6 O ISS E A LISTA DE SERVIÇOS
No que diz respeito ao conteúdo semântico da expressão "definidos em lei complementar", a doutrina se divide em duas correntes, uma, que defende uma interpretação literal do texto do direito, integrada por Baleeiro (1972), Machado (2003), Martins (2003) e Martins (2004), entendendo pela taxatividade da lista de serviços, de forma que somente poderiam ser tributados pelo ISS os serviços descritos na lei complementar que introduzisse tal lista no mundo jurídico, e outra, cujos expoentes são Ataliba (1999) e Borges (1975), Justen Filho (1985), Carrazza (1991), Barreto (2003) e Chiesa (2001), dentre outros, que defende, mediante uma interpretação sistemática, o caráter exemplificativo da lista, de forma que os Municípios poderiam instituir a cobrança do ISS sobre qualquer prestação de serviços, excluídos os de competência de outros entes.
A questão da taxatividade da lista de serviços deve ser interpretada de forma a não violar a autonomia municipal, decorrência direta do princípio federativo. (ATALIBA, 1987)
Princípios, segundo Carvalho (2002, p. 17), são:
"[...] "normas jurídicas" carregadas de forte conotação axiológica. É o nome que se dá a regras do direito positivo que introduzem valores relevantes para o sistema, influindo vigorosamente sobre a orientação de setores da ordem jurídica. [...] "princípio" é uma regra reportadora de núcleos significativos de grande magnitude influenciando visivelmente a orientação de cadeias normativas, às quais outorga caráter de unidade relativa, servindo de fator de agregação para outras regras do sistema positivo."
Além da interpretação, por veicularem normas de estrutura, estão em nível indiscutivelmente superior ao das normas jurídicas, uma vez que se dirigem à elaboração de outras normas, de modo que a sua violação, nas exatas palavras de Mello (1999, p. 630):
"[...] é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção a um princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais."
Portanto, podemos observar que princípios são comandos impregnados de valores, que irradiam efeitos para a interpretação de todo o direito positivo. Logo, o princípio federativo irradia seus efeitos como vetor de interpretação devendo ser observado quando da construção das normas jurídicas tributárias.
A competência tributária, distribuída pela Constituição Federal, não pode ser ampliada, diminuída ou anulada por Lei Complementar e aceitar a taxatividade da lista de serviços seria reconhecer que uma norma constitucional teve seu alcance diminuído por uma Lei Complementar.
Nas palavras de Fischer (2003, p. 121):
"[...] em momento algum podemos admitir que um ente federativo detenha o poder de amesquinhas a autonomia financeira de outro membro da federação. Se é certo que a federação não é um conceito lógico-jurídico, mas, sim, um conceito jurídico-positivo, não menos certo que sua acomodação em um ordenamento jurídico deve resguardar um núcleo normativo mínimo, a autonomia dos entes federativos."
7 A POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA
O assunto em análise foi objeto de diversas manifestações jurisprudenciais na década de 1990, que firmaram o entendimento dominante hoje no pela incidência do ICMS.
Da análise dos julgados da época, como por exemplo o Supremo Tribunal Federal nos RE 100.563-7, 107.770-1, 108.934-2 e o Superior Tribunal de Justiça, nos Resp. 15.447-SP e 10.388-DF, pode-se evidenciar um aspecto interessante:
Um dos fundamentos da decisão, como se pode verificar no RE 1.200 (89.0011254-6), menciona que, caso prevalecesse o entendimento pela não incidência do ICM, os restaurantes, bares, cafés e similares não seriam tributados em razão do serviço não estar previsto na lista de serviços.
Assim, utilizou-se de um argumento não jurídico para a construção de um entendimento que se apresenta totalmente contrário ao texto constitucional.
Trata-se de uma conclusão absurda, entender-se pela incidência de um tributo em razão de não poder incidir outro.
Por fim, cabe ressaltar a existência de diversas decisões judiciais de primeiro grau, como por exemplo no mandado de segurança n° 781/80, da 2ª Vara da Fazenda Estadual de São Paulo, apud Ichihara, (1979, p. 292/294), declarando a inconstitucionalidade do Art. 1°, III, do Decreto-Lei n° 406/608, em razão de submeter atividade atípica sob a incidência do ICM.
CONCLUSÃO
Como já mencionado anteriormente, quando se dirige até um restaurante o que se procura não é a mera aquisição de uma mercadoria, uma porção de arroz ou um suco, mas sim o que se procura é uma utilidade prestada pelo restaurante, a presteza dos garçons, os atributos do chefe de cozinha, a beleza do ambiente etc, onde a qualidade do serviço é fator determinante na escolha, de forma que apresenta claramente a existência de uma obrigação de fazer e não de uma obrigação de dar.
Cabe mencionar aqui as palavras de Carrazza (1989, p. 208), para quem:
"[...] a interpretação gramatical não é uma verdadeira interpretação; é um pressuposto de interpretação, é simples leitura de leigos. Nós só conseguimos discernis o singnificado, o conteúdo, o alcance de uma dada norma jurídica se a submetermos a uma interpretação sistemática; ou seja, aquela interpretação que leva em conta o ordenamento jurídico como um todo considerado."
Nas exatas palavras de Ortega y Gasset, apud Becker (1963), "Los lugares comunes son los tranvias del transporte intelectual". Assim, não devemos aceitar passivamente o que nos é imposto pela doutrina majoritária, mas sim utilizar esses conhecimentos para inicias "vôos mais altos".
A interpretação majoritária atual é flagrantemente contrária ao texto constitucional. Retirar dos municípios parcela de sua competência tributária é uma afronta ao princípio federativo, uma vez que estes já têm arrecadação tributária reduzida e cada vez mais insuficiente para manutenção das despesas básicas.
Não há como se tributar uma obrigação de fazer por meio do ICM. Resta clara a subsunção do conceito do evento tributário ao conceito do critério material do imposto sobre serviços.
Cabe aos operadores do direito empreender novos estudos nesta área, objetivando uma interpretação que adequada ao texto constitucional.
REFERÊNCIAS
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