O DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR IMPOSTO EM FACE DA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

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30/01/2019 às 00:42
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O presente artigo objetiva abordar os aspectos gerais dos deveres fundamentais e, em especial, a utilização do dever fundamental de pagar imposto como mecanismo de implementação dos direitos fundamentais.

O DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR IMPOSTO EM FACE DA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

 

Keila Morganna Gomes de Melo

Pós-Graduada em Direito Processual pelo Centro de Ensino Superior de Maceió – CESMAC e em Direito Administrativo pela Anhanguera Uniderp.

Procuradora da Fazenda Nacional

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Direitos fundamentais; 2. Deveres fundamentais; 2.1. Noções gerais e conceito; 2.2. Fundamento dos deveres fundamentais; 2.3. Regime constitucional dos deveres fundamentais; 3. Dever fundamental de pagar tributo – os custos dos direitos fundamentais; 4. Conclusão; Referências

 

RESUMO

 

O presente artigo objetiva abordar os aspectos gerais dos deveres fundamentais e, em especial, a utilização do dever fundamental de pagar imposto como mecanismo de implementação dos direitos fundamentais.

 

Palavras-chaves: Dever fundamental de pagar impostos – direitos fundamentais

 

ABSTRACT

 

This paper presents the general aspects of the fundamental duties and , in particular, the use of the fundamental duty to pay tax as the implementation framework of fundamental rights

 

Key-words: Fundamental duty to pay taxes – fundamental rights.

 

Introdução

 

Com o fim das Grandes Guerras, a sociedade se reorganizou com o propósito de se estabelecerem em regimes constitucionais democráticos, baseados no respeito e proteção dos direitos humanos (fundamentais).

No estado brasileiro, a redemocratização ocorreu na década de 80, sendo a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 o marco desse novo modelo estatal, baseado na dignidade da pessoa humano, que por sua vez é o núcleo dos direitos fundamentais.

No entanto, nesse processo de redemocratização, os deveres fundamentais não receberam a mesma atenção que os direitos, mas não se pode negar a importância dos mesmos.

Desta feita, o presente trabalho tem por objetivo discorrer acerca da relação entre os direitos e os deveres fundamentais, notadamente o dever fundamental de pagar imposto. No entanto não temos a intenção de esgotar o tema.

 

1. Direitos fundamentais

 

A concepção ocidental dos direitos e deveres humanos (fundamentais) está intimamente ligada à cultura grega, sendo que o ponto de partida é a figura do antropocentrismo, isto é, o homem como o centro de todo pensamento[1]. No entanto, cumpre lembrar que na Grécia antiga o conceito de povo, ou demos, era reservado para uma pequena parcela da população, sendo que apenas essa pequena parcela poderia gozar de direitos perante a polis. Os que estavam à margem do conceito de povo eram contemplados apenas com os deveres.

É importante não esquecer que os direitos e deveres humanos (fundamentais) não possuem um marco certo/definidor do seu nascimento. Na verdade, os mesmos foram sendo construídos ao longo da história da humanidade. No entanto, a doutrina indica que o primeiro diploma que consagrou os direitos humanos (fundamentais) foi a Magna Carta do rei João sem Terra, em 1215. Referido diploma garantiu direitos fundamentais (direito de liberdade de ir e vir, direito à propriedade privada enquanto direito individual entre outros) apenas para os cavaleiros e senhores feudais, ou seja, os homens livres da época. Mas, o termo “direitos fundamentais” só apareceu algum tempo depois, como assentado nos estudos de Geraldo Cunha e Renata Lima:

 

Na verdade, muitos momentos históricos foram relevantes no contexto da edificação dos direitos fundamentais. Entretanto, segundo Assagra, o termo ‘direitos fundamentais’ só veio a ser cunhado na França (droit fondamentaux), no ano de 1770, como marco do movimento político e cultural que resultou na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, fruto da revolução Francesa que libertou a França do jugo do poder absoluto (e divino) do rei. Segundo o citado autor, depois disto o termo alcançou especial relevância na Alemanha, sendo inserido na Constituição de Weimar, de 1919, figurando na parte que disciplina as relações entre Estado e indivíduo.[2]

 

Assim, em um primeiro momento a história destaca (final do século XVIII) a independência dos Estados Unidos (conhecida como revolução liberal americana) e a revolução Francesa como marcos da noção de direitos humanos (fundamentais)[3] tidos de primeira dimensão, isto é, os direitos individuais (civis) e políticos.

O final da I Guerra Mundial (século XIX) deu origem a doutrinas sociais, pois perceberam que de nada adiantaria liberdade se as pessoas não tivessem igualdade substancial. ”Aqui, sim, trata-se de igualdade material, associada aos direitos de forma isonômica, e não somente deixar ao crivo das liberdades individuais.”[4] Nasceram, assim, os direitos sociais que relacionam os indivíduos enquanto parte da sociedade – direitos humanos (fundamentais)  de segunda dimensão.

Por fim, depois da II Guerra Mundial (século XX), surgiram os direitos humanos (fundamentais) de terceira dimensão. O horror causado por essa guerra despertou o mundo para a necessidade de olhar o ser humano com compaixão, surgindo assim os direitos difusos (fraternidade ou solidariedade).

Cumpre anotar que:

[...] depois da Segunda Grande Guerra, com o novo constitucionalismo, foi que se passou a conceber a Constituição como lei fundamental composta de valores principiológicos vinculativos, surgindo, então, novas dimensões em relação aos direitos fundamentais, que passaram a ser chamadas de dimensões ou gerações dos direitos fundamentais.[5]

 

Cumpre informar que a doutrina moderna começa a falar em direitos humanos (fundamentais) de quarta e quinta dimensões. Contudo, referida doutrina ainda é iniciante e não será abordada no presente trabalho.

Outro ponto que merece observação é o fato de que a doutrina não é unânime em relação à similitude entre as expressões direitos fundamentais e direitos humanos. Parte da doutrina entende que os direitos humanos possuem caráter universal, atemporal e essencial ao ser humano. Tais direitos estão previstos em Declarações e cartas internacionais. Já os direitos fundamentais referem-se aos direitos essenciais positivados em uma dada ordem constitucional. Assim, esses direitos podem não coincidir com os direitos humanos.

A outra parte da doutrina compreende os direitos fundamentais como os direitos humanos que estão reconhecidos e positivados no ordenamento jurídico de um determinado Estado. Assim, todos os direitos fundamentais são direitos humanos reconhecidos como essenciais pela ordem constitucional[6].

Merece destaque a explanação encontrada no trabalho de Cunha e Lima que afirmam que:

 

[...] a expressão direitos fundamentais é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No que se refere ao aspecto ”fundamentais”, esses direitos abarcam situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realizaria, não conviveria e, quiçá, sobreviveria. Eles são fundamentais para o homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados; é a limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem[7]

 

A expressão “direitos fundamentais” foi utilizada pela primeira vez no ordenamento constitucional brasileiro na Constituição da República de 1946[8]. No entanto, foi com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 que os direitos fundamentais receberam o merecido tratamento.

A Constituição Brasileira de 1988 é, até o momento a que melhor acolhida faz aos Direitos Humanos em geral. Tanto em termos da quantidade e da qualidade dos direitos enumerados, como da concepção embutida no texto constitucional, a Carta de 1988 é inovadora.[9]

 

A Constituição da República de 1988 estabeleceu em seu Titulo II, em linhas gerais, os direitos e garantias fundamentais e os classificou em: a) direitos e deveres individuais e coletivos; b) direitos sociais; c) direitos de nacionalidade; d) direitos políticos. Afirmamos que os direitos fundamentais foram estabelecidos em linhas gerais nesse título pelo fato de que é perfeitamente possível encontrar outros dispositivos que cuidam de direitos e deveres fundamentais[10].

O rol de direitos fundamentais elencados no texto da Carta Magna não impede que os mesmos sejam ampliados por reformas constitucionais. No entanto, a própria Carta de 1988 estabeleceu que os mesmos não podem ser alvo de emendas tendentes a aboli-los, vez que os direitos e garantias fundamentais são “cláusula pétrea” (art. 60, §4º, IV).

Observa-se ainda que o §2º do art. 5º da Carta Constitucional do Brasil assegura que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Ou seja, o texto Constitucional reconhece a existência de direitos fundamentais implícitos.

O caput do art. 5º da Constituição de 1988 estabelece como titulares dos direitos humanos (fundamentais) todos os brasileiros e os estrangeiros residentes no país. No entanto, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu, com base em uma analise sistêmica da Carta Cidadã e do principio da universalidade (ínsito aos direitos humanos), que são titulares dos direitos e garantias fundamentais todos os que estão no território brasileiro, ainda que sem residência, sejam estrangeiros ou apátridas.

Outra característica importante dos direitos e garantias fundamentais é a sua aplicabilidade imediata, nos termos do §1º do art. 5º da Carta de 1988. Referida característica significa que as normas consagradoras de direitos fundamentais podem ser aplicadas imediatamente, sem necessidade de regulamentação para ganharem eficácia. Cumpre ressaltar que nem sempre isso ocorre de forma plena[11], no entanto, sempre produzem (o mínimo) de efeitos.

 

2. Deveres fundamentais    

2.1. Noções gerais e conceito

 

O conceito de dever recebeu, ao longo dos anos, influência da moral, especialmente da moral religiosa cristã, e da ética.

 

[...] Tem-se, então, certo momento histórico, uma proximidade muito grande entre o antijurídico e o pecado, ligação esta que, com o passar dos anos, em muitas sociedades, foi se tornando mais frágil até que foi desfeita, com a separação entre Estado e religião, e entre direito e moral.[12]

 

 

No mundo antigo, o ser humano era sujeito de direitos e ao mesmo tempo sujeito de deveres, mas esses conceitos intimamente ligados foram se separando, até que a noção do ser humano como detentor de deveres foi perdendo valor e o tema foi sendo esquecido pelos estudiosos e aplicadores do direito.

Não se pode olvidar que os horrores das Guerras Mundiais fizeram com que as sociedades, quando de suas reorganizações, se preocupassem com o reconhecimento e a concretização dos direitos fundamentais e relegassem os deveres, especialmente os deveres fundamentais, ao esquecimento. Assim, podemos dizer que esse esquecimento se deu como reflexo de um “passado dominado por deveres, ou melhor, por deveres sem direito”[13].

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Nos dizeres de José Casalta Nabais:

 

Na verdade, podemos afirmar que os deveres fundamentais constituem um assunto que não tem despertado grande entusiasmo na doutrina. Bem pelo contrario. Se tivermos em conta a doutrina européia do segundo pós-guerra, constatamos mesmo que tanto os deveres em geral como os deveres fundamentais em particular foram objeto de um pacto de silêncio, de um verdadeiro desprezo.

Um desprezo que é visível sobretudo quando confrontado com a atenção constitucional e dogmática que, quer em termos extensivos quer em termos intensivos, tem dispensado aos direitos fundamentais.[14]

 

 

A doutrina aponta, além da necessidade de proteção do cidadão frente ao Estado, outros possíveis motivos para o esquecimento dos deveres fundamentais: a) a tendência natural que o ser humano tem de cobrar direitos e a resistência em reconhecer deveres; b) o entendimento de que os deveres se identificam com os próprios direitos, sendo, pois o reflexo negativo da mesma realidade.

Contudo, essa visão dos direitos dissociada dos deveres não pode perdurar, pois, no modelo da atual sociedade não há como conceber que um ser humano seja portador de direitos sem que também esteja sujeito a deveres. Esse entendimento é corroborado pela atual Constituição da República que reconhece expressamente a existência dos deveres fundamentais em seu Capitulo I do Título II.

Segundo o mestre português, “os deveres fundamentais, enquanto deveres do homem e do cidadão que determinam o lugar do individuo na comunidade organizada no estado (moderno), têm uma grande importância”[15]. Assim, podemos formular um conceito de deveres fundamentais como sendo aqueles deveres que decorrem do ser humano enquanto ser humano e enquanto membro de uma sociedade organizada.

 

2.2. Fundamento dos deveres fundamentais

 

A dignidade da pessoa humana é um valor intrínseco à pessoa, isto é, o indivíduo vale por si mesmo. Assim, toda pessoa pode exigir que seus direitos sejam respeitados, tanto pelo Estado quanto por outros seres humanos. Nesse contexto, a dignidade não é apenas o fim último da pessoa, mas também a finalidade do Estado.

Desta feita, os estudiosos do tema reconhecem que os deveres fundamentais têm como decorrência lógica a dignidade da pessoa humana, conforme assentou Nabais:

 

[...] ao fundamento lógico, podemos afirmar que os deveres fundamentais são expressão da soberania fundada na dignidade da pessoa humana. Pois os deveres fundamentais são expressão da soberania do estado, mas de um estado assente na primazia da pessoa humana. O que significa que o estado, e naturalmente a soberania do povo que suporta a sua organização política, tem por base a dignidade da pessoa humana.[16]

 

Não podemos esquecer que ao lado do fundamento lógico há o jurídico. A maioria da doutrina assegura que a base jurídica dos deveres fundamentais reside no seu reconhecimento pela Constituição, seja explícita ou implicitamente.

Neste aspecto difere os deveres dos direitos fundamentais, pois estes decorrem da condição humana, portanto tem caráter meramente declaratório e, aqueles necessitam ser instituídos, pois sua natureza é constitutiva. Assim:

 

É o legislador que, considerando as necessidades verificadas em cada momento, deve estabelecer qual o grau de interferência do Estado na esfera privada do individuo, ou seja, o legislador deve estabelecer qual a intensidade dos deveres fundamentais.[17]

 

 

A nossa atual Carta adota a dignidade da pessoa humana como fundamento da República no inciso III do art. 1º, restando, pois, positivado o fundamento lógico dos direitos e deveres fundamentais.

Ao lado do reconhecimento expresso da dignidade humana soma-se uma “cláusula geral” dos deveres fundamentais constante no Capitulo I do Titulo II - direitos e deveres individuais e coletivos – e os deveres que decorrem implicitamente do texto constitucional como fundamento jurídico dos deveres fundamentais e, como contrapartida postulados do Estado Democrático Brasileiro.

 

2.3. Regime constitucional dos deveres fundamentais

 

Como dito no tópico anterior, o fundamento jurídico dos deveres fundamentais reside no seu reconhecimento pela Constituição, seja explícita ou implicitamente. Desse reconhecimento podemos inferir a existência de um regime jurídico constitucional dos deveres fundamentais.

Assim, temos que o regime jurídico constitucional dos deveres fundamentais estabelecidos pela Constituição de 1988, está umbilicalmente ligado aos direitos fundamentais[18], sendo que formam o estatuto constitucional da pessoa humana que possui dois aspectos: o regime geral e a inaplicabilidade direta dos deveres fundamentais, como bem explica o mestre português:

 

No que ao seu regime geral diz respeito, os deveres fundamentais, não obstante a sua autonomia, a sua relativa independência face à figura ou categoria jurídica dos direitos fundamentais, participam do regime geral destes. Pois este é, na verdade, um regime relativo ao estatuto constitucional do indivíduo, isto é, relativo aos direitos e aos deveres.[19]

 

 

E o autor continua enumerando alguns princípios consagrados pelo estatuto do indivíduo:

 

Daí que se apliquem aos deveres fundamentais, nomeadamemte, os princípios: 1) da universalidade ou da aplicação categorial, 2) da igualdade enquanto proibição do arbítrio, 3) da não discriminação em razão de critérios subjetivos ou de critérios interditos pela constituição como os que constam da lista, aliás bastante completa do art. 13º, nº 2, da Constituição portuguesa, 4) da proporcionalidade nos três aspectos conhecidos (ou seja, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em sentido estrito) relativamente à sua concretização pelo legislador, 5) da aplicabilidade aos estrangeiros e apátridas, e 6) da tutela judicial.[20] 

 

Em relação ao segundo aspecto, temos que, em regra, os deveres fundamentais são inaplicáveis diretamente[21], isto é, para terem total eficácia necessitam que uma lei os concretize. E ensina o prof. Nabais:

 

Por seu lado, no que concerne à inaplicabilidade direta dos deveres fundamentais, é de salientar que, ao contrario do que ocorre em matéria de direitos, liberdades e garantias, as normas constitucionais relativas aos deveres não são directamente aplicáveis aos seus destinatários subjetivos. Desde logo porque os deveres fundamentais, por via de regra, não tem o seu conteúdo concretizado na constituição, sendo, pois deveres de concretização legal. Mas, mesmo quando a sua concretização se realiza ao nível da constituição, o legislador dispõe de uma ampla liberdade, nomeadamente para estabelecer as sanções aplicáveis no caso da sua não observância.[22]

 

Com base nesse aspecto, Nabais[23] faz referência à ligação entre os deveres fundamentais e os direitos sociais, mas ao mesmo tempo relembra que também há componentes de diferenciação, pois estes são imposições legislativas enquanto os deveres são uma habilitação ao legislador para desenvolvê-los, bem como para estabelecer sanções para o não cumprimento dos mesmos. Assim, as normas de deveres fundamentais têm como principal destinatário o legislador ordinário.

 

3. Dever fundamental de pagar tributo – os custos dos direitos fundamentais

 

A dignidade da pessoa humana – de onde deriva todos os direitos humanos – e os deveres fundamentais são postulados de um Estado Democrático, como dito anteriormente. Assim, os deveres fundamentais servem de mecanismo viabilizante da existência e funcionamento de uma sociedade organizada.

Nesse contexto, temos que os deveres fundamentais correspondem aos custos lato sensu que o Estado e os indivíduos têm por viverem em sociedade, como bem observa Nabais:

 

Pois bem, num estado de direito democrático, como são ou pretendem ser presentemente os estados actuais, podemos dizer que encontramos basicamente três tipos de custos lato sensu que o suportam. Efectivamente aí encontramos custos ligados à própria existência e sobrevivência do estado, que se apresentam materializados no dever de defesa da pátria, integre este ou não um especifico dever de defesa militar. Aí encontramos custos ligados ao funcionamento democrático do estado, que estão consubstanciados nos deveres de votar, seja de votar na eleição de representantes, seja de votar directamente questões submetidas a referendo. E aí encontramos, enfim, custos em sentido estrito ou custos financeiros públicos concretizados portanto no dever de pagar impostos.[24]

 

No entanto, neste trabalho estamos tratando apenas de uma das modalidades de custos - os custos estritos sensu - traduzidos no dever de pagar impostos.

Temos que os direitos dependem de uma prestação estatal, que, por sua vez depende do cumprimento por parte do indivíduo do dever fundamental de pagar impostos, vez que a concretização dos direitos fundamentais custa dinheiro, em maior ou menor intensidade.

Novamente utilizaremos os ensinamentos do mestre português:

 

Em uma primeira verificação, que devemos desde já assinalar a tal respeito, é esta: os direitos, todos os direitos, porque não são dádiva divina nem fruto da natureza, porque não são auto-realizáveis nem podem ser realisticamente protegidos num estado falido ou incapacitado, implicam a cooperação social e a responsabilidade individual. Daí que a melhor abordagem para os direitos seja vê-los como liberdades privadas com custos públicos.[25]

 

Em que pese à maioria da doutrina correlacionar o custo financeiro público dos direitos fundamentais apenas aos direitos sociais, a verdade é que todos os direitos fundamentais geram um custo para o Estado implementá-lo e, por consequência, um dever para todos os indivíduos, na medida da possibilidade de cada um.

Nesse sentido Nabais escreveu:

 

Não tem, por isso, o menor suporte a ideia, assente numa ficção de pendor libertário ou anarquista, de que a realização e proteção dos assim chamados direitos negativos, polarizados no direito de propriedade e na liberdade contratual, teriam apenas custos privados, sendo assim imunes a custos comunitários. Ou, dito de outro modo, não tem a menor base real a separação tradicional entre, de um lado, os direitos negativos, que seriam alheios a custos comunitários e, de outro lado, os direitos positivos, que desencadeariam sobretudo custos comunitários. Pois, do ponto de vista do seu suporte financeiro, bem podemos dizer que os clássicos direitos e liberdades, os ditos direitos negativos, são, afinal de contas, tão positivos como os outros, como os ditos direitos positivos. Pois, a menos que tais direitos e liberdades não passem de promessas piedosas, a sua realização e a sua proteção pelas autoridades públicas exigem recursos financeiros.[26]

 

Portanto, todos os direitos têm custo financeiro público, sendo que a diferenciação se dá no grau e na forma (direta ou indireta) em que se dará esse custeio.

Nos direitos de primeira dimensão o custeio se dá de forma indireta, isto é, em despesas com os serviços públicos ligados a proteção e realização material desses direitos. Podemos utilizar como exemplo o clássico direito de liberdade que para ser garantido tem um custo público indireto, pois para assegurá-lo se faz necessário criar e manter órgãos de segurança pública, bem como garantir, caso o direito de liberdade seja violado, o acesso a jurisdição através da Defensoria Pública.

Os direitos sociais, também conhecidos como direitos prestacionais, têm por finalidade a redução das desigualdades sociais, estando, pois, vinculados a ideia de (re)distribuição de recursos, bem como à criação de bens essenciais, a exemplo dos programas sóciais de moradia, os serviços de saúde para quem não possa pagar. Com efeito, nota-se claramente que os direitos sociais têm um custo financeiro público direto.

Assim, mesmo não havendo dispositivo expresso acerca do dever fundamental de pagar imposto depreende-se da Constituição da República de 1988 que o mesmo existe em nosso ordenamento jurídico.

Deve-se ter em mente que o Estado Democrático de Direito (art. 1º, CR) não está simplesmente pautado no “império da lei” (Estado de Direito[27]), mas almeja superar o Estado de Direito, garantindo não somente a liberdade individual (com a proteção aos direitos de propriedade), como também o respeito por todos os direitos e garantias fundamentais, baseadas no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF). Nesse novo modelo não se verifica a tributação, simplesmente, como a clássica relação de poder entre o Estado e os indivíduos, mas uma relação baseada no estatuto constitucional do individuo, com a necessidade de concretização dos direitos fundamentais previsto no ordenamento jurídico e com os deveres fundamentais a serem prestados pelos cidadãos.

Assim:

 

Podemos perceber, então, que o dever fundamental de pagar imposto é o modo de se efetivar os direitos previstos na Carta Constitucional, sejam tais direitos de cunho prestacionais ou não, pois, apesar de existirem importantes vozes na doutrina no sentido de reconhecer explicitamente a incidência de tal dever aos direitos prestacionais, certo é que todos possuam um custo a ser arcado, não importando se maior ou menor a depender da geração de cada direito. O pagamento de impostos é atribuído a todos os sujeitos que possuam capacidade contributiva para arcar com esse o dever, possibilitando a realização dos deveres do estado em beneficio de todos.

Disso tudo, pode-se concluir que a tributação não constitui um fim em si mesmo, ou seja, não é a razão de ser do próprio estado que ele exista simplesmente para tributar seus indivíduos. Pelo contrário, o que se percebe é que a tributação é um meio existente, dentre outros, para que o estado preste aos indivíduos aqueles direitos que lhes foram outorgados pela Constituição. Importa deixar claro que, num estado fiscal, malgrado existam outros meios idôneos para angariar recursos para os cofres públicos, não resta dúvida que a tributação é principal delas.[28]

 

4. Conclusão

 

De todo o discorrido, conclui-se que a ideia de direitos humanos (fundamentais), bem como a sua concretização, vem evoluindo ao longo da História da humanidade e tem sua origem marcada pelas lutas do povo para conter o poder estatal.

Na contramão dessa evolução, encontramos os deveres fundamentais, que foram se “perdendo” ao longo do tempo. No entanto, a ideia de direitos fundamentais não pode ser dissociada da ideia de deveres fundamentais, especialmente em um Estado Democrático de Direito, que tem como postulado a dignidade da pessoa humana, de onde germina todos os direitos fundamentais, e há o compromisso para concretização desse valor.

A dignidade da pessoa humana também é fundamento lógico dos deveres fundamentais, sendo certo que o suporte jurídico reside na sua consagração constitucional, expressa ou implicitamente.

Assim, os direitos e os deveres fundamentais fazem parte do estatuto constitucional do individuo, sendo certo que os deveres fundamentais possuem um regime jurídico constitucional ligado aos dos direitos fundamentais e que tem por finalidade implementar referidos direitos.

Com efeito, a implementação e preservação dos direitos fundamentais tem um custo por parte do estado e, portanto, há a necessidade de o individuo dar uma contrapartida, na medida de sua capacidade financeira, para a realização material desses direitos.

Desta feita, percebe-se facilmente que um dos deveres fundamentais implícitos na nossa ordem constitucional é o dever fundamental de pagar imposto, que corresponde ao custo estrito senso dos direitos fundamentais ou custos financeiros públicos.

 

Referências

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GOUVEIA, Homero Chiara. Breves considerações filosóficas sobre a idéia de deveres fundamentais no pensamento jurídico ocidental. Disponível na internet:< http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/2878/2090 > Acesso em: 10 de setembro de 2016.

 

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LURCONVITE, Adriano dos Santos. Os direitos fundamentais: suas dimensões e sua incidência na Constituição. Disponível na internet:< http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=artigos_leitura_pdf&%20artigo_id=4528> Acesso em: 25 de agosto de 2016.

 

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Sobre a autora
Keila Morganna Gomes de Melo

Formada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Pós-graduada em Direito processual e em Direito Administrativo. Técnica Judiciária no Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas (2002/2008) e Procutadora da Fazenda Nacional

Informações sobre o texto

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