Introdução
O papel do historiador do direito é de certa maneira entender as transformações, as rupturas e as continuidades presentes em diferentes momentos históricos, bem como seus discursos jurídicos distintos1. O Direito Penal, como as outras áreas do Direito, é fonte e alvo de discursos de crítica e de legitimação, é objeto de conhecimento e de ciência, ao passo que é também instrumento de coerção a serviço de determinada ordem social e de relações de poder vigentes, em sua relação com a violência e com a liberdade. Esses discursos e essas práticas – que na área penal radicalizam a evidência da dualidade saber-poder – são passíveis de análise do historiador do Direito, tanto como fruto de uma sociedade e de uma época, em seus meios de produção, de organização política, etc, quanto em sua relação interna e relativamente autônoma enquanto área distinguivelmente jurídica. Entre as duas perspectivas – a dependência com os outros sistemas sociais e a autonomia interna de um sistema – o estudo do Direito pode historicizar a si próprio, comparando entre o velho e o novo as descontinuidades, para o entendimento de sua contingência e sua sistematicidade.
É sob essa perspectiva que se pode fazer um estudo sobre um texto historicamente distante do contexto atual e, respeitando a particularidade da obra e da época, encontrar reflexões interessantes sobre o próprio Direito vigente, pois, à medida que se distancia da atualidade para entender o passado, torna-se mais fácil entender alternativamente a própria atualidade. Este trabalho então, busca evidenciar alguns elementos modernos do Direito Penal – entendidos como princípios – a partir de um texto de moldura antiga como O Direito da Guerra e da Paz, de Hugo Grotius. Não é, contudo objetivo aqui, projetar os princípios de Direito Penal modernos para a obra citada, ou mesmo procurar por eles, mas sim compreender que os discursos jurídicos da modernidade são em parte inovação e em parte reprodução de seu encalço e assim demonstrar que a preocupação com a fundamentação racional dos sistemas penais não é característica exclusiva do Direito Positivo e sua hegemonia moderna, mas é presente em outros momentos históricos muito diversos e é dada por formas próprias e originais em discursos diferentes.
A guerra como conflito aberto regulado pelo Direito
A obra O Direito da Guerra e da Paz de Hugo Grotius é um tratado de conteúdo jurídico – além de filosófico, moral, etc – que mantém por todo o seu desenvolvimento a preocupação com os conflitos humanos, tanto no âmbito político, internacional, quanto nas relações da própria sociedade entre seus indivíduos. A guerra é, nessa obra, objeto principal de estudo e de preocupação para o autor holandês, que, diante de conflitos que superavam o alcance das legislações estatais buscou fundamentar o seu discurso no Direito Natural, na razão humana, nos estudos cristãos e nos clássicos greco-romanos. O conceito de guerra, porém, deve ser entendido de forma mais ampla que o dado sentido moderno do termo, sendo a guerra esse constante conflito existente entre os homens e as nações que deve ser controlado e regulado pelo Direito.
A guerra pode ser empreendida legitimamente a partir das situações que podem e devem ser reparadas e punidas. Dentro do âmbito do Estado, nas relações entre os indivíduos, o Direito Penal estabelecerá as formas de punição às injúrias cometidas de forma análoga às relações internacionais de guerra legítima.
A pena é primariamente entendida assim como uma conseqüência da injúria cometida, como a legítima reivindicação de restauração da ofensa sofrida. Esta é a primeira forma de entender o ius puniendi, que será analisado abaixo. Mas a pena, antes de tudo deve ser relacionada a uma forma de justiça para se fazer legítima e praticável de acordo com o Direito Natural.
A justiça natural como fundamento geral das penas
A justiça concessiva é a primeira forma de interpretar o Direito de punir, através da idéia que a pena é devida àquele que comete a injúria; como que a falta e a pena sejam igualadas e esta seja decorrente daquela. Assim aquele que comete o delito recebe como conseqüência disto o dever de ser punido, já que, quando age conscientemente já aceita de antemão as conseqüências dos seus atos. Destaca-se aqui, no entanto, que “aquele que é punido deva ter a aptidão ou merecer ser punido”1 – em outras palavras, o agente do crime precisa também completar certos requisitos de culpabilidade.
De outro modo, pode-se entender a justiça comutativa como a melhor forma de descrever as penas, já que devolve-se ao criminoso uma pena pelo seu delito como nas relações contratuais. Desta maneira Grotius adverte que
Do mesmo modo que aquele que vende, mesmo se não especifica nada, presume estar obrigado a todas as coisas que são da natureza da venda, assim também aquele que cometeu um crime parece se ter voluntariamente submetido à pena porque um crime grave na pode não ser punível, de modo que aquele que quer diretamente cometer uma falta quis também, por vias de conseqüência, incorrer na pena. [...] Por isso também se diz daqueles que tramam um plano criminoso que eles merecem já ser punidos, isto é, que voluntariamente aceitaram merecer uma pena2.
E ainda no sentido contratual diz TERTULIANO que “A palavra dívida, nas Escrituras, é expressão figurada do delito porque a justiça exige punição, do mesmo modo que exige o pagamento de uma dívida”3.
É desta maneira entendido por Grotius o sentido dos contratos não somente como convenções mútuas, mas também as proibições e as relativas penas4.
Uma importante questão é que, apesar do Direito de Punir ser garantido pelo Direito Natural
“o sujeito desse direito, isto é, aquele a quem esse direito é devido, não é propriamente determinado pela própria natureza. A razão diz, de fato, que uma má ação pode ser punida, mas não diz quem deve punir, a não ser que a natureza indique de modo suficiente e de todo convincente que isso seja feito por aquele que é superior [...] De onde a conseqüência que, ao menos, um criminoso não deve ser punido por aquele que é tão criminoso quanto ele”5.
Assim, os indivíduos tomados como iguais não devem, para a segurança e a justiça geral, julgar e punir livremente seus iguais e deve-se ceder espaço, portanto, sempre para a figura daquele que é superior, que, em uma perspectiva laica é não outro senão o Estado.
Das exigências e das utilidades das penas
Além da moderna questão que restringe o ius puniendi ao âmbito do Estado e dá função aos poderes do Judiciário como único capaz de julgar e ao Ministério Público, em geral, o reservado poder de denunciar e acusar, o Direito Penal Moderno também se caracteriza pelo apelo à utilidade como elemento legitimador de sua existência e de seu poder. Já Grotius trouxe a idéia que, ao se diferenciar do Direito Divino, reservado ao poder de um deus que não precisa prestar contas, o Direito Natural não manteria um direito de punir em decorrência do delito se não houvesse em tal punição alguma utilidade entre os homens.
O direito de punir estabelece nada mais que “não se comete injustiça contra os culpados se eles forem punidos, não se segue, porém, que todos devam ser de qualquer modo punidos”; pois “um homem é de tal modo ligado pelo sangue a outro homem que não deve prejudicá-lo, a menos que seja para produzir algum bem” e, portanto “quando um homem pune o homem, que é seu igual pela natureza, deve se propor a algum fim”6. Grotius tem em vista assim a tese que trata a vingança como argumento naturalmente ilícito, já que essa não se difere verdadeiramente do delito e da injustiça em sua irracionalidade. “Isso é verdade, que quanto menos um indivíduo é dotado de razão, mais é levado à vingança7”.
Para encontrar o seu fundamento natural na utilidade para o direito de punir, Grotius afirma a tríplice utilidade da pena, que consiste na emenda, no exemplo e na proteção da dignidade ofendida.
A primeira utilidade da pena, que pode ser entendida como censura, punição ou lição, consiste na possibilidade de emendar o erro e corrigir o delinqüente. “Seu objetivo é de tornar melhor aquele que cometeu a falta, à maneira da medicina”8. Entende o Jurista, seguindo a tradição cristã, que o castigo aplicado sobre o pecado é capaz de redimir a alma corrompida e dar um fim à contradição na qual o criminoso se encontra afundado.
A punição como emenda mantém um caráter de consideração pelo indivíduo e deve ser incentivada mesmo entre amigos e em cada pequena falha para o aperfeiçoamento e a educação, mas é preciso ter bem estabelecida a medida destas punições, pois a medida da coação adequada para os casos não é dada pela natureza, “mas é pelas leis que, para evitar rixas, restringiram essa parentela comum do gênero humano aos mais próximos afetivamente, como se pode ver tanto alhures quanto no código de Justiniano, sob o título de De Emendatione Propinquarum9”.
A punição que tem o objetivo de remediar o destino do criminoso não pode, portanto provocar a morte, a não ser que não seja possível medida mais compatível e para o criminoso seja melhor a morte que a sua corrupção.10
A segunda utilidade da pena consiste no exemplo como forma de garantir que a injúria não torne a ocorrer e é também uma medida preventiva. Para Grotius
“Pode-se prover de três maneiras para que o lesado não sofra mais prejuízo da parte da mesma pessoa: primeiramente, se o delinqüente é eliminado; em seguida, se os meios de prejudicá-lo são desarraigados; enfim, se pelo mal que teve se sofrer ele desiste de cometer falta [...] Obtém-se que aquele que foi lesado não o seja mais por outros, por meio de uma punição que não seja qualquer, mas tendo lugar no grande dia, exposto aos olhares de todos e capaz de servir de exemplo”11.
As penas, pelo Direito Natural de Grotius, devem não só eliminar o perigo de reincidência do agente sobre o mesmo delito como evitar a incidência de novos delitos por todos os outros, quando são aplicadas de forma pública, na forma de suplícios exemplares.
Para a proteção da dignidade ofendida é que, finalmente, aceita-se a vingança privada sob os limites da equidade e da razão, quando de outras formas não se pode garantir a restauração da honra e os direitos do ofendido. Apesar da aplicação das penas estar de maneira geral subordinada à jurisdição estatal e ser vedada a atuação privada na execução da justiça esse Direito Natural em sua forma nua se fortalece na ausência da autoridade estatal, como é o exemplo do alto-mar e a jurisdição dos navios de comércio e de guerra, ou em qualquer lugar onde não haja tribunais, como nos desertos ou lugares ermos, ou mesmo, entre alguns povos, quando decorrido algum tempo depois de solicitado um juiz de direito ou uma ação em um tribunal e em não havendo o julgamento apelava-se para o motu proprio – como no caso dos russos ao tempo de Grotius.
Também sob a utilidade da proteção da dignidade do ofendido que, para Grotius, aquele que para o bem de uma comunidade mata um conhecido criminoso, um ladrão ou salteador, não deve ser punido12.
De outras características naturais às penas segundo Grotius
Além da utilidade como elemento necessário para a configuração do direito de punir, as penas, segundo Grotius possuem outras características naturais que devem ser respeitadas.
Primeiramente deve-se levar em conta que não é para o bom cristão adequado o radical exercício de julgar o seu igual e ainda menos de puni-lo. Isso advém de uma condição natural humana e que também é própria das penas, já que essas são sempre também uma forma de violência que não deve ser exaltada nem apreciada pela moral; não se deve, então, querer punir tudo com o máximo rigor, a ponto de tornar-se também sanguinário e intolerante. Também os cargos de juiz criminal e de acusador não devem ser exaltados como de grande poder13.
As penas não podem também ser somente uma autorização para o cometimento de crimes contra os criminosos, estabelecendo crimes impunes entre os indivíduos. Grotius lembra, no entanto, algo característico do direito romano sobre os crimes de lesa-majestade, para os quais todos adquirem o direito de punir os infratores, como os salteadores e os desertores, mas que, por essa autorização legal expressa, agem, não como privados, mas como agentes públicos14.
Da isenção das penas e sua ponderação
É também pela natureza das penas que não é possível punir os atos interiores dos indivíduos, nem os atos exteriores próprios da inevitável fraqueza humana; em outras palavras, vai contra a natureza a punição irrestrita de todos os pecados, pois eles advêm da natureza livre e frágil do ser humano15. De modo semelhante, aquelas atitudes que não causam lesão à sociedade, para Grotius não podem ser punidas de acordo com o Direto Natural, como os vícios do indivíduo e suas condutas com ele mesmo ou contra a virtude, por exemplo.
É da natureza de toda a pena, portanto, que se deve ser passível de perdão pelo público, pelo ofendido ou pelo juiz, e que deve, sempre quando não for veramente necessária, liberada de sanção a “pessoa que se corrigiu por simples palavras ou que deu verbalmente satisfação ao lesado, de modo que não há mais necessidade de uma pena para obter esse fins”16. A pena sempre deve respeitar a tríplice utilidade – emenda, exemplo e proteção – ou deve se conceder o perdão. Nas palavras de Grotius:
“essas três coisas podem ocorrer ou a pena deve de modo absoluto ser infligida, como isso decorre nos crimes mais hediondos; ou não deve de modo algum ser infligida, como no caso em que o bem público exige que seja deixada de lado, ou ainda que uma e outra sejam permitidas”17.
A lei penal também deve conter os abrandamentos adequados e o intérprete deve usar da equidade como medida de ponderação à aplicação das penas
Da aplicação racional das penas
É essencial para o entendimento da aplicação das penas sob o Direito Natural de Hugo Grotius a consideração de dois pontos destacados pelo autor. O primeiro ponto se refere à “razão por que é o fato de ter merecido” punição, enquanto o segundo é relativo ao “fim pelo qual é a utilidade que se espera da pena. – Em suma – Ninguém deve ser punido mais do que merece”18. É daí que naturalmente advém o princípio da proporcionalidade na aplicação das penas.
Diante da ponderação penal deve-se levar em conta – como atenuante – que “não se é mal gratuitamente e [...] a maior parte dos homens é levada a fazer o mal pelas paixões. [...] Por isso é que as ações injustas que são cometidas para evitar a morte, a prisão, a dor ou a pobreza extrema parecem ordinariamente escusáveis no mais alto grau”19. Deve-se entender – como agravante – que a busca do prazer, da riqueza e da glória através do crime é sobremaneira mais perversa que aquela movida pelas paixões relativas ao medo e à fraqueza.
Os delitos devem ser considerados também em relação ao dano causado às vítimas, distinguindo-se os crimes consumados dos tentados, ou inacabados. Nas palavras de Grotius:
“A injustiça é tanto maior quanto maior for o dano a outrem. Por isso é que os delitos consumados ocupam o primeiro lugar e aqueles que, tendo-se estendido até alguns atos mas não foram levados até o fim, ocupam o segundo. Nestes últimos, há tanto mais criminalidade quanto mais longe tiver sido levado o ato20”
Os delitos mais graves, segundo o Direito Natural, são aqueles que atingem a ordem comum e prejudicam um grande número de pessoas, em seguida são aqueles praticados contra o indivíduo e, em relação a este, seguem-se em ordem os crimes contra a vida, depois aqueles referentes à família e, por último, os crimes sobre os objetos dos particulares. Além disso, agravam naturalmente a aplicação das penas a reincidência e as características subjetivas do réu, como
“a falta de respeito, por exemplo, para com os pais, a desumanidade para com seus parentes, a ingratidão para com seus benfeitores, [pois são] vícios que aumentam o delito. A perversidade se mostra também maior, se houver sido cometida reiteradas vezes a falta, porque maus hábitos são piores que os atos”21.
Também devem ser levadas em consideração as características e as condições do agente, pois “as crianças, as mulheres, os homens de espírito rude e aqueles que foram educados mal, conhecem menos as distinções entre o justo e o injusto, o que é lícito e o que é ilícito. [...] A juventude tem propensão para isso, a velhice para aquilo”22. Ainda a própria forma de punição deve variar de acordo com o sujeito que cometera o crime, pois “a mesma multa que sobrecarrega o pobre não onera o rico. A infâmia será para o vil um mal leve, mas um mal considerável para um homem de classe distinta”23.
Considerações finais
Ao desenvolver a discussão sobre a aplicação das penas Grotius volta à questão da função da guerra como medida de punição e reparação entre os Estados, o que leva ao debate sobre o Direito Internacional Público. No entanto, as considerações trazidas por Hugo Grotius no âmbito do Direito Penal possibilitam uma importante reflexão sobre os fundamentos desta área tão específica do Direito. Primeiramente chama atenção a defesa do Direito Natural, o reconhecimento da existência de um direito de punir e de proceder em relação à criminalidade independentemente de um sistema positivo de Direito ou de legislação penal e, em segundo lugar, a preocupação com a legitimação deste Direito Penal Natural através de bases racionais, respeitando princípios que devem poder ser deduzidos diretamente do pensamento racional, mas também levando-se em consideração a necessária reverência ao pensamento clássico e à tradição religiosa.
O estudo sobre o Direito Natural é relevante por um lado porque é fazendo-lhe referência que as ordens políticas fundam seus sistemas jurídicos positivos, e, por outro lado, porque é a partir dele que primeiro se pensou em diversos princípios hoje garantidos pelo Direito Penal moderno.
Quando Grotius faz referência às características das penas, às suas utilidades, à sua aplicação, em diversos momentos, é possível identificar o Direito vigente nas palavras do jurista holandês e na sua interpretação dos textos clássicos.
Como objeto de estudo para a História do Direito Penal a obra de Hugo Grotius é um importante registro do pensamento racionalista que influenciou amplamente, tanto os outros autores mais próximos ao Direito Penal, quanto aqueles voltados para o Direito Natural, sem falar do mais prestigiado por seus estudos, o Direito Internacional.
Dentre as suas contribuições para a construção do Direito Penal moderno estão as noções de utilidade, proporcionalidade e ponderação das penas, sem a vinculação destas à reserva legal para a sua aplicação.
Referências Bibliográficas
BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal, v. 1, ed. 13. São Paulo: Saraiva, 2008.
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. ed. 2. Florianópolis: Boiteux, 2007.
GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. v. 2, Ijuí: Unijuí, 2004.
LISZT, Tratado de Direito Penal Allemão. v. 1, Rio de Janeiro: Briguiet, 1899.
1 GROTIUS, p. 784.
2 Idem, pp. 784-5.
3 TERTULIANO apud GROTIUS, p. 785.
4 GROTIUS, p. 786.
5 Idem, p. 786.
6 Idem, pp. 788-9.
7 Idem, p. 792.
8 Idem, p. 794.
9 Idem, p. 795.
10 Idem, p. 796.
11 Idem, p. 797.
12 Idem, p. 805.
13 Idem, p. 820.
14 Idem, p. 822.
15 Idem, pp. 823-5.
16 Idem, p. 828.
17 Idem, p. 829.
18 Idem, p. 833.
19 Idem, p. 834.
20 Idem, p. 837.
21 Idem, pp. 837-8.
22 Idem, p.839.
23 Idem, p.843.