Cândido e a luta pelo Direito

30/01/2019 às 15:08
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Ao contrário da postura de Cândido ao enxergar o Mundo como o melhor possível, devemos dar prosseguimento com o processo iluminista transformador e zelar pela proteção da Declaração Universal de Direitos Humanos e lutar por novos direitos.

Em "Cândido ou o Otimismo" Voltaire satiriza o otimismo que conduz ao imobilismo e à falta de energia para buscar a transformação do Mundo.

É certo que ao naturalizar mesmo as piores agruras da vida tem-se uma aceitação das injustiças sociais e o mergulho a uma espécie de niilismo que servirá apenas aos perpetradores das desigualdades.

Quando Voltaire escreveu essa obra satírica em 1759 certamente atuou como um iluminista francês, já em meios ao caldeirão de efervescências que culminaria com a Revolução Francesa de 1789, um marco inaugural do que posteriormente consolidaria a noção de Direitos Humanos.

Cândido, ao tomar lições de seu mentor, Pangloss, sente-se deslumbrado por aquele que seria o "melhor do melhor dos mundos possíveis", uma espécie de "edenização" do mundo a expensas da Filosofia de Leibniz.

Por certo que um tipo de pensamento que olha o Mundo e o ideologiza como sendo o melhor dos mundos possíveis socorre-se de uma metafísica tão somente para promover o reacionarismo que serve à manutenção do status quo. Um pensamento que pinta o Mundo como um quadro colorido onde cada um está em seu devido lugar, acondiciona o pensamento acerca de que seria o mundo uma pintura impassível de reformas e que seria preferível o colorido dos guetos ao cinza da não existência.

A História conduziu a verve Iluminista ao vislumbre da Liberdade, para tanto, foi necessário o rompimento com o "antigo regime", possível apenas com o estilhaçamento das cadeias que prendiam a contemplação da existência a uma pintura, ou seja, a imobilidade de todo quadro social. Romper com algo é sempre um ato de violência, de luta, doravante pressupõem o desagrado, o desconforto e a insatisfação. A ideia de que há algo melhor no porvir, ainda que não nomeado, mas capaz de impelir o espírito à luta é um tipo de "esperança", não uma que se resume ao esperar, mas a um "esperançar" – espere enquanto vai ao encontro de.

Quando Rudolf Von Ihering escreveu em sua obra "Luta pelo Direito" que "O fim do Direito é a paz; o meio de atingi-lo, a luta. O Direito não é uma simples ideia, é força viva. Por isso a justiça sustenta, em uma das mãos, a balança, com que pesa o Direito, enquanto na outra segura a espada, por meio da qual se defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a impotência do Direito. Uma completa a outra. O verdadeiro Estado de Direito só pode existir quando a justiça brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança." certamente deixou claro que as transformações do Mundo pressupõem agentes transformadores e que na modernidade o Direito é uma ferramenta pela qual as transformações sociais poderão ocorrer pela transmutação de relações, instituições e formas de vida, o que é possível com o apaziguamento de conflitos, a redução de desigualdades, o afastamento da crueldade, a contenção de tiranos e, quiçá, uma maior contemplação da justiça e da liberdade em nível Universal. O que foi pensado como ideal, frutificou posteriormente como a "Declaração Universal de Direitos Humanos". Não foi a candura que motivou essa carta e nem um pensamento como o de Pangloss influenciou uma conquista tão sublime. O espírito iluminista alçou vôos maiores e contemplou o absoluto ao abranger direitos para todo o gênero humano, no entanto foi preciso luta e houve muito derramamento de sangue, duas guerras mundiais, genocídio, uma revolução industrial que lançou milhões de trabalhadores às mais degradantes condições de trabalho, para mostrar que este não era o melhor dos mundos possíveis. Mas a despeito de tudo isso, um ferrenho espírito humano combativo manteve-se para que, enfim, tivéssemos um jardim no qual buscar novas esperanças e forças para consolidação de fato dos direitos entabulados na Declaração Universal fosse possível.

Voltaire em seu "Cândido" propõe uma fórmula que soa enigmática: "cultivar nosso próprio jardim". Na Mitologia Grega conhecemos o mito do "Jardim das Hespérides" na qual as ninfas ornavam um belo e longínquo jardim, onde árvores frutificadas por maçãs de ouro eram guarnecidas por um dragão a mando de Hera. O jardim simboliza a transição entre o dia e a noite - o jardim é o próprio entardecer.

Devemos cultivar nosso próprio jardim, o mundo da vida, cujos frutos de ouro de nossas esperanças são ninfas sempiternas e estarão sempre ameaçadas pelo dragão Egoísmo que bafora as injustiças e desigualdades do mundo. Nosso desafio é o próprio entardecer, porém, é imperioso que tenhamos o ímpeto de brandirmos a espada do direito enquanto manejamos a balança da equidade, para que consigamos, pela luta, dar combate às injustiças que se levantam incessantemente. Não deixemos que o entardecer seja o crepúsculo de todos os famintos.

Os direitos humanos, trabalhistas e sociais floresceram pelo sangue de mártires, grevistas e ativistas. O eco de vozes de genocídios, exploração e escravidão, ressoam as palavras de redenção da Declaração Universal de Direitos Humanos. É certo que jamais poderemos fazer justiça aos que pereceram nessa luta, mas a nossa redenção é fazer combate e darmos prosseguimento para levarmos um quinhão de justiça a cada canto deste mundo - façamos não com que seja o melhor, mas um mundo melhor para cada um de nós e nossa posteridade.

O combate diário às injustiças é tarefa, sobretudo, nossa, operadores do Direito. Devemos tomar inspiração em Hanna Arendt quando afirma que nos cabe não apenas lutar por direitos consolidados, mas lutar pela luta de criarmos novos direitos. Somente assim a candura não servirá mais para que dragões oportunistas ameacem devorar o jardim onde floresce nossa Declaração Universal de Direitos Humanos e nossa Constituição cidadã, um fruto de ouro de nossa República.

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Sobre o autor
Fernando Lopes Marim Pereira

Advogado com experiência em grandes empresas, atuando com outros profissionais especialistas em áreas como Direito Civil; Trabalhista; Ações Indenizatórias (inclusive quanto a defesa dos direitos das minorias); Direito de Família; Direito de Imagem; Direito Penal (foco em Tráfico de Drogas, Roubo, Furto E Estelionato) Confira nosso site: https://www.lopesadvogadoseconsultores.com/

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