A educação inclinada tão-só à reprodução de um modelo qualquer carrega, no seu próprio eixo, o gérmen do embrutecimento. Como tal delimita, gerando o empobrecimento da operatividade e da ação dialógica. É preciso, pois, "retomar-se a estimulação plena do exercício (atualização) das possibilidades implícitas no cérebro do homem." (LIMA, 1984, p. 137)
A prática da educação é princípio que permite à comunidade humana a conservação de suas peculiaridades biopsicossociais, entretanto, numa orientação epistemológica amplificada, traduzida no sentido de produção de formas melhores de existência humana. Nesse prisma, a educação dá combustão à coexistência, fato que o ser humano é um ser não só para si, mas para o outro.
Ao pensar práticas da vida e da educação, é critério necessário reconhecer feixes e faixas de conhecimentos como "impulsos formativos" a serviço da construção de pessoas que sejam capazes de autodeterminação e de uma convivência motivada pelo destino do consenso, numa dimensão local e global.
O Estado Democrático de Direito, distante dos Estados gregos, que não faziam distinção fundamental entre a moral e o direito, oferta ao educando um percurso próprio para adquirir o tônus de graduar-se à compreensão dos preceitos de direito, tornando-o competente para operar a argamassa produtora e aplicadora de regras jurídicas.
No entanto, para pensar o ensino do direito não podemos passar ao largo da noção da ação educadora. Dessa maneira, um encadeamento de questões surge no horizonte, não se podendo abafá-lo.
Qual é o papel do professor e qual sua importância na educação do futuro bacharel? Ele deve erigir no espírito deste um método que lhe permita tão-somente compreender códigos, enunciados e acórdãos? Como apresentar uma atividade curricular para que ela seja assimilável e transformadora pelo educando?
Paradigmas pedagógicos, função do educador, autonomia do educando retornam, produzindo angústias e dissimulações, impossível, contudo, não debatê-las quando o propósito baliza, no mesmo horizonte, os sinais evidentes de uma crise do ensino instalada na graduação de direito. Ensinar para quê? Ensinar para quem?
É interessante recordar, para o professor, uma questão enunciada por Fausto, que deve nos perturbar de maneira contínua, nas nossas idas e voltas, diante das aulas elaboradas, transmitidas e ainda em construção: "apesar de toda a nossa ciência e arte/não sabemos nada" (GOETHE, 1962, linhas 363-364).
Certamente a única medida pela qual poderemos ser julgados pelo outro – o ego-aluno – como por nós mesmos – o ego-professor –, é o grau em que ventilamos o saber e se, por força disso, plantamos sementes ou, mas pior, plantamos ventos...
As histórias da pedagogia podem nos orientar e inspirar, porém, cabe a cada um verificar no bojo das próprias intenções o porquê da teimosia em abraçar a docência e, diante disso, humanizar-se humanizando o outro, que se coloca diante de nós como alguém que necessita ser formado para, com discernimento, erigir por razões próprias o seu chamado vocacional.
Poderíamos falar da agonia do ensino do direito de várias maneiras.
A agonia erótica do ensino do direito ocorre quando o desejo de conhecer já vem castrado pela vida escolar pregressa, o que nos anula como professores... Nessa oportunidade, a força vital do aluno-calouro já foi reprimida e resta, no lugar, uma couraça-mente assistida pela máxima "eu só quero um diploma".
Na sala de aula descobrimos aquele que chega, de mente não-participativa, que urge ser despertado por e para nós, os professores. Dessa maneira, precisamos dar vida à personalidade de Fausto: ela "parece-nos familiar porque representa uma inquietação profunda em nosso íntimo" (HOLLIS, 1997, p. 47). Inquietos, poderemos promover ações que provoquem nele, no castrado-educando, o retorno à vida, enquanto nós, [re]apaixonados, seguiremos reinventando o discurso jurídico, apropriando-o àqueles que chegam embaçados pela letargia. Da paixão em nós, poderemos causar no aprendiz o desejo pelo gozo do direito...
A agonia estética do ensino do direito é provocada pela perda de uma visão sistêmica jurídica amarrada, nos moldes dos antigos, a uma idéia de beleza. A dogmática dissecou a poesia, desprezou a comédia e riu da tragédia. A Cidade Antiga está largada às traças e ninguém mais narra trechos da mitologia romana, do fogo que reuniu os deuses e atou a família. Poucos relatam a desobediência de Antígona e quem ouviu falar da Oração aos Moços? Como bem pontua Tercio Sampaio Ferraz Junior (2002, p. 257):
(...) de novo, o jurista e o artista no mesmo domínio público. É que o gosto discrimina, decide entre qualidades e talentos, como o senso de justiça examina e decide entre provas produzidas no contraditório. (...) ambos – o jurista e o artista – introduzem, no âmbito da verdade ou da qualidade e do talento, o fato pessoal, ou seja, conferem-lhe uma significação humana.
Sem o contraponto da beleza, o direito sucumbe ao cinza e isso é desanimador...
A agonia filosófica do ensino do direito pode ser reconhecida na aversão às práticas interpretativas e críticas das teorias que estruturarão, mais tarde, atitudes e decisões dos futuros juristas.
Um curso de Direito, como bem coloca Iglesias, "deve formar não um ‘despachante forense’, um ‘expert’ em apressar processos ou ainda um habilidoso descobridor de brechas legais, mas sim um profissional capaz de resolver conflitos sociais com justiça" (IGLESIAS apud ZERNERI, 1998, p. 24).
Negando o apreço por um modelo reflexivo e dialógico, a prova da OAB no Paraná configura-se como um retrocesso. Para testar a qualidade do futuro advogado, não é exigida nenhuma questão compromissada com a desenvoltura de capacidades interpretativas e críticas, à medida que exige do candidato a memorização em detrimento da aferição da habilidade analítica e da prudência do futuro advogado.
De outro lado, o que é estarrecedor, é tentar desvendar o propósito (paradoxal) da Ordem, quando em 1992, os membros da sua Comissão de Ciência e Ensino Jurídico, por unanimidade, "apontaram a formação do professor como um dos grandes problemas da má qualidade do ensino jurídico no Brasil" (ZERNERI, 1998, p. 30). Quais seriam, pois, as medidas usadas para avaliar o professor que ensina na sala de aula e os ‘especialistas’ responsáveis pelos arranjos das questões objetivas (gerais) e das questões subjetivas (o teor prático da prova), que compõem a primeira e a segunda fases da prova indispensável à obtenção da qualidade de advogado?
Ora, o que vale, segundo a leitura das últimas provas, é o literal armazenamento do texto codificado. Napoleão sorriria se vivo estivesse. O advogado foi reduzido, por força da própria OAB, à condição de um tecnólogo morno e apartado das demandas éticas e complexas de seu momento histórico.
A pergunta, então, é inescapável: a filosofia faz sentido no curso da Graduação quando se pretenda tão-somente a qualificação para o advogar? Nesse vão é perfeitamente justificado o descaso nutrido pelos professores de direito material e processual, com as devidas exceções, no que toca aos exageros, dizem eles, dos excessos de conteúdos filosóficos. Afinal, é coerente refletir sobre a Justiça em Aristóteles e recordar que uma ação justa não faz justo um homem?
A agonia política do ensino do direito, de outra vertente, é verificável quando o discurso jurídico adquire o status de neutralidade, restando apenas a imagem de um ícone amortizador de conflitos, no vento ácido da era da globalização, que agrega a informação e trabalha a partir de estruturas de exclusão/inclusão categorizadas que, aos distraídos, são desenvolvidas numa tessitura funcional de participação.
No viés do discurso jurídico "neutro", o que não pode ser rejeitado, pelo professor atento, é que tal direito, no escrito de Alysson Mascaro (2003, p. 91),
apenas procedimental é muito mais um direito de salvaguardas que propriamente consecução de fins. (...) Vira-se a página de um direito intervencionista, desenvolvimentista, para em seu lugar escrever uma nova página de um direito estéril e apenas garantidor do interesse do capital.
Para o educando bom seria reparar, pelas lentes do professor, o contraste nebuloso entre a ordem jurídica e os caprichos e as seduções da economia, que, elevada à condição de discurso político normatizado, passa à condição de vivente jurídico – norma no sistema de direito –, o que oculta os vestígios contrários à construção de uma cidadania justa, igual e solidária, que jaz enfeitando o Preâmbulo da Constituição de 1988.
Todavia, no fito de compreender o professor que ensina direito sorvendo a miopia pelo político, será que este não crê que o Poder Judiciário deveria tão-somente assumir a condição de prestador de serviços judiciários?
Já a agonia do ensino cultural do direito adquire outra nuance.
Todas as memórias das tradições mais diversas gravitam em torno de velhos temas: vida e morte, poder e tirania, justiça e injustiça. Estes pertencem ao legado humanitário e surgem na celebração de um contrato, na sala de aula, na dimensão axiológica do voto vencido de um desembargador.
Se dermos um passo atrás e notarmos a matriz caótica da história humana, será possível ler muitas perdas, muitas regressões, muitos erros e injustiças, no entanto, de forma indubitável, a ânsia por uma via que leve à maturidade social e à paz efetiva também permanece, apesar dos demônios da dúvida, do medo e da complexidade que nos colocou no centro e nas periferias do espetáculo virtual e transnacional do século XXI.
Uma parte crucial do problema desta época, não se pode desprezar, é compreender que, enquanto sujeitos que coexistem num mesmo espaço [real ou virtual], somos esmagados e estimulados, somos ouvidos e emudecidos, somos vistos e ignorados, o que lembra o velho dilema de Pascal: "Estou apavorado pelo silêncio eterno desses espaços infinitos".
Ora, as representações culturais forçadas, por exemplo, em uma dada sala de aula, adjetivadas pelo discurso unidimensional de um dogmático professor, estão em absurda discordância com o mundo real, que se revela fragmentado e, por isso, incompreensível à regularidade presente em qualquer discurso unívoco. E isso é profundamente ininteligível. Dessa maneira, é tacanho ensinar o direito apartado dessa(s) esfera(s) cultural(s) multifacetada(s), que rumina estéticas, éticas e pragmáticas variáveis e irreconciliáveis, pois, do contrário, a própria mensagem do direito e sua função como medium parecerá ininteligível.
Há docentes, no entanto, que insistem em ruminar o existir do direito justificado, por exemplo, no estado de natureza, quando o homem assumia a persona de bom selvagem. Enquanto professores, não podemos educar abafando a intuição evidente de que nossa era vive, apesar da barbárie, uma momentum de transição, o que recorda uma parte do discurso de Vaclav Havel, presidente da República Checa, quando, em 1994, foi à Filadélfia para receber a Medalha da Liberdade (1994):
(...) Esses são períodos em que todos os sistemas consistentes de valores entram em colapso, em que culturas distantes umas das outras em tempo e espaço são descobertas ou redescobertas... (...) [e] uma ordem nova e mais justa ainda não surgiu.
Certamente, na dimensão cultural, o professor de direito deveria ocupar-se em veicular uma mensagem jurídica que junto suspirasse as perplexidades desta época, não olvidando um conteúdo significativo de esperança. O futuro, afinal, coloca-se como possibilidade possível.
Finalmente, o problema epistemológico do direito.
Enquanto ação educadora, o drama central da agonia do direito é epistemológico. Teoricamente, portanto, é possível que o professor tenha mais "cartas" do que está usando. Assim, no sentido de constrangê-lo a usar outros segmentos da sua esfera cognitiva, é necessário resgatar a convicção de que a relação da mente humana [que ensina e que aprende: professor e aluno] com o mundo [o dado e o construído] não obedece ao dualismo, mas sim é orientado por um telos participatório.
Logo, o caráter descritivo do ordenamento jurídico e de seus atributos pode ser plenamente reconhecido se vivido e reconhecido na atuação criativa do espírito humano [região interior], porque estruturado pela contribuição subjetiva da mente, que é provocada pelo telos existente no mundo exterior [região exterior], numa atitude que conhece-reconhece-conhece inexaurível.
Ora, já sabemos que o pensamento humano não pode refletir uma conduta objetiva posta e acabada no mundo: é o avesso. Dessa forma, a epistemologia dualista que separa sujeito-objeto deve ser reinterpretada para dar azo a um outro paradigma azeitado por uma matriz cósmica, provocadora de um modo de ação que pense, por exemplo, o ordenamento normativo ligado a uma vida humana que, na esteira desse século, está religada a várias vidas, num eixo local [real/virtual] e universal [real/virtual].
Nosso tempo está lutando para dar lugar a um novo princípio: a cumplicidade. O professor e o aluno, relacionados, poderão integrar-se aos conteúdos prescritivos e descritivos no sentido de compreendê-los nas perspectivas individuais, locais, ecológicas, nacionais e transnacionais.
Ensinar o direito desprovido da ação que envolve outras ações, é dedicar-se ainda às premissas do velho sistema geocêntrico: idéias fixas, professor-centralizador e prazer fadado ao formol do autoritarismo que produz fanatismo e alienação e reproduz a ação educadora da vida escolar anterior ao vestibular, cuja luta tem um leitmotiv muito claro: matar o curioso que gostava de aprender sobre si e o mundo para ser, sendo, no mundo. Era uma vez... e ele esqueceu.
Ensinar o direito sem a compreensão da justiça e do direito – no vácuo da globalização e do discurso neoliberal – é deixar de perceber que o sentido do direito é para um intercâmbio jurídico local, nacional e transnacional. E mais. Isso implica interpretar o direito que, enquanto sinônimo de ordem, pode estar servindo à ordem de algum senhor, resistindo ao apelo da justiça. A ação educadora deve decifrar as antinomias e as anomalias presentes nos ordenamentos nacionais a fim de que o vírus da neutralidade presente no discurso do opressor possa, de fato, servir ao oprimido. Afinal, educa-se o futuro bacharel para quê? Como advoga Alysson Mascaro (2003, p. 37), "a luta pela transformação do direito, pois, não pode ser a luta pela ampliação das cortesias, mas sim a luta por uma casa para todos."
Conclusão
Podemos narrar para o calouro que chega à Academia as primeiras linhas da descida de Dante ao inferno: "A meio caminho da jornada da vida, encontrei-me numa mata escura, depois de ter perdido o meu caminho."
Escolher um curso implica o reconhecimento, ciente ou obscuro, que "é necessária a desconhecida passagem pelo currículo" para adquirir a competência para o exercício de uma profissão [escolha]. E estar perdido durante cinco anos nas teias da graduação supõe que, em última análise, ao final, alguém – o bacharel – irá fazer um retorno bem-sucedido às esferas privada e pública, passando a ter oportunidade de exercer a sua profissão com ânimo e crítica, sem o famoso drama cognitivo e existencial do "sexto ano".
Educar, pois, o aluno envolve algumas disponibilidades que devem compor a ação educadora sã do curso de Direito:
1. o professor deve sentir prazer em educar, buscando meios diversos de catarse e purificação, mantendo aceso o amor pela docência.
2. o professor não deve distanciar-se de um senso estético, habilitador para as preferências e o gosto. O justo, para ser reconhecido como um valor positivo, deve ser treinado e instigado.
3. o professor deve, a todo instante, perceber-se como cidadão e membro participativo de uma sala de aula. Não deve agir como um Robson Crusoé...
4. o professor deve incentivar as diferenças, fomentar os questionamentos e tentar minorar as desigualdades, revendo práticas e ofertando complementos que possam auxiliar aqueles alunos menos preparados para a disciplina, reconduzindo-os à condição de sujeitos capazes de absorver os conteúdos pedidos.
5. o professor não pode olvidar que ensina para a ação dialógica e para um cenário marcado pela idéia de ordens de realidade que se intercruzam: a realidade real e a realidade virtual.
6. o conhecer se faz na interação professor-aluno intermediados pelo horizonte do mundo. A ação educadora crivada pela dicotomia - separa sujeito-objeto – ou articulada no isolamento - sujeito afastado do mundo - condenar-se-á ao esquecimento.
7. o professor educa para o futuro e este se abre como um leque de possibilidades possíveis. Desse modo, para propor uma prática transformadora, deve o docente aquecê-la com a crítica, sem matar a esperança e a indispensabilidade da solidariedade. Do contrário, a justiça já nascerá apreendida agonizante. É preciso educar o opressor para que este deixe de sê-lo, segundo o princípio da cumplicidade, e educar o oprimido para libertá-lo, logrando exercitar, com êxito, sua coexistência, dando direção e significado ao paradigma participatório.
Aos olhos dos leigos a missão do professor, incompreendida, é simplesmente desconsiderada e seduzida pela arte de atacar. E por que ressangrar a ferida que não pára de sangrar?
Educar não pode ser uma perda de tempo. E se a vida é destino que se constrói com o nascimento e uma variedade de eventos, os estudos também participam disso. E o professor, movido pelo gosto de duvidar, poderia recolher-se à maestria do poeta Fernando Pessoa: Sê todo em cada coisa./Põe tudo que és no mínimo que fazes." – E sê plenamente professor.
Referências
GOETHE, Johann Wolgang Von. Faust. Nova York: Anchor, 1962, linhas 363-364. Tradução nossa.
HAVEL, Vaclav. Discurso. In: CERIMÔNIA DA MEDALHA DA LIBERDADE, 4 de julho de 1994, Filadélfia.
HOLLIS, James. Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna. Tradução Maria Silvia Mourão Neto. São Paulo: Paulus, 1997.
LIMA, Lauro de Oliveira. A construção do homem segundo Piaget. São Paulo: Summus Editorial, 1984
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito e filosofia política: a justiça é possível. São Paulo: Atlas, 2003.
SAMPAIO JUNIOR, Tercio Sampaio Ferraz. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Atlas, 2002.
ZERNERI, Márcio Barbosa. Ensino Jurídico: análise e perspectivas para um modelo atual: lições de ética e cidadania. Londrina: UEL, 1998.