A vinculação jurídica de receitas consiste na previsão legal ou constitucional de que determinadas receitas orçamentárias, ou um percentual delas, sejam investidas em áreas eleitas como prioritárias. As mais conhecidas vinculações de receitas foram concebidas para garantir investimentos mínimos em saúde e em educação. Sabe-se, por exemplo, que os Municípios devem aplicar, obrigatoriamente, no mínimo, 25% da receita líquida de impostos em educação e 15% da mesma base, em saúde, conforme previsto no art. 212 da CF e no art. 7º da LC n. 141/2012, respectivamente.
Não é incomum que a receita de determinados tributos seja vinculada a finalidades específicas. Quanto aos impostos, como regra, a CRFB veda a vinculação de receita, muito embora existam inúmeras exceções retiradas do próprio Texto Constitucional:
Art. 167. São vedados:
IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo.
Se, por um lado, a receita vinculada é instrumento de garantia de recursos à execução do planejamento e à prestação de serviços públicos prioritários, por outro lado, o aumento da vinculação leva a um quadro de maior rigidez na programação orçamentária e dificuldades para remanejamento de créditos e gestão administrativa. Nessa toada, a doutrina destaca:
[...] a exigência de que as receitas não sofram vinculações, antes de qualquer coisa, é uma imposição de bom-senso, pois qualquer administrador prefere dispor de recursos sem comprometimento algum, para atender às despesas conforme as necessidades. Recursos excessivamente vinculados são sinônimos de dificuldades, pois podem significar sobra em programas de menor importância e falta em outros de maior prioridade. (GIACOMONI, James. Orçamento público. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 80)
Sobre o problema da vinculação de receitas orçamentária faz-se o alerta:
[...] não se pode olvidar que a vinculação, por ser prévia, universal e indiscriminada, provoca distorções na alocação de recursos, comprometendo sobremaneira a otimização do retorno da despesa pública. É inegável que as amarras da vinculação de recursos orçamentários, desafiando o princípio constitucional da não-vinculação da receita de impostos, compromete as importantes funções do orçamento – política, econômica e reguladora –, agride o pacto federativo, limita a prática do orçamento participativo, restringindo a participação do povo na definição dos destinos dos recursos públicos, e, o que é mais grave, vicia de tal forma o sistema orçamentário que restringe a mais importante das atribuições do orçamento público: operar como instrumento de planejamento. (FURTADO, José de Ribamar Caldas. Revista do TCU, jan./abr. 2008, p. 72)
A desvinculação de receitas é a medida diametralmente oposta à vinculação e foi concebida como válvula de escape à crescente vinculação imposta pela ordem constitucional de 1988. Ao ser criada em 1994, a medida buscava devolver parte da flexibilidade orçamentária que os gestores públicos possuíam no passado e abrangia apenas a União, na conhecida DRU (Desvinculação das Receitas da União).
O quadro abaixo ilustra o tratamento constitucional da matéria:
DENOMINAÇÃO |
NORMA |
VIGÊNCIA |
Fundo Social de Estabilização |
EC de Revisão n. 1/1994 |
1994 e 1995 |
EC n. 10/1996 |
1996 e 1997 (1º sem.) |
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Fundo de Estabilização Fiscal |
EC n. 17/1997 |
1997 (2º sem.) a 1999 |
EC n. 27/2000 |
2000 a 2003 |
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Desvinculação de Receitas da União |
EC n. 42/2003 |
2003 a 2007 |
EC n. 56/2007 |
2008 a 2011 |
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EC n. 68/2011 |
2011 a 2015 |
Fonte: SUZART, Janilson Antônio da Silva. Rev. Adm. Pública — Rio de Janeiro 49(4):869-887, jul./ago. 2015, p. 871-872.
A desvinculação de receitas pode ser assim conceituada:
A desvinculação de receitas da União (DRU) compreende um conjunto de dispositivos que foram implementados por sucessivas emendas constitucionais, cujo objetivo é ampliar a flexibilidade orçamentária, ao anular o efeito das vinculações estabelecidas pelos legisladores constituintes, em especial, em relação aos impostos e contribuições. A principal finalidade da DRU é ampliar o volume de recursos livres para que os gestores públicos possam direcionar os gastos públicos. (SUZART, Janilson Antônio da Silva. Rev. Adm. Pública — Rio de Janeiro 49(4):869-887, jul./ago. 2015, p. 871-872)
Do site do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, extrai-se a seguinte justificativa:
A DRU [Desvinculação de Receitas da União] é um mecanismo que permite que parte das receitas de impostos e contribuições não seja obrigatoriamente destinada a determinado órgão, fundo ou despesa. A desvinculação de receitas tornou-se necessária para enfrentar o problema do elevado grau de vinculações de receitas no Orçamento Geral da União. Tais vinculações implicam em rigidez na alocação de recursos públicos, que tem sido apontada como um sério problema de gestão governamental, já que prejudica tanto a execução das políticas públicas quanto o uso dos instrumentos de política fiscal. (Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/servicos/faq/orcamento-da-uniao/conceitos-sobre-orcamento/o-que-e-desvinculacao-de-receita-da-uniao-dru)
Kyioshi Harada critica a desvinculação de receitas orçamentárias e alerta para o descontrole que a medida pode gerar:
Para quem conhece noções elementares de direito financeiro, mais precisamente do direito orçamentário, é difícil de compreender as manifestações favoráveis dos políticos em geral, com o apoio até de economistas e da mídia, em torno da Desvinculação de Receitas da União, conhecida pela sigla DRU. Na verdade, a DRU é um funesto instrumento de mexer, remexer e desmontar o orçamento anual aprovado pelo Parlamento, permitindo gastos sem fiscalização e controle, gastos esses, quase sempre, bem distantes dos interesses públicos, pelo menos daqueles encampados pela vontade soberana do povo que são exatamente os revelados pelo exame da Lei Orçamentária Anual – LOA. (HARADA, Kiyoshi. Estranho discurso em torno da DRU. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4841, 2 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49987)
A crítica parece ser endossada por outros doutrinadores, como Harrison Leite:
A desvinculação da receita da União, ou DRU, como ficou conhecida, surgiu em 1994, quando da implementação do Plano Real, e foi sucessivamente prorrogada pela necessidade de flexibilização dos recursos públicos para o atendimento de despesas não alcançadas na finalidade de criação dos tributos que as sustentam. Esses ingressos basicamente custeiam o pagamento da dívida pública e financiam outras despesas, ao passo que retira recursos vinculados a áreas importantes como saúde, educação e assistência social.
[...] Nessa senda, por meio de normas transitórias o governo cria comandos definitivos, na contramão do conteúdo comum às normas desse jaez. E é mais do que pacífico afirmar que normas de elevada carga de intertemporalidade não se prestam a funcionar como normas de caráter definitivo ou como normas de igual peso com as do corpo permanente da Constituição. Agindo assim, considerável parte da receita vinculada no corpo permanente da Constituição Federal foi desvinculada pelo ADCT, numa verdadeira desarmonização sistêmica, a ensejar diversas anomalias às finanças públicas. (LEITE, Harrison. Manual de direito financeiro. 5 ed. Salvador: JusPodium, 2016, p. 152)
Após ter sido prorrogada sucessivas vezes, a previsão atual conferida pela EC n. 93/2016 calhou de estender a desvinculação a todos os entes federativos, conforme consta nos artigos 76 (União), 76-A (Estados e Distrito Federal) e 76-B (Municípios) do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
No que tange à União, reza o dispositivo:
Art. 76. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% (trinta por cento) da arrecadação da União relativa às contribuições sociais, sem prejuízo do pagamento das despesas do Regime Geral da Previdência Social, às contribuições de intervenção no domínio econômico e às taxas, já instituídas ou que vierem a ser criadas até a referida data. (Incluído pela EC n. 93/2016)
Já a previsão relativa aos Municípios dispõe:
Art. 76-B. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% (trinta por cento) das receitas dos Municípios relativas a impostos, taxas e multas, já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes. (Incluído pela EC n. 93/2016)
No âmbito municipal, a desvinculação abrange receitas relativas a impostos, taxas e multas, bem como outras receitas correntes. O próprio Tribunal de Contas de Santa Catarina também entende que a DRM não contempla a desvinculação de receitas de tarifas, conforme se depreende da leitura da Nota Técnica da Diretoria de Controle dos Municípios:
Ressalta-se que as tarifas, contribuições e transferências não são alcançadas pela Emenda Constitucional 93/2016.
Desta forma, podem ser objeto de desvinculação as receitas registradas nas rubricas abaixo, conforme o ementário da receita publicado no endereço http://www.stn.fazenda.gov.br/web/stn/mcasp.
a) 1110 – Impostos;
b) 1120 – Taxas;
c) 1900 – Outras Receitas Correntes; observadas as exceções previstas expressamente no parágrafo único do artigo 76-B da CF.
Disponível em: http://www.tce.sc.gov.br/sites/default/files/NOTA_TECNICA_DMU_DRM-EC_93_2016_0.pdf
A “desvinculação de receitas municipais” (DRM) é, portanto, criação recente, tendo sido instituída pela EC n. 93/2016, que também estendeu a benesse aos Estados (art. 76-A do ADCT). Trata-se de indisfarçável vitória dos Estados e dos Municípios que, diante da crise econômica vivenciada a partir de 2014 e da redução de receitas que ela acarretou, passaram a buscar alternativas para fazer face às suas crescentes despesas de custeio.