Aspectos históricos e normativos da proteção à criança enquanto sujeito de direitos

15/02/2019 às 20:24
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A abordagem dos aspectos históricos e normativos que oferecem proteção à criança enquanto sujeito de direitos.

A construção de uma proteção específica destinada à crianças e adolescentes, reconhecendo-os enquanto sujeitos em desenvolvimento, destinatários de direitos e proteção integral, foi marcado por um processo histórico de muita luta e de conquistas gradativas. Assim, para que se possa analisar o reconhecimento da criança e adolescente enquanto sujeitos de direitos, inclusive em relação à sua própria família (na condição de filho) temos que entender, inicialmente, a negação da infância e o exercício do que hoje chamamos de poder familiar.  Atualmente a designação “poder familiar” é atribuída ao exercício dos direitos e deveres atribuídos aos genitores, no tocante à pessoa e aos bens dos filhos menores (DIAS, 2009).
           Cumpre salientar que, o próprio uso do termo poder familiar é novo, decorrente da conquista do espaço da mulher em condição de igualdade ao marido, substituindo a expressão machista “pátrio poder” que referia apenas o pai na condição de detentor do poder decisório do lar, bem como da consolidação da condição de sujeito de direitos dos filhos desde a concepção. Nas palavras de Dias a expressão “Pátrio Poder” reporta à sua origem, no direito romano, que atribuía aos pais direitos absolutos e ilimitados para a organização familiar e sobre a pessoa dos filhos (DIAS, 2009).
           O sentido machista da expressão Pátrio Poder é dominante, pois apenas menciona o poder do pai com relação aos filhos. O Código Civil de 1916 assegurava o pátrio poder, exclusivamente ao marido como chefe da sociedade conjugal, somente na falta ou impedimento deste, é que a chefia da sociedade conjugal passava à esposa (BRASIL, 1916). A perversidade da discriminação na época era tão severa que, vindo a viúva a casar novamente, perdia o pátrio poder com relação aos seus filhos, independentemente da idade deles e, se passava, automaticamente, ao homem da casa, para poder adquirir a posição de detentora, teria ela que viuvar outra vez (DIAS, 2009).
          Com o advento do Estatuto da Mulher casada em 1962, (BRASIL, 1962) foi reconhecido, inicialmente, o pátrio poder a ambos os pais, mas era apenas exercido pelo marido com a colaboração da esposa, e se houvesse algum tipo de divergência entre os genitores, sempre prevaleceria a vontade do pai. A alternativa dada à mulher era recorrer-se da justiça, caso tivesse interesse. A promulgação da Constituição Federal em 1988 (BRASIL, 1988), promoveu uma ruptura interpretativa dos parâmetros que fundavam as relações familiares, especialmente entre genitores e filhos.

O texto democraticamente aprovado concedeu o mesmo tratamento ao homem e a mulher, assegurando-lhes direitos e deveres iguais em relação à sociedade conjugal, outorgando a ambos os genitores o desempenho do poder familiar com relação aos filhos comuns (DIAS, 2009).
A ideia de igualdade do exercício das decisões familiares, especialmente relacionadas às pessoas dos filhos foi retomada no texto do Estatuto da Criança e Adolescente (BRASIL, 1990) aprovado logo após a CF/88 em 1990, mantendo, porém, a designação “Pátrio Poder”. A designação perdurou até a aprovação da nova legislação civil, uma vez que o Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002), cuidadoso da igualdade constitucional já reconhecida, entre o homem e a mulher, preferiu denominar como poder familiar.

Já o projeto de Estatuto das Famílias prefere denominar “autoridade parental”, fugindo a ideia de poder que não deve existir no seio da família. As designações do exercícios decisórios no âmbito familiar seguiram o curso da história e trouxeram a necessidade da democratização das discussões na trajetória histórica da própria família (VENOSA, 2009).
Antes de 1900 o assunto “criança” era negligenciado pelos textos normativos brasileiros. Era assunto a ser tratado pelas famílias e pela Igreja. Para melhor compreensão dessa trajetória histórica de reconhecimento da criança e adolescente enquanto sujeitos de direitos, é preciso destacar que esta negligência da discussão no Brasil, segue o reflexo de um fluxo histórico internacional.
              Na antiguidade, os povos Romanos possuem registros de que o filho no contexto familiar era considerado um objeto de propriedade dos genitores. A família possuía o poder decisório, inclusive sobre a vida da prole no exercício de atos de correção de conduta. Apenas no Século II, sob a forte influência de Justiniano, houve limitação dos poderes do chefe de família, mitigando a atuação familiar em relação aos atos relativos à correção dos filhos (MADALENO, 2011).
O modelo romano era pautado pelo princípio da autoridade do poder familiar, que exercia uma incontestável chefia sobre todas as pessoas que fossem subordinadas a ele. O pai ocupava o lugar de senhor absoluto do lar, todos lhe deviam obediência, fosse esposa, filhos, netos, irmãos, clientes, libertos, escravos (MADALENO, 2011).
             A naturalização do poder decisório sobre a vida dos filhos admitia a possibilidade de venda dos filhos, de modo que, socialmente esta prática era aceita para suprir dificuldades e findar dívidas em benefício do grupo da família; ou ainda de entrega de um filho para compensar um dano, que este tenha causado prejuízo, como forma de quitação. Por fim, dentre as prerrogativas concedidas, acrescentava-se ainda, a faculdade de abandonarem o filho recém-nascido, cumprindo-lhe o direito de seleção, caso esse nascesse com alguma doença, por exemplo, uma criança débil (MADALENO, 2011).
           Com o advento do cristianismo como religião oficial do Estado Romano, ocorrem as primeiras mudanças nas leis despóticas de poder de mando sobre a vida e a pessoa do filho, sendo proibida a venda, a morte ou entrega do filho a um credor. No Brasil estas ideias produziram uma certa omissão na pronúncia do Estado acerca de suas crianças até 1900. No período do Brasil Colônia não havia políticas públicas de proteção aos menores, ficando aos cuidados da Igreja Católica a decisão sobre o cuidar destinado à população carente e às crianças expostas (abandonadas) na denominada “roda dos expostos” (MADALENO, 2011).
          O pensar da criança e adolescente enquanto sujeitos em desenvolvimento, destinatários de proteção em razão da sua condição em desenvolvimento, apenas teve início na Revolução Industrial (Século XVII) quando se observou a necessidade de uma regulamentação para o início das atividades no mundo do trabalho, que ensejou a fixação de jornadas de trabalho e idade mínima laboral em alguns países. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10/02/1948, pontuou, pela primeira vez, expressamente, em seu art. 251, a necessidade de proteção da maternidade e da infância (ONU, 1948).

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Os países signatários do texto, iniciaram a passos lentos sua discussão, que exigiu um olhar internacional específico, conforme se verá no próximo ponto da pesquisa.
Extenso tem sucedido o caminho histórico das instituições sociais da discussão do assunto em estudo, para que os adultos das sociedades ocidentais reconhecessem à criança, quanto a um sujeito bem como que possuía dignidade de pessoa. Sendo imperioso não salientar os marcos pioneiros desse reconhecimento 1 A Declaração Universal do Direitos Humanos, no art. 25 pontua expressamente que “2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.”
dos quais destacam-se Declaração Universal dos Direitos da Criança promulgada pela Organização das Nações Unidas, no anos de 1959, e a publicação do livro Philippe Ariès (1961), L’enfant et la vie familiale sous l’ancien régime. Entretanto há época foram motivos de várias críticas, ambos os textos instalaram discursos e práticas sobre a infância e as crianças contemporâneas (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).

O Autor Philippe Ariès ao inovar com a visão da infância com uma construção social, vinculada ao contexto social e do discurso intelectual, promove as bases para a transformação paradigmática proposta, nas décadas de 1980 e 1990, pelos estudos sociais sobre a infância ou sociologia da infância. Na verdade, refere-se a infância à condição de objeto legitimo das Ciências Humanas e Sociais, romper com o conceito de socialização da criança como até então era predominante tanto a Antropologia, Psicologia e na Sociologia, contemplar a criança como ator social (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).

A bem da verdade, o texto da Convenção internacional sobre os direitos da criança (ONU, 1989), o qual é um tratado que visa à proteção de crianças e adolescentes de todo o mundo, aprovada na Resolução nº 44/25 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, que trouxe maiores repercussões legislativas no Brasil, pois foi após esta que nosso Estado tratou de ratificar os direitos e garantias nela descritos na elaboração do art. 227 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), e a posteriori o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), o qual traz a inovação da representação da infância e dos direitos da criança (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).

É de bom alvitre destacar que a Convenção de 1989, em relação as declarações anteriores, acabou por inovar não somente em sua extensão por reconhecer como criança o menor de até 18 anos de idade, mas sim todas as garantias e direitos inscritas na Declaração dos Direitos Humanos, ou seja, pioneiramente fora outorgado àqueles com idade inferior a 18 anos, direitos de liberdade, os quais anterior a declaração, eram reservados tão somente aos adultos, frisou e reconheceu expressamente a mesma concepção do preâmbulo da Declaração dos Direitos da Criança: “a criança em razão de sua falta de maturidade física e intelectual, precisa de uma proteção especial e de cuidados especiais, notadamente de proteção jurídica apropriada antes e depois do nascimento” (ONU, 1959) (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).

Com o advento da Convenção dos Direitos da Criança está tornou-se o primeiro instrumento legal dedicado exclusivamente aos direitos atribuídos as crianças e aos adolescentes. Foi assinada por quase todos os países do mundo, com exceção tão somente dos Estados Unidos e a Somália, os Estados integrantes têm o dever de exprimir relatórios anuais pertinentes a atuação governamental, de diversos níveis, transcorrendo a respeito da defesa, promoção e proteção dos direitos da criança (CARNELOS; AMARAL, 2008).

Os relatório encaminhados serão analisados pelo Comitê dos Direitos da Criança, o qual é composto por dez membros eleitos a título individual, mas ao contrário do que se imagina, ao invés de emitir sanções, fará recomendações aos Estados, pois parti daí a índole e seriedade dos relatórios enviados, como não há intuito de sancionar, os governos não se omitem em relação ao envio destes, vez que poderão os Estados através desta pesquisa avaliar a atuação efetiva do governo nas áreas referentes às crianças e aos adolescentes, e assim, proceder com as devidas alterações em seu comportamento e ou área de investimento, sempre com o objetivo de promover mais auxilio (CARNELOS; AMARAL, 2008).

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Sobre a autora
Ariadne Carine Nunes de Souza

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Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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