Comumente temos assistido no meio jurídico decisões inéditas na aplicação do Direito Penal sem haver modificação do texto legal. Situações concretas que tradicionalmente não eram apanhadas pelo tipo legal incriminador (considerados fatos atípicos) na aplicação do direito pelos tribunais, conforme novo entendimento, passam a subsumir-se no tipo legal (como fatos típicos).
Nesses casos, consequência prática, é que com a decisão condenatória o réu passa ao status de condenado diante da nova interpretação do Direito, como um fato inédito diante dos julgados anteriores, que consideravam o fato atípico, ou quando muito crime menor, em categoria diversa da nova e mais gravosa que passou ser adotada no julgamento.
Tal caso se deu, por exemplo, com o julgamento do Agravo em Recurso Especial 686.965-DF, ocorrido em 1.º de outubro de 2015, pela 6.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, quando então a injúria racial deixou de ser crime contra a honra (prescritível) e passou a ser considerado crime de racismo, e portanto, imprescritível (CF, art. 5.º, XLII), tipos penais distintos que tutelam bens jurídicos totalmente diversos.
No caso dos autos, se fosse crime contra honra estaria consumada a prescrição da pretensão punitiva quando do julgamento do Recurso de Agravo. Contudo, com o novo entendimento jurisprudencial (de crime de racismo) houve, portanto, um alargamento do "jus puniendi" pela via jurisprudencial, agora crime imprescritível.
Ora, não resta dúvida que a prática do racismo é ignominiosa por gerar a intolerância entre as pessoas e vulnerar a dignidade humana o que causa atraso ao país, quando a República Democrática é uma sociedade inclusiva (de todos), que abrange inclusive as minorias e os mais vulneráveis. Por essa razão existe mandado expresso de criminalização contra a prática do racismo (CF, art. 5.º, XLII). Porém, não se pode atribuir efeitos retroativos à sua incriminação ou alargamento do direito punitivo, tal como ocorreu sobre a extensão da imprescritibilidade à injúria racial, ainda que por mudança de orientação jurisprudencial (CF, art. 5.º, XL).
A questão debatida e que não foi analisada pelo v. acórdão citado (e de regra não enfrentadas pelos tribunais) são as modificações gravosas da jurisprudência frente ao princípio da irretroatividade das leis penais incriminadoras.
Dito de outra maneira, a questão é a de se saber se as modificações gravosas da jurisprudência em matéria penal se encaixam debaixo da proibição constitucional de se atribuir efeitos retroativos às leis penais incriminadoras (CF, art. 5.º, XL). Quanto ao problema das leis penais gravosas serem irretroativas isso não resta a menor dúvida (a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu). A dúvida persiste em se saber se as modificações gravosas da jurisprudência se submetem à proibição constitucional do art. 5.º XL da CF.
A doutrina brasileira é silente nessa questão. Contudo, tal fato não passou despercebido no Direito comparado.
Dentro dessa problemática, podemos colher o ensinamento de Stratenwerth ao dizer que a jurisprudência é fonte autônoma do Direito Penal, porque de acordo com a teoria da argumentação jurídica a subsunção da lei ao caso concreto não se dá apenas conforme as regras da lógica-formal, mas que requer a interpretação, e esta é sempre um processo criador do Direito[1].
Sobre o tema da irretroatividade das modificações gravosas da jurisprudência digladiam-se na doutrina e na jurisprudência duas correntes antagônicas, sintetizadas por Zulgaldía[2]:
a) as que negam efeitos retroativos afirmam que se tais modificações fossem retroativas lesionariam a garantia constitucional da segurança jurídica, que também é um direito fundamental reconhecido pela Constituição em diversas matérias como no cível, direitos adquiridos, segurança jurídica tributária, segurança processual, segurança no trabalho etc. Essa corrente ainda é minoritária na doutrina.
b) a corrente tradicional majoritária, que também é seguida aqui no Brasil, discorda da posição anterior, sob o argumento de que jurisprudência não é lei, porque as soluções contidas nos julgados não obrigam erga omnes, mas somente entre as partes no caso concreto decidido, e como tal carecem de força normativa própria fora do processo. E, assim: 1.º) embora uma nova jurisprudência tenha indubitavelmente um efeito similar ao de uma nova lei, porém disso não cabe deduzir que possuem uma função idêntica; 2.º) a jurisprudência não vincula da mesma maneira que a legislação, pois do contrário os tribunais praticamente teriam o poder de legislar (será que não têm? e o que dizer das súmulas vinculantes? e os casos julgados com repercussão geral?); e, 3.º) as modificações jurisprudenciais só importam numa correção na interpretação da lei já existente no momento da realização da conduta; a nova interpretação não é uma punição ou agravação “retroativa”, mas a realização de uma “vontade da lei” que já existia desde sempre, porém que somente agora tem sido corretamente reconhecida[3].
No seu resultado, a modificação gravosa da jurisprudência aproxima-se da analogia incriminadora, porque ao inovar no mundo jurídico fulmina o princípio da anterioridade da lei penal a comprometer a segurança jurídica nas relações jurídicas penais, isto porque em ambos os casos ao aplicar o Direito Penal, seja analogicamente ou por meio de uma redefinição interpretativa, o juiz atua forçosamente ex post facto não sendo a nova interpretação jurisprudencial dada nem conhecida, nem prevista pelo réu[4].
Em Direito Penal diz-se que se não houvesse a proibição da retroatividade das leis penais incriminadoras o princípio da anterioridade penal seria completamente burlado, porque através da edição de leis retroativas puniria-se condutas até então atípicas; portanto, para fins de legalidade penal e proteção do indivíduo frente ao Direito Penal não basta apenas a garantia da reserva legal (edição de tipos por lei ordinária), imperiosa é a proibição constitucional da irretroatividade (CF, art. 5.º, XL). A irretroatividade das leis penais trata-se, portanto, de uma importante conquista histórica da civilização ao longo dos séculos e de uma garantia para o cidadão nas suas relações com o poder estatal de coerção.
Atualmente reconhece-se que a irretroatividade das leis penais não alcança somente os tipos penais incriminadores inéditos (lei nova), mas também alcança qualquer alargamento do direito punitivo, inclusive em matéria processual (normas processuais-penais ou normas mistas), por exemplo, a que extingue um recurso, extingue a fiança, cria condições da punibilidade, transforma a ação penal de iniciativa privada em pública incondicionada etc.
Sobre esse aspecto, vale ainda consignar que de acordo com o neoconstitucionalismo o Direito Penal passou a incorporar elementos empíricos (fato) e valorativos como condicionante da dogmática jurídica penal. Com a teoria da argumentação jurídica a atividade de subsunção ao tipo deixou de ser atividade meramente mecânica ou robótica do julgador ditada exclusivamente por princípios de lógica formal da adequação típica ontológica do injusto, passando a incorporar as valorações e os princípios do crime como uma realidade complexa. Nesse contexto, os tribunais que dizem o que é crime e o que não é; o exemplo citado destaca bem essa situação.
Dessa maneira, no exemplo apontado, no julgado pese o entendimento novo da imprescritibilidade da injúria racial, competia decretar-se a absolvição do réu para não se atribuir efeitos retroativos da ampliação do "jus puniendi" ao novo entendimento, com efetivo prejuízo à liberdade individual, e somente admitir a imprescritibilidade somente para novos casos cujas condutas dos agentes tenham sido praticadas após a publicação do acórdão novo. Caberia essa modulação em homenagem ao princípio constitucional da anterioridade da lei penal.
Nesse particular, o ordenamento jurídico espanhol no capítulo de aplicação das leis (art. 4.2, do Cód. Civil esp.) estabelece que: “As leis penais, as excepcionais e as temporárias não se aplicarão a casos, ‘nem em momentos distintos’ dos compreendidos expressamente nelas”.
Entre nós enquanto não vier uma solução legislativa ao problema, ou quem sabe decisão dos próprios tribunais superiores nesses sentido, serve o presente dispositivo citado, dado o seu caráter universal, como uma importante regra de hermenêutica jurídica para auxiliar o intérprete na aplicação das leis penais a fim de se evitar que se atribua efeitos retroativos a uma nova interpretação jurisprudencial mais gravosa. Do contrário, ao nosso ver, estaria violado o mandamento constitucional do art. 5.º XL da CF.
[1] STRATENWERTH, Günter, Derecho Penal, Parte General, I, tradução da 2 ed. alemã, Madrid: Edersa, 1982, p. 37.
[2] ZUGALDÍA ESPINAR, José Miguel, Fundamentos de Derecho Penal. 3 ed, Valencia: Tirant lo Blanch, 1993, pp. 324-326. Veja também, no mesmo sentir, BACIGALUPO, Enrique, Principios Constitucionales de Derecho Penal, Buenos Aires: Hammurabi, 1999, pp. 53-54.
[3] ROXIN, Claus, Derecho Penal, Parte General, tomo I, tradução da 2 ed. alemã, 5 ed. Madrid: Civitas, 2010, p. 165. Veja a respeito à crítica de Pontes de Miranda sobre o artifício de retórica da expressão “vontade da lei”: “Se a pesquisa do espírito, mens do legislador, constituía subjetivismo inconciliável com um método científico de fontes e interpretação das leis, não era menos justificável o animismo de uma vontade ou de um espírito da lei, com que os juristas descem ou se mantêm ao nível das crianças que atribuem vontade e pensamento às mesas e aos seus brinquedos” (Subjektivismus und Voluntarismus im Recht, s/d) in: Tratado de Direito de Família, vol. I, 3 ed. São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 10, nota de rodapé 1.
[4] Cf. LUZÓN CUESTA, José María, Compendio de Derecho Penal, Parte General, 16 ed. Madrid: Dykinson, 2005, p. 55.