1. A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO NON BIS IN IDEM
O reincidente específico no crime de tráfico de drogas não fará jus ao benefício do §4º do Art. 33 da Lei 11.343/06 o tráfico privilegiado, e ainda assim terá sua pena majorada tendo em vista o mesmo argumento fático já utilizado na dosimetria da pena. Seria esta uma violação do princípio do non bis in idem?
Recebida à denúncia pelo magistrado, o reincidente específico, de imediato não fará jus à aplicação do §4º do Art. 33 da Lei 11.343/06 (tráfico privilegiado), tendo sua conduta tipificada pelo Caput do mesmo artigo, isto tendo em vista o argumento fático da reincidência. Doravante, este mesmo argumento será alvo de nova apreciação quando, na segunda fase da dosimetria da pena o juiz elencar as circunstâncias que sempre agravam a pena, Art. 61, I do Código Penal.
De acordo com o atual entendimento dos tribunais de primeira e da jurisprudência, bem como é também o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça o redutor pode ser afastado com base até mesmo em inquéritos policiais em andamento, não havendo o que se falar em bis in idem. Entendimento este que claramente colide com os princípios mais básicos do direito penal.
Com a devida venha a este entendimento, a problemática surge quando o tráfico de drogas em sua modalidade privilegiada, além de possuir uma pena significativamente mais branda, diferente do Caput, não é considerado crime hediondo. Ou seja, sua inaplicação já se mostra extremamente gravosa ao réu que passará a ter sua pena compreendida entre 5 (cinco) e 15 (quinze) anos de prisão, e ainda terá sua conduta equiparada a crime hediondo. Como se não bastasse, o mesmo fato delituoso – leia-se: reincidência – será apreciado novamente majorando a pena e 1/6 na segunda fase da dosimetria da pena.
Resta por tanto observada violação ao princípio supramencionado que estabelece que ninguém poderá ser punido duas vezes pelo mesmo fato delituoso.
2. DA IMPORTANCIA DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO
Os princípios são normas. Esta afirmação trás profundas e relevantes implicações, pois, assim como as regras, com a evolução do direito foram reconhecidos os seus status de fonte do direito que além de atribuir valor à aplicação do ordenamento jurídico e possuírem ampla versatilidade funcional, estabelecem limites ou os ampliam de forma a substanciar e concretizar a justiça.
Muitas vezes estão implícitos e surgem do amadurecimento da aplicação de normas positivas que, com o passar dar gerações se consagram superando até mesmo os textos legais, agindo na sua formação, interpretação e em possíveis alterações. Todavia, este mesmo aspecto, faz com que, em poucas mas importantes ocasiões, passem despercebidos pelo aplicador e por décadas, de forma furtiva tenham sua operação mitigada.
Se são de inquestionável imprescindibilidade para a operação do direito e alcance da justiça das normas jurídicas como um todo, naquela que se denomina a ultima ratio, alcançam tamanha importância que não podem dar-se por satisfeitos com a mera sensação de justiça ou a simples satisfação da lei. Necessidade esta traçada por Luiz Roberto Barroso.
A partir do panorama traçado entre a lei positivada e os princípios consagrados do direito penal, resta analisar a aplicabilidade de certas normas que, a um olhar superficial, parecem plenas, todavia, ao analisar atentamente à luz dos princípios percebe-se o quão distante estava da justiça almejada.
3. DA REINCIDÊNCIA E A VEDAÇÃO AO DUPLO APENAMENTO
A reincidência, como prova da insuficiência das politicas reintegração social, valorada e apreciada para a não concessão de um direito somado ao agravamento da pena inerente à conduta que se deseja coibir. Neste plano acerta Rogério Greco ao afirmar: A reincidência é a prova do fracasso do Estado na sua tarefa ressocializadora. (GRECO, 2017, p.724).
Inúmeras são as ferramentas disponíveis ao Estado para efetivar a justiça almejada pela democracia. Em se tratando de Direito, os poderes Legislativo e Judiciário vêm amadurecendo ao longo dos anos, todavia em menor ritmo do que a sociedade.
Por tanto, imprescindíveis são os princípios que, no atual sistema jurídico brasileiro os princípios, assim como as leis em sentido formal, são fontes do direito, sendo responsáveis principalmente pela flexibilidade do ordenamento.
Ainda assim, seja por descuido do legislador ou pela própria complexidade do frágil liame estabelecido entre a justiça e a lei, observa-se a necessidade de ampliar ainda mais o alcance dos mesmos.
Ânsia esta diretamente ligada à própria finalidade do direito: a justiça, a equidade, a segurança jurídica e a dignidade da pessoa humana, ou seja, se por ventura a lei ou a aplicação da mesma se mostra injusta ou equivocada, deverá ser reformulada, não importa o qual consolidada esteja. Deveras, a própria segurança jurídica prescinde da característica mutável do direito, da possibilidade de se auto corrigir, e o Estado deve zelar de forma ativa para garantir a sua operação.
Não há dúvidas que atualmente é inaceitável que uma circunstância fática agravante funcione também como elemento constitutivo ou como qualificadora ou como majorante de um crime, isto fruto da inteligência de que uma mesma situação fática não deverá ser valorada mais de uma vez ou em mais de um momento para o estabelecimento do quantum da pena.
É certo também que tal preceito estende-se e por força da Súmula 241 do STJ a reincidência penal não pode ser considerada como uma circunstancia agravante e, simultaneamente, como circunstancia judicial. Porém, pertinente é a reflexão sobre o incremento do respeito à dignidade da pessoa humana na aplicação do direito penal.
Ora, como instrui Zaffaroni (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2015, p. 625) que o próprio instituto da reincidência colide com o princípio do non bis in idem, vez que o aumento de pena decorre de crime anterior, portanto, não estaria condizente com os princípios de um direito, a dupla valoração da reincidência seria uma latente violação não só a um princípio, mas a dignidade humana.
4. CONCLUSÃO
O crime de tráfico privilegiado representa a única modalidade do crime com uma pena mais branda. Porém ainda que o infrator não seja reincidente no mesmo crime, dificilmente será alcançado pela pena moderada, ora, os verbos do fato típico são praticamente impraticáveis sem que haja uma “mínima organização”: importar, exportar, vender, expor a venda, entregar, fornecer.
Vemos por tanto uma norma que nasceu com o nobre papel de distinguir perfis de traficantes a medida de suas condutas atuais e pretéritas, mas que não fora suficientemente técnica realizar tal distinção. Em vez disso trouxe uma série de graves violações de direitos e princípios constitucionais, sem falar que tal conduta do legislador não condiz com as atuais diretrizes do direito garantidor.
5. REFERÊNCIA
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Direito Penal do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2018.
BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 7ª ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2018.
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2013.
GRECO, Rogério, Curso de direito penal. 19ª ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2017.
MARTÍNEZ, Olga Sánchez. Los principios en el derecho y la dogmática penal. 1ª ed. Madrid. Editora Dykinson, 2004.
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva. 1994.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 1ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes. 1997.
SILVA, César Dario Mariano. Lei de drogas comentada. 2ª ed. São Paulo: Editora APMP. 2016.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Estructura básica del derecho penal. 1ª ed. Buenos Aires: Editora Ediar. Sociedad Anonima. 2009.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral, 11ª ed. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2016