Um estado de guerra?

04/02/2019 às 11:13

Resumo:


  • Pressões domésticas e internacionais aumentam pela renúncia de Maduro, com tensões crescentes na Venezuela.

  • Guerra é considerada um ilícito internacional, podendo levar à extinção de tratados bilaterais entre os Estados em conflito.

  • Estado patológico social na Venezuela pode desencadear uma guerra civil, com a emergência de um governo de fato em meio a uma revolução.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Reflexões sobre a situação que atravessa a Venezuela, à luz do direito constitucional e internacional público.

I - O FATO 

Na edição do dia 4 de fevereiro de 2019, noticiou o Estadão:

“O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, voltou a afirmar que enviar militares para a Venezuela é “uma opção. “Certamente é algo que está no radar. É uma opção”, disse Trump, em entrevista ao programa Face the Nation, da rede de televisão americana CBS.

Na mesma entrevista, Trump afirmou ter recusado um encontro com o presidente Nicolás Maduro. Segundo o presidente americano, o chavista havia solicitado o encontro meses atrás. “Bem, ele pediu uma reunião e eu recusei porque estamos muito longe no processo”, afirmou Trump. “Acredito que o processo esteja acontecendo – com protestos muito, muito grandes.”

Dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra o governo de Maduro no sábado, vestindo as cores amarelo, vermelho e azul da bandeira venezuelana.

As pressões domésticas e internacionais pela renúncia de Maduro aumentam. Na semana passada, os Estados Unidos impuseram novas sanções ao petróleo venezuelano. O governo americano bloqueou os ativos da petrolífera da Venezuela, a PDVSA, e proibiu entidades estrangeiras que negociam com ela de usar o sistema financeiro americano. “


II - A GUERRA NO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO 

A guerra é considerada hoje pela Carta das Nações Unidas um ilícito internacional, que provoca a extinção dos tratados bilaterais, que normalmente são tratados-contrato, entre os Estados em conflito, tais como tratados de protetorado, de aliança, de garantia, de subsídios em geral, os de natureza política. Quanto aos chamados tratados multilaterais(em regra tratados-lei), somente os Estados beligerantes inimigos, que dele façam parte, e que suspendem os compromisso entre si, operando o tratado normalmente para as demais partes, mas isso em se tratando de acordo mutalizáveis, ou seja, aqueles cuja inexecução por parte de algum ou alguns Estados não acarreta a invalidade do acordo em relação às demais partes, como lembrou Valério de Oliveira Mazzuoli(Curso de direito internacional público, 3ª edição, pág. 273).


III - A REVOLUÇÃO 

O panorama hoje existente na Venezuela pode levar a uma guerra civil, algo destruidor, abominável e de consequências nefastas.

Surge um Estado patológico social onde aparece o que se chama de Estado de fato diante de um direito de revolução.

Na hipótese de tirania, isto é, de violação, desconhecimento reiterado de liberdades fundamentais, quando ao cidadão se fecham, se impossibilitam todos os variados recursos que o regime reiterado de ações dos governantes ou de seus agentes, já Aristóteles, Santo Tomás de Aquino e os mais famosos teólogos(Suarez, Vitoria, Soto, Mariana e outros) francamente admitiram os direito de resistência e o da revolução.

Como ensinou Meirelles Teixeira(Curso de direito constitucional, pág. 224), a revolução nos aproxima das próprias fontes, das próprias origens do poder político, isto é, da soberania nacional.

O governo de Maduro dirá: Trata-se de uma tentativa de  golpe fomentada pelos Estados Unidos? A parte contrária dirá que se trata de um movimento da sociedade em defesa da saída de um governo tirano, que submeteu à população à fome e que saqueia as riquezas da Venezuela.

Menzel dizia que a revolução é toda mudança súbita em certo nexo causal ou na continuidade de desenvolvimento de um processo.

Kelsen dizia que “uma revolução ocorre quando a ordem legal de uma comunidade é anulada e substituída por uma nova ordem por meios ilegítimos, isto é, não previstos pela ordem jurídica anterior”.

A “ilegitimidade” a que se referiu Hans Kelsen, constitui, portanto, uma ilegitimidade meramente formal, porque se ação revolucionária é, por essência e definição, ação da própria comunidade política, da nação agindo diretamente fora de todas as formas constituintes, já destruídas, ela se apresenta sempre legitima, do ponto de vista de sua própria substância e do sujeito que o exerce.

Mas, como observou Meirelles Teixeira, o conceito de Kelsen sobre revolução, não abrange, todavia, uma certa categoria de revolução: aquelas que visem apenas à destruição de uma tirania e à mera restauração do respeito a uma ordem constitucional reiteradamente violada ou mesmo inteiramente destruída.

Os autores chegam a à conclusão de que “a modificação, fora dos quadros constitucionais vigentes e geralmente por meios violentos, dos fundamentos do Direito e do Estado, ou a restauração, pelos mesmos processos, da ordem constitucional violada ou destruída pela tirania”.

Ortega e Gasset falava em revoluções criadoras, ou contra os costumes e revoluções reparadoras ou contra abusos.

A chamada revolução reparadora ou revolução contra abusos não consiste em adotar-se nenhuma ideia nova de direito, como a anterior, nenhuma reforma substancial nas instituições políticas ou jurídicas. Essas revoluções dirigem-se contra a tirania, a ilegalidade, o arbítrio, que, por circunstâncias que não vem ao caso examinar, se hajam instalado no poder. Elas se acham estritamente ligadas ao “direito de resistência à opressão”.

Aliás, já dizia Sampaio Dória que “o povo tem o direito inalienável de organizar, nas bases do Direito, da Justiça, da liberdade, sua vida coletiva. Mas é comum que lhes usurpem tais direitos. E não só se surrupiam, como por cima, podem os usurpadores tripudiar sem clemência sobre a sua personalidade, e não lhe permitir sequer o direito de protesto. Já não há recurso de reação na lei”. Nesse caso, quando “uma longa série de abusos e usurpações, todos invariavelmente dirigidos ao mesmo fim, estão a apontar o desígnio de submeter o povo a despotismo absoluto, é seu direito, é seu dever, pôr termo a tal governo e prever novos guardiões de sua segurança futura”.

Para Kelsen, a revolução não configura direitos, ao passo que Sampaio Dória aduzia que “trata-se de um direito decorrente do direito inalienável, que ao povo assiste, de auto-organização(soberania nacional).

Para Burdeau, a mudança da ideia do direito, que se acha na base de determinada estrutura estatal, rompe a continuidade do Estado, que não resiste, então, à revolução.

Com ela cai uma ordem constitucional e infraconstitucional tirana que não se enquadra nos desejos populares. Isso é inevitável diante de uma revolução criadora.

Destruída ou revogada uma Constituição diante de uma revolução que venha a triunfar, seria lícito indagar se alguns de seus dispositivos poderá subsistir.

Na França, a resposta teria sido afirmativa, através de uma teoria denominada “da desconstitucionalidade de dispositivos constitucionais”, aceita por Duguit, Esmein, Bonnard, e, na Alemanha, por Jellinek, Carl Schmitt, dentre outros.

Certos dispositivos constitucionais sobrevivem, agora, após a revolução, como leis ordinárias, a cada Constituição.


IV - O GOVERNO DE FATO 

No estado de beligerância interna, surge o governo de fato.

Para Burdeau, é o instituído em contradição com a Constituição vigente, ou, ipso facto, no caso de simples inexistência de uma ordem constitucional prévia. Em suma, os instituídos sem se atender a qualquer norma positiva prévia.

Para Kelsen, estudando teoria do Estado, “os governos de fato como aqueles estabelecidos por via revolucionária, isto é, governos que se instalam no poder por meios e processo não previstos na ordem jurídica então vigente.”.

Há com o governo de fato, uma ruptura da ordem jurídica vigente.

É o que ocorre na Venezuela, quando um governo de fato, sob a presidência do chefe do Parlamento, se proclamou como presidente.

A legitimidade do governo de fato repousa na própria legitimidade da revolução.

Mas esse governo é temporário e provisório.

Formulou Recaséns Siches algumas regras ou princípios a serem observados, no seu entender, pelos governos de fato:

  1. Não devem compartilhar, de modo algum, seu poder com vestígios do mundo anterior;
  2. Absoluta submissão à futura e definitiva decisão da vontade constituinte do povo;
  3. Deverão limitar suas funções, primeiro, à organização da expressão e cumprimento da soberania popular, quer dizer, preparar e convocar um Assembleia Constituinte;
  4. Limitar-se ainda aos assuntos de expediente, adiando a solução dos mais importantes que não apresentam urgência, para decisão da Assembleia Constituinte;
  5. Estabelecerão uma legalidade provisória, que deverá prevalecer até que se haja pronunciado a soberania popular;
  6. Na organização e convocação da Assembleia Constituinte, ajustar-se-ão às práticas democráticas mais autênticas, eficazes, segundo sobretudo a voz predominante da opinião pública, que nesses momentos se torna vigorosamente perceptível;
  7. Não somente evitarão restringir qualquer meio de expressão do pensamento político, como ainda abrirão todos os veículos possíveis e todas as propagandas;
  8. Todos os atos do governo provisório ficarão submetidos à revisão do Poder Constituinte.

A missão do governo de fato e restaurar a ordem constitucional.

Vem a pergunta : Como entender o reconhecimento do governo de fato na órbita internacional?

Serão necessária a implementação das seguintes condições, como ensinou Meirelles Teixeira(obra citada, pág. 264):

  1. Tratar-se de uma revolução justa, ao menos formalmente, isto é, que acate as regras da moral universal, da convivência internacional e os direitos do homem, que são hoje objeto de declarações universais;
  2. Que a revolução esteja realmente vitoriosa;
  3. Que haja efetivamente, um governo, isto é, autoridades que dominem substancialmente o território nacional, obtenham obediência efetiva, mantenham a ordem, façam funcionar os serviços públicos etc.

Para Kelsen, “em Direito Internacional, todos os governos são legítimos, porque o direito internacional considera legítimo o governo que ocupa o poder. O Direito Internacional reconhece, e assim legitima, os governos que exercem efetivamente o poder”.


V - A SUBLEVAÇÃO INTERNA E O RECONHECIMENTO NA ÓRBITA INTERNACIONAL 

Há uma evidente sublevação na Venezuela, prestes a entrar num banho de sangue. Entendo que já se deve analisar, no âmbito internacional medidas para reconhecimento de um novo Estado, pós-chavismo, com a possível saída de Maduro do poder.

Celso Duvivier de Albuquerque Melo (Curso de direito internacional público, 2007, pág. 363) trouxe  a concepção política de Estado de acordo com a teoria de Max Weber que o qualifica como:

a) uma ordem administrativa e jurídica;

b) um aparato administrativo que é regulamentada por uma legislação;

c) autoridade legal sobre as pessoas;

d) autoridade legal sobre pessoas e atos praticados no seu território;

e) legitimidade para o uso da força

Ensinaram Hildebrando Aciolly e Geraldo Eulálio do Nascimento Silva (Manual de direito internacional público, 15.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 99.) que “se se tratar de um Estado surgido de um movimento de sublevação, o reconhecimento será prematuro enquanto não cessar a luta entre a coletividade sublevada e a mãe-pátria, a menos que esta, após luta prolongada, se mostre impotente para dominar a revolta e aquela se apresente perfeitamente organizada como Estado; 2º) desde que a mãe-pátria tenha reconhecido o novo Estado, este poderá ser reconhecido logo que apresente todas as características de um Estado perfeitamente organizado e demonstre, por atos, sua vontade e sua capacidade de observar os preceitos do direito internacional. 3°) se se tratar de um Estado surgido de outra forma, ele poderá ser reconhecido logo que apresente todas as características de um Estado perfeitamente organizado e demonstre, por atos, sua vontade e sua capacidade de observar os preceitos do direito internacional.”

Contudo, não se pode descartar a hipótese do reconhecimento prematuro de um Estado, o que pode ser perigoso, devendo ser realizado com extrema cautela, uma vez que sua prática poderá ser interpretada como ingerência indevida em assuntos internos do Estado. Segundo alguns autores o reconhecimento da Croácia por parte de certos membros da Comunidade Europeia, e Suíça (ocorrido em 15 de janeiro de 1992), foi prematuro, eis que a Croácia, a época, controlava apenas um terço de seu próprio território, como ensinou Valério de Oliveira Mazzuolli(Curso de direito internacional público, 2009, pág. 400).

 A doutrina majoritária faz referência a duas teorias relativas ao reconhecimento de governo:

1) Doutrina Tobar. Instituída pelo Ministro das Relações Exteriores do Equador, Carlos Tobar (1853-1920), em 1907, pregava que a única forma de evitar golpes de Estado no continente americano seria a comunidade internacional se recusar a reconhecer os governos golpistas como legítimos, rompendo relações diplomáticas e apresentando a eles uma declaração de não-reconhecimento, até que aquele governo fosse confirmado de forma democrática. Esta tese esteve presente na América Latina, inclusive na Venezuela, que aplicou-a rompendo relações com Estados cujos governos não concordava, inclusive o Brasil.

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2) Doutrina Estrada. Em 1930, o Ministro das Relações Exteriores do México, Genaro Estrada (1887-1937), proferiu uma declaração sustentando que o reconhecimento de uma nova soberania é uma prática afrontosa, e de desrespeito à soberania da nação preexistente, pois o reconhecimento é um elemento dispensável para que o Estado inicie suas atividades. Em outras palavras, quer dizer que se um Estado não concorda com determinado governo, basta simplesmente não manter relações diplomáticas com ele. Mas emitir um juízo de valor seria considerado uma ofensa.

Na prática, percebe-se que esta teoria obteve maior aceitação na América Latina. Pode haver, para o caso, um reconhecimento especial que são alternativas que podem ser estudadas pela Organização dos Estados Americanos e, se for o caso, apesar da posição do Uruguai, pelo Mercosul, em grau de economia local: 

a) Reconhecimento de beligerância. Ocorre quando parte da população de um Estado desencadeia uma revolução contra o governo, com a finalidade de criar um novo Estado ou modificar a forma de governo existente. A beligerância é um estado jurídico “precário”, dada a existência de duas situações distintas, onde ou o governo preexistente retomará ao poder, ou os rebeldes tomarão o poder definitivamente e instituirão um novel governo, baseado em seus ideais revolucionários. Como exemplo, cabe mencionar o caso da Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela que reconheceram a Frente Nacional de Libertação Sandinista como beligerante na guerra civil da Nicarágua, em junho de 1979.

b) Reconhecimento de insurgência. A insurgência (insurgency, em inglês, ou insurgence em francês), é deflagrada no momento em que uma revolta de proporções consideráveis, mas sem a qualidade de guerra civil, com fins políticos, comandada por um movimento armado com o fim de impedir a soberania e as relações exteriores de um Estado. Esta espécie de reconhecimento faz com que os atos praticados pelos “insurretos” deixem de serem de serem qualificados como atos criminosos, de banditismo, terroristas ou de pura violência. A base de uma insurgência pode ser política, econômica, religiosa, étnica, ou uma combinação de fatores. Podem ser citadas insurgências históricas, como a Guerra Civil Russa (1918-1921), e a Guerra Civil Angolana (1975-2002).

c) Reconhecimento como Nação. Ocorre quando um ou mais Estados admitem que determinado grupo reúne todos elementos necessários para ser considerado como verdadeira Nação. O termo “Nação” refere-se a um conjunto de pessoas que possuem a mesma origem, as mesmas tradições, os mesmos costumes e aspirações comuns. Comumente os membros de uma nação falam a mesma língua e habitam o mesmo território, podendo, entretanto, haver exemplos em sentido contrário. O que liga o povo de uma nação é um laço puramente moral, ao passo que no Estado, existe uma relação política. O reconhecimento como Nação teve origem na primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918, gerando efeitos mais políticos do que jurídicos, por tratar-se de uma espécie de “promessa” de reconhecimento, quando a respectiva Nação tornar-se formalmente um Estado soberano, após reunidos os requisitos que lhe são inerentes.

Explicou, por fim, Josué Scheer Drebes (O estado no direito internacional: formação e extinção) que o Direito Internacional comporta também os chamados “reconhecimentos especiais”. Tais atos jurídicos tem lugar a partir da emergência de situações peculiares como, por exemplo, um processo revolucionário, em que parte da população se levanta contra o governo com intuito de modificar o poder central ou até mesmo criar um novo Estado (reconhecimento de beligerância); quando se verifica um sublevação de caráter eminentemente político, não comparada aos atos de guerra civil (reconhecimento de insurgência); na situação em que se confere a determinado povo a qualidade de Nação politicamente organizada (reconhecimento como Nação). Como revelou José Scheer Drebes, esses “reconhecimentos” são de suma importância não apenas para o Direito Internacional como também para a Ciência Política, uma vez que seus efeitos alcançam esta disciplina.

Estará o governo que quer se instalar na Venezuela exercendo poder de fato?

O tempo responderá a tal indagação.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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