao comparatista jurídico fugir das questões valorativas. Por isso a recepção legislativa exige cuidadoso estudo dos fatores que determinam a transposição de um determinado instituto para outro sistema jurídico. Fatores políticos, culturais e sócio-econômicos devem ser sempre levados em consideração, o que demonstra a necessidade de estudos comparativos multidisciplinares.

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5. As conclusões dos estudos comparatistas como discurso político-valorativo: uma visão mais democrática do direito comparado

            O problema da cientificidade do direito comparado não pode ser visto sob o prisma de um conceito de ciência que leve em consideração uma postura objetiva do conhecimento ou a desvinculação do saber científico dos valores. Portanto, não pretende esse trabalho responder à indagação de se o direito comparado é ou não uma ciência.

            Por um lado, seria muito simples utilizar um conceito de ciência sem questionar as discussões filosóficas implementadas desde Kuhn sobre os problemas valorativos e suas influências no saber dito científico. Por outro lado, o objetivo dessa pesquisa é o de apresentar o direito comparado como um saber valorativo, sem cair na tentação de qualificá-lo ou não como ciência.

            E, como visto, na medida em que essa cientificidade se identifica com neutralidade ou objetividade de conhecimento – o que levaria à noção de certeza – não se poderia considerar o saber jurídico (ou qualquer outro saber) como científico, nem tampouco o saber jurídico comparatista, ainda mais quando a comparação será utilizada para a aplicação pelo legislador, ente político por natureza.

            Ora, se assim o é, o estudo comparativo não pode ser visto como uma pesquisa neutra e objetiva, que simplesmente "demonstra" as semelhanças e diferenças entre dois ou mais institutos jurídicos. Notadamente quando o direito comparado serve à recepção legislativa, onde suas conclusões são eminentemente interpretativas, e, portanto, valorativas.

            Como se viu acima, não há como se imaginar o estudioso comparatista numa redoma de vidro imune aos seus próprios interesses e condicionamentos históricos e sociais. Seu discurso é político e, como tal deve ser considerado. A legitimidade de suas conclusões não será medida pela "correspondência com a realidade" daquilo que se está a pesquisar.

            Se disputas internas quanto à interpretação do direito já envolvem controvérsias intermináveis, imagine-se a comparação de dois ou mais sistemas jurídicos. Aqui, se interpreta comparando, o que envolve – mais ainda do que num trabalho de dogmática jurídica comum – digressões sobre sociologia e política como forma de se explicar as semelhanças e diferenças entre os institutos pesquisados.

            Ao se afirmar que o direito comparado é ciência, no sentido de que produz um saber "certo", ou mesmo seguro, não se está levando em conta o já mencionado círculo hermenêutico, que impede um conhecimento simplesmente objetivo. Também se deixa de levar em consideração que o próprio conceito de ciência, desde Kuhn, já admite uma noção valorativa, mesmo nas chamadas ciências sociais.

            A tentativa de dar ao direito comparado um caráter "científico", entendendo-se como científico um saber certo e dotado de objetividade, pode comprometer um importante valor da sociedade contemporânea que é a democracia. O discurso de que o estudo comparatista é um estudo neutro e objetivo, desvinculado de juízos de valor é um discurso autoritário, antidemocrático. Afinal, que tipo de inquérito será utilizado para aferir a "certeza" ou a "verdade" de um estudo comparatista para a recepção de um instituto constitucional em um determinado país?

            A deliberação política é quem vai definir – entre dois estudos comparatistas sobre o mesmo caso – qual deles é o que trará mais benesses à sociedade receptora. Jamais qualquer espécie de critério objetivo poderia ser utilizado para a escolha entre duas teorias comparatistas.

            Isto porque um estudo comparatista de direito não pode se ater a meros aspectos legais em comparação do tipo: "enquanto no Brasil a pena é de X anos, na Alemanha a pena é de Y anos". Esse tipo de estudo não é direito comparado, trata-se tão somente de comparação de legislação ou legislação comparada. [52]

            Num estudo deste tipo realmente é complicado demonstrar a existência de valorações. Todavia, uma tal análise seria completamente desprovida de utilidade, ou, ao menos, seria pouco útil. (aqui já se percebe a presença de um termo valorativo como utilidade da teoria).

            Já o estudo comparativo envolve nuances bem mais complexas. A comparação trará à baila noções sobre direitos fundamentais e divergências culturais entre os povos cujos sistemas jurídicos estão sendo analisados. Os conteúdos valorativos estarão sempre presentes na análise jurídico-comparatista. [53]

            Se uma postura dogmática, no sentido de não discussão de critérios valorativos já é discutível mesmo em trabalhos do operador do direito, diante do que já se falou acima sobre a interpretação diante do círculo hermenêutico, imagine-se em uma pesquisa que é eminentemente multidisciplinar e que envolve questões políticas e éticas. O aplicador do direito emite juízos de valor, tanto quanto o estudioso comparatista. [54]

            Tudo isso fica enaltecido quando o estudo comparatista visa à recepção legislativa. Isto porque a recepção legislativa não pode ser feita sem considerações sociológicas, políticas e valorativas sobre a viabilidade ou não da transposição de um instituto jurídico de um sistema a outro. Ao se fazer uma análise comparatista, o interesse político daquele que pesquisa ou daquele que analisará a pesquisa será determinante nas conclusões sobre as semelhanças buscadas para a aplicação de um determinado instituto em um outro sistema jurídico.

            É que "ao serem recepcionados, as instituições ou modelos terão de sofrer uma aclimatação ou aculturação a fim de que possam ter eficácia em seu novo habitat. Para tal, de suma importância será a consideração dos valores sociais expressos na Ideologia Constitucional de cada Estado". [55]

            No caso de recepção de institutos constitucionais a carga valorativa é ainda maior, tendo em vista a presença dos princípios constitucionais que condicionam qualquer estudo jurídico, mesmo comparatista. Esses princípios são nada mais que conceitos valorativos presentes em textos jurídico-dogmáticos, pelo que qualquer análise de direito comparado terá de enfrentá-los.

            Por essas razões é que o direito comparado pode ser visto como uma ciência, no sentido de que tem métodos próprios e algo definidos e possui uma espécie de paradigma ligado a noções da ciência jurídica. Todavia, deve ser visto como saber valorativo, jamais neutro ou objetivo. O que não quer dizer que seja um estudo relativista ou que qualquer tipo de conclusão seja "pessoal" ou de "gosto". Os valores não são meramente internos.

            A filosofia se vê hodiernamente, às voltas com o problema de, por um lado, admitir a valoração da ciência e, por outro, lidar com isto sem cair num relativismo absoluto. Nesse sentido, mesmo sabendo que os valores não podem ser redutíveis a noções físicas ou regras sintáticas bem definidas, ao invés de rejeitá-los, deve a humanidade lidar com eles num ambiente democrático e visualizá-los de forma pragmática, a já mencionada busca pela prosperidade humana. [56]

            Esta visão acaba por influenciar a cultura ocidental de forma a que "devemos ver os cientistas como ‘em contato com a realidade externa’ e, por conseqüência, capazes de alcançarem um acordo racional por meios não disponíveis para os políticos e os poetas". [57] Afirmar que o direito comparado é valorativo não acaba com a possibilidade de acordo e de decisões para os temas por ele tratados. Tão somente demonstra que referido acordo não será alcançado através de um critério neutro, objetivo, divino até, alertando para a propriedade de se ouvir o contrário e de se controlar o poder de dizer qual a solução que será implementada.

            Assim, ao se pensar no direito comparado como um discurso político (não neutro), ter-se-á maior cuidado na apreciação de suas conclusões, permitindo-se, inclusive maior tolerância a opiniões contrárias, o que favorece uma visão democrática, notadamente quanto à recepção legislativa, forma de utilização do direito comparado que mais atinge a sociedade e o direito de um Estado.

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Sobre o autor
Adrualdo de Lima Catão

Mestre e doutorando em Filosofia e Teoria do Direito pela UFPE, Especialista em Direito Processual pelo CESMAC/AL, Professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Alagoas - UFAL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CATÃO, Adrualdo Lima. O problema da cientificidade do Direito Comparado diante de uma noção de ciência baseada em valores.: O estudo comparatista como discurso ético-político. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 764, 7 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7120. Acesso em: 23 dez. 2024.

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