Impreciso, falso, errôneo: o “abra-te sésamo” jurídico.

O código de acesso ao Direito que o Direito não poderia ter

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18/01/2019 às 16:46
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EXCURSO SOBRE A FAMÍLIA PATRIARCAL. A denominada Família Patriarcal nasceu em tempos selvagens, brutais, cruéis... Em duas palavras, tempos incivilizados, (se deixou de sê-los). Sim, profundamente incivilizados. Obviamente atendendo aos acontecimentos biológicos universais e às exigências de sobrevivência, (Blaudel), e nasce tardiamente a de naturalis necessitas (São Tomás), e o que era um assentamento caótico de pessoas ligadas aos laços de sangue e amizade formaram os grupos de convivência que se tornaram clãs... O fato político que dominava à época era que para os “fortes”, ou seja, os de mais músculos, de mais força bruta, os mais bem preparados, os bons guerreiros (conhecidos pós sua coragem e crueldade) etc., -- os de evidente superioridade física, e os “poderosos”, quer dizer, os mais cruéis, os mais inescrupulosos, os mais assassinos, os mais belicosos etc., -- todos igualmente implacáveis, impunham a sua vontade e a lei. Evidente que, para estes, viver neste mundo era viver no “paraíso”, pois que a violência, a brutalidade e a crueldade faziam parte dos “prazeres da vida” (se algum dia deixou de fazer). E tal realidade, que perdurou, segundo o historiador Georges Duby, até os primórdios do crescimento europeus, nos séculos VII-VIII dC, é o que se evidencia hoje na “violência urbana”, e é a tendência (quem sabe por manifestação de um “inconsciente coletivo” junguiano) do “eterno retorno” da história que se constitui em “cultura” por força e graças de seus precedentes. Grupos de jovens guerreiros, (fazia parte da aprendizagem), passavam a vida na rapinagem, destruindo igrejas, atacando sítios isolados, incendiando casas, celeiros, colheitas, roubando o gado, atacando peregrinos, estuprando mulheres, matando ou escravizando varões, oprimindo viúvas e órfãos, apropriando-se dos bens etc. Sentiam prazer em matar, destruir e mutilar inocentes etc.. “Seus autores não eram bandidos”, observa Duby, e esclarece: “O prazer de matar e torturar eram grande e socialmente permitidos” (DUBY, 1978). O que significa que, até certo ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção, fazendo com que parecesse necessário e vantajoso comportar-se desta maneira. Era uma cultura de guerra e agressão, era como que um treinamento, uma cerimônia de chegada a “maioridade”... Se estes jovens fossem combatidos, feridos ou abatidos, vinha um grupo bem maior de guerreiros profissionais, extremamente sanguinários em busca de notícia e vingança. Eram as atitudes mentais de um mundo de guerra e agressão, e foi em reação a elas que nasceu a Família Patriarcal ...


A IMPORTÂNCIA DAS ATITUDES MENTAIS. E sabemos, observa com acuidade George Duby, que “as atitudes mentais são tão decisivas como os fatores de produção ou como de exercício do poder nos mais diversos níveis sociais” (DUBY, 1978). Então, em resposta, quais eram (ou poderiam ser) as atitudes mentais de todos os grupos de convivência (depois chamados de familiar) diante da brutalidade, das agressões e das injustiças do Mundo, e não só das estrangeiras? Com efeito, diante das atitudes mentais exigidas para a autodefesa, a sobrevivência, a proteção dos bens e da vida de todos os membros do grupo familiar tem a origem, a constituição e a organização, naqueles tempos incivilizados, da atualmente odiada Família Patriarcal... Qual foi o papel histórico da Família Patriarcal? Ora, uma boa orientação para um bom entendimento dos elos políticos que a dominava, de seu papel, de sua função, está na significação da própria palavra Família. Etimologicamente, há quem afirme que Família vem do latim Fames (“fome”), e quem afirme que deriva do termo Famulus (“servente”). Segundo o “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa”, de José Pedro Machado, a palavra Família entrou na nossa língua no século XVI, por via culta, através do latim Famulus , que significa “servo” ou “escravo”, e, que, portanto, família patriarcal significava “o conjunto dos escravos da casa, todas as pessoas ligadas a qualquer grande personalidade (denominada Pater , Pai), logo, a casa, a família”. O Pai, enquanto espírito motor era necessário, e necessariamente um servo de seu Senhor, o dono do feudo. Pater era o grande guerreiro, o comandante militar, um ser com os poderes místicos dos ancestrais. Ele era o herdeiro do poder, o abençoado pelos deuses, o pastor dos cultos domésticos, o guerreiro e o trabalhador leal ao seu protetor. E tornar-se-ia a lei. Sim, o pastor dita a Lei que recebe de “espíritos ancestrais”. Tinha por tarefa e missão não apenas proteger seu rebanho das intempéries e defendê-lo contra os animais e homens ferozes, cuidar continuamente de sua saúde, de sua sobrevivência, mas antes de tudo prover sua alimentação, cuidar do culto familiar e defender o lar e os aliados... O Patriarcado, portanto, seria uma denominação que indicaria que a invenção da Família deu-se em um contexto que exigia, necessariamente, “o poder”, “a posse”, “a organização”, e a “obediência” por concessão de um Senhor e Protetor, tanto na sociedade Grega quanto na Romana, malgrado as diferenças etc. A questão da posse e a questão da obediência estão, portanto, intrinsecamente vinculadas à origem de constituição de uma “entidade familiar”, mas não a do Poder e da Organização, que vinha do Senhor feudal. Assim, de um lado, a posse e a obediência, e de outro lado, o poder e a organização, eis o duplo que constituiu a consolidação dos interesses e da dinâmica história. Com efeito, a posse e a obediência constituirão em essência para a concessão de ideia e realização da propriedade privada, (e da vida civil), e o poder e organização a ideia e realização do Estado (e da vida pública). Assim, o Senhor tornando-se Soberano, desenvolve-se a ideia da res pública, e dela a ideia de res privada, pois que o afeto é, por natureza, passional, e tem sua origem no deslocamento (catexe) das energias psíquicas ligadas aos significantes do significante da posse e da obediência, (e apenas por isso apresenta-se como passional e independente da Coisa, ou seja, afasta-se do significante), portanto, quem fala em asfixia do “livre trânsito do afeto ao dar prevalência e exclusividade aos vínculos patrimoniais” (Madaleno), não sabe o que está falando, pois é justamente o que lhe dá oxigênio e fôlego, e na verdade está defendendo apenas uma formação de poder, que só pode e só deve atuar sobre a família líquida, e que impõe a tarefa de desconstrução da família historicamente consistente da propriedade privada como meio e instrumento de produção. O que o senhor Madaleno não sabe, ou está ignorando, (um verdadeiro luxo de Príncipe), é que, segundo os historiadores, a afetividade desenvolve-se apenas a partir do século XVIII. Afinal, que história está em curso no denominado Direito das Famílias ?... Mas não importa, Foucault tem razão quando observou que toda formação de poder tem necessidade de um saber do qual, no entanto, não depende, mas que ele próprio, o poder, não teria eficácia sem ele...


A DIALÉTICA IGNORADA DA POSSE E DA OBEDIÊNCIA. O que importa é que a gênese da noção de posse e de obediência traduz-se ainda na invenção do poder a que se dobra (Deleuze), portanto, da noção dialética de posse e de obediência a questão do mando emerge, e, nele, a mulher deve obediência ao marido como seu amo e senhor fosse, e os filhos pertencem a seus pais, a quem deviam a vida... Mas que mulher? Que filhos? O casamento, a monogamia, a parentalidade etc., inclusive, os vínculos patrimoniais, diria quem era a mulher, a criança, o escravo etc., que estavam incluídos nas articulações dialéticas da ideia do senhor e do escravo, na ideia de posse e de obediência em seu inteiro teor enquanto significante de significantes? Bobagens! Eram apenas questões objetivas, com respostas naturais na ideia das naturalis necessitas ou necessária vitae... A esta ascendência de um homem, -- a genitor, líder, guerreiro, trabalhador, chefe do culto ancestral, servo de Deus e pastor dos homens, -- a quem cabe a responsabilidade de reger e zelar pela vida de casa, realizar o culto e conduzir a guerra, deu-se o nome de Patriarca. Não foi ao patriarca, mas ao senhor feudal, que coube reinar e governar, ou seja, organizar, corrigir, dirigir, calcular, guiar, simular, dissimular, ou seja, grande parte do trabalho civilizador... Mas foi graças ao trabalho, a ação determinada e localizada do Patriarca, e às vezes ingrata (por exigir dureza e implacabilidade), em todos os grupos comunitários, a barbárie foi gradativamente domada pela lei do Pai, a religião da família... Mas a Família Patriarcal não sobreviveu, durou pouco por não atender (à medida que os números dos combatentes cresciam assintoticamente) as necessidades organizacionais de uma guerra em larga escala que garantisse maiores possibilidades de sobrevivência de seus membros e a preservação de sua propriedade, uniu-se a uma “cidade”, a uma “província unificada”, a um “império” etc. E assim, apesar da grandeza inestimável de sua presença e de seu papel histórico na gênese do Processo Civilizatório , deixou de existir, tão ingloriamente quanto os dinossauros... O desenvolvimento histórico do Mundo a levou a unir-se a uma “multidão” e ser absorvida, e perder-se. Algo maior se manifestava: “a cidade ”, “o Reino ”. Mesmo porque, na pena de Michel Senellart, em “As Artes de Governar”,

“o conjunto das necessária vitae a que a multidão aspira só pode ser obtido pela mais ampla diversificação das competências e a maior união de forças. Somente o espaço fechado da cidade ou do reino permite realizar esse equilíbrio entre divisão funcional e solidariedade orgânica” (SENELLART, 2006, p.181).

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Com efeito, quem melhor expressou o processo evolutivo que a dispensou da história, de forma concisa e direta, sem dúvida, foi São Tomas, ao explicar o dimensionamento das mudanças radicais que se operaram a partir do século XII, diz: “o laço social da multidão [será] tanto mais perfeito quanto melhor ela prover por si mesma, as necessidades da vida” (Apud, SENELLART, 2006, p.180). Por conseguinte, diz são Tomás:

“uma única família, numa única casa, proverá bem certas necessidades vitais, como, por exemplo, as que se relacionam aos atos naturais da nutrição, da geração e das outras funções desse gênero; num único burgo, prover-se-á o que diz respeito a uma corporação de ofício; mas numa cidade, que é a comunidade perfeita, prover-se-ão todas as coisas necessárias à vida; e mais ainda numa província, unificada por causa da necessidade do combate em comum e do socorro natural contra os inimigos”. (apud, SENELLART, 2006, p.180).

Onde os doutrinadores de um “Direito das Famílias” imaginam existir a força do patriarcado que chega ao século XXI?


OS FATORES DE PRODUÇÃO E O EXERCÍCIO DO PODER. No mais, é preciso (e não é difícil) entender que “os fatores de produção e o exercício do poder são determinantes da estrutura emocional como um todo” (DUBY, 1978). Evidentemente que (com o estabelecimento dos Lombardos no Norte da Itália e a descida dos Bascos até a Aquitânia, nos séculos VII-VIII), a era das grandes migrações dos povos chegou ao fim, e com ela, a cultura que trazia embutida em seus movimentos. Mas, como herança da incivilização a cultura nascida das grandes migrações populacionais era uma cultura ainda de guerra e agressão, não era uma cultura da Família Patriarcal . Era um Mundo caótico e grande, não o Mundo pequeno e organizado do patriarcado... Era um Mundo em que os mais fortes impunham sua força e vontade contra o mais fraco e o dominava, não o mundo protetor do patriarca... Viver era um perigo constante, principalmente para a família. E assim, ainda no século XVII, como testemunha Thomás Hobbes, “o homem era o lobo do homem” -- “homo homini lúpus ”--. Despojar e oferecer eram as duas ações complementares que fora da família (mas a condicionando), dominavam em larga escala a troca de bens, a feitura das leis, o ordenamento jurídico (tem sido atualmente diferente?)... Mas graça a família patriarcal, havia uma intensa circulação de ofertas, e ofertas de retribuição, de dádivas cerimoniais e santificadas, que percorriam toda a estrutura da rede social, e mantinha a barbárie sob controle (mesmo que às vezes precariamente). Mas não a extinguiu, não a eliminou. A barbárie apenas ficou como observa Norbert Elias, em “O Processo Civilizatório”:

“confinada e domada por inumeráveis regras e proibições que se transformam em autolimitações. Foi tão transformada “refinada”, “civilizada”, como todas as outras formas de prazer, e sua violência imediata e descontrolada aparecem apenas em sonhos ou em explosões isoladas que explicamos como patológicas” (ELIAS, 1994).

E mais adiante, observa e explica Elias com agudeza:

“A liberação das emoções em batalha durante a Idade Média não era, talvez, tão desinibida como no período anterior das Grandes Migrações. Mas era bastante fraca e desinibida, em comparação com a medida dos tempos modernos. Neste último, a crueldade e a alegria com a destruição e o tormento de outrem, tal como prova a superioridade física, foram colocados sob controle social cada vez mais forte, amparado na organização estatal. Todas essas formas de prazer, limitadas por ameaças de desagravo, gradualmente vieram a se expressar apenas indiretamente, em uma forma “refinada”” (ELIAS, 1994).

Portanto, dizer, como disse Rolf Madaleno, que a “família do passado não tinha preocupação alguma com o afeto e a felicidade das pessoas que formavam seu núcleo de convivência, pois seus interesses de ordem econômica estavam centrados unicamente no modelo de um pai e uma mãe e filhos financeiramente dependentes”, é pura e simples ignorância histórica, desconhecimento absoluto da genealogia da afetividade, uma confusão epistemológica tão grande que é difícil acreditar que um advogado, especialista em Direito de Família possa advogar tais besteiras... E o que é mais preocupante, ele não está sozinho, e pelo que vejo formam um novo exército de bárbaros que visualizam o poder... É preocupante! Não gostam do que eu digo? Paciência! É a verdade! Que culpa eu tenho se a verdade, às vezes, como observou alguém, “pode ser triste”...

Sobre a autora
Walter Aguiar Valadão

Professor universitário. Bacharel em História (UFES). Pós-Graduado "lato sensu" em Direito Público (UFES). Mestre em Direito Internacional pela UDE (Montevidéu, Uruguai). Editor dos Cadernos de Direito Processual do PPGD/UFES.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O que trago aqui é uma síntese conclusiva dos dez artigos publicados em Jus Navegandi que se interpenetram dialeticamente e se depuram internamente, mantendo um diálogo radical com as aporias legais, quebrando-as como se fossem cascas de amendoim, pois que o que interessava eram as nutritivas sementes que elas continham, que dizem, tem propriedades afrodisíacas que estimulam e revelam a perversidade corruptora do caráter nacional.

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