5.PRINCÍPIOS.
5.1. O Princípio da Segurança Jurídica versus o Ideal de Justiça.
É fundamento do estado democrático de direito a segurança e estabilização das relações jurídicas por meio da imutabilidade das decisões judiciais (coisa julgada). O princípio da Segurança Jurídica tem como escopo a garantia dos direitos regularmente constituídos, que já integram a esfera patrimonial do titular da tutela judicial garantida.
O Princípio da Segurança das relações jurídicas não pode ser visto de forma absoluta. Não é possível conceber a eternização da coisa julgada contrária à Constituição Federal, ao único argumento de que a desconstituição das decisões fundadas em Lei declarada inconstitucional vem de encontro com o referido princípio. A Segurança Jurídica, todavia, está consagrada pela Constituição Federal no art. 5º, inciso XXXXVI: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Carlos Valder do Nascimento, sobre o tema, explicita:
"Havendo simetria entre a segurança e a justiça na perspectiva lógica da aplicação do direito, o conflito que se procura estabelecer é de mera aparência. De fato, inadmissível a segurança servir de plano de fundo para impedir a impugnação da coisa julgada, imutável, imodificável e absoluta, na percepção dos processualistas mais conservadora. Mas torna-se necessário enfrentar tais resistências, desmistificando a idéia de superação do Estado de Direito pelo Poder Judiciário".
O Ministro José Delgado, reforçando este entendimento, enfatiza:
"não protege a sentença judicial, mesmo transitada em julgado, que bate de frente com os princípios da moralidade e da legalidade, que espelhe única e exclusivamente vontade pessoal do julgador e que vá de encontro à realidade dos fatos".
O já referido autor Carlos Valder do Nascimento, dispondo sobre a coisa julgada inconstitucional, demonstra a harmonia entre a sua desconstituição e o princípio da segurança jurídica, com clara possibilidade de integração dos dois institutos, em consonância com a Carta Magna:
"Demais disso, o acatamento da coisa julgada, corolário da segurança jurídica, não é colocado em cheque pela probabilidade de uma pretensão de nulidade contra o julgamento violador de preceito constitucional. Primeiro, porque seu alcance sofre limitações no seu aspecto subjetivo, com a possibilidade de manuseio da rescisória, para desconstituição do julgado. Segundo, porque presente, nesses casos, os pressupostos da relatividade inerentes à natureza das coisas. De fato, inexiste a pretensa impermeabilidade que deseja se atribuir às decisões emanadas dos Poder Judiciário.
Tentem, os que assim pensam, travestir a coisa julgada da argamassa de intocabilidade, tentando revelar sua faceta de cunho absoluto dentro do cenário da principiologia lastreada no constitucionalismo. Distante desse panorama, toda iniciativa objetivando reverter essa situação não tem merecido o devido acolhimento pelos regratários a qualquer esforço renovador, visando ao aperfeiçoamento da sistemática até então adotada. Apesar de tudo, a mudança há de impor-se, com a remoção dos óbices que impedem ou limitam seu avanço".
No sentido da harmonização entre a segurança jurídica e a coisa julgada eivada de inconstitucionalidade, igualmente ensina Cândido Rangel Dinamarco:
"A coisa julgada material, a forma e as preclusões em geral incluem-se entre os institutos com que o sistema processual busca a estabilidade das decisões e, através dela, a segurança nas relações jurídicas. Escuso-me pelo tom didático com que expus certos conceitos elementares referentes a esses institutos; assim fiz, com a intenção de apresentar a base sistemática dos raciocínios que virão, onde porei em destaque e criticarei alguns tradicionais exageros responsáveis por uma exacerbação de valor da coisa julgada e das preclusões, a dano do indispensável equilíbrio com que devem ser tratadas as duas exigências contrastantes do processo. O objetivo do estudo é demonstrar que o valor da segurança das relações jurídicas não é absoluta no sistema, nem o é portanto a garantia da coisa julgada, porque ambos devem conviver com outro valor de primeiríssima grandeza, que é o da justiça das decisões judiciais, constitucionalmente prometido mediante a garantia do acesso à justiça (Constituição Federal, art. 5°, inciso XXXV)".
Esta posição também foi aceita pela Egrégia Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça em voto condutor proferido pelo Ministro José Delgado, que filiou-se à "posição doutrinária no sentido de não reconhecer caráter absoluto à coisa julgada". Acrescentou, ainda, que "a corrente que entende ser impossível a coisa julgada, só pelo fundamento de impor segurança jurídica, sobrepõe-se aos princípios da moralidade pública e da razoabilidade nas obrigações assumidas pelo Estado".
Ainda sobre o entendimento de Cândido Rangel Dinamarcosobre relativização da segurança jurídica, impõe destacar:
"Não há uma garantia sequer, nem mesmo a da coisa julgada, que conduza invariavelmente e de modo absoluto à renegação das demais ou dos valores que elas representam. Afirmar o valor da segurança jurídica (ou certeza) não pode implicar desprezo ao da unidade federativa, ao da dignidade humana e intangibilidade do corpo etc. É imperioso equilibrar com harmonia as duas exigências divergentes, transigindo razoavelmente quanto a certos valores em nome da segurança jurídica mas abrindo-se mão desta sempre que sua prevalência seja capaz de sacrificar o insacrificável.
Nesta perspectiva metodológica e levando em conta as impossibilidades jurídico-constitucionais acima consideradas, conclui-se que é inconstitucional a leitura clássica da garantia da coisa julgada, ou seja, sua leitura com a crença de que ela fosse algo absoluto e, como era hábito dizer, capaz de fazer do preto branco e do quadrado redondo. A irrecorribilidade daqueles resultados substanciais política ou socialmente ilegítimos, que a Constituição repudia. Daí a propriedade e a legitimidade sistemática da locução, aparentemente paradoxal, coisa julgada inconstitucional".
Isto posto, tem-se que a segurança jurídica não deve ser vislumbrada como fonte de se eternizar injustiças, mas como um instrumento pelo qual seja possível defender-se de decisões judiciais que ferem a Carta Maior. Desta forma, deve ser observada sobre um prisma maior: a própria garantia do Estado democrático de direito que busca a efetiva garantia dos preceitos constitucionais, mesmo que para isto haja que lançar mão da imutabilidade da coisa julgada. A segurança jurídica deve, então, ser manejada como mais uma forma de se evitar a coisa julgada inconstitucional, fazendo prevalecer os demais valores que ela representa.
6.A desconstituição da coisa julgada.
A maior preocupação da doutrina baseia-se na forma pela qual deve ser desconstituída a coisa julgada inconstitucional. Neste aspecto, existem entendimentos diversificados sobre quais instrumentos jurídicos devem ser manejados para a busca da referida desconstituição.
De início, vale ressaltar que a matéria ainda demanda grandiosos estudos pela doutrina e de soluções pela jurisprudência, acerca do caminho mais adequado para se atingir a certeza de que as decisões judiciais de desconstituição da coisa julgada inconstitucional não feririam a sistemática processual e constitucional do Brasil.
Os juristas Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Medina apresentam em sua obra a primeira solução (que não lhes pertence) para a desconstituição: a ação rescisória. Neste sentido, a sentença gera efeitos e é plenamente válida, sendo a rescisória o único remédio no caso de declaração posterior da inconstitucionalidade. "São dessa opinião Accioly Filho, Lúcio Bittencout e Alfredo Buzaid, que afirmam expressamente serem rescindíveis as sentenças proferidas com base em lei que, posteriormente, venha a ser declarada inconstitucional".
Apesar de citarem o supracitado posicionamento, Teresa Wambier e José Medina discordam dos eminentes juristas e lecionam:
"Portanto, segundo o que nos parece, seria rigorosamente desnecessária a propositura da ação rescisória, já que a decisão que seria alvo de impugnação seria unicamente inexistente, pois que baseada em ‘lei’ que não é lei (‘lei’inexistente). Portanto, em nosso entender a parte interessada deveria, sem necessidade de se submeter ao prazo do art. 495 do CPC, intentar ação de natureza declaratória, com o único objetivo de gerar maior grau de segurança jurídica à sua situação. O interesse de agir, em casos como esse, nasceria, não da necessidade, mas da utilidade da obtenção de uma decisão neste sentido, que tornaria indiscutível o assunto, sobre o qual passaria a pesar a autoridade de coisa julgada.
O fundamento para a ação declaratória de inexistência seria a ausência de uma das condições da ação: a possibilidade jurídica do pedido. Para nós, a possibilidade de impugnação de sentenças de mérito proferidas apesar de ausentes as condições da ação não fica adstrita ao prazo do artigo 495 do CPC".
Sendo assim, segundo a posição de Teresa Wambier e José Medina, a sentença fundada em uma lei, que posteriormente foi declarada inconstitucional, em sede de controle de constitucionalidade, é sentença inexistente, podendo ser impugnada a qualquer tempo, por meio de ação declaratória de inexistência de coisa julgada, pois a ela não se aplica o prazo preclusivo, previsto no artigo 495 do Código de Processo Civil.
A síntese do pensamento dos autores acima é fundada no fato de faltar no processo a causa de pedir, pois esta se funda em uma norma, e não existindo a norma, por ter sido esta extraída do mundo jurídico, deve-se o Poder Judiciário garantir a eficácia ex tunc, de todas as conseqüências da norma tida como inconstitucional, em sede de controle de constitucionalidade, de forma a garantir o estado das relações jurídico-sociais anterior à vigência da norma. Neste termos, estaria em plena harmonia com a Constituição, defendendo o perfeito funcionamento do Estado Democrático de Direito, por meio do amplo acesso à justiça, determinado pelo artigo 5, Inciso XXXV.
A inexistência da sentença sem fundamentação é afastada por Humberto Theodoro, seguindo o pensamento de Amaral Santos, já citado no presente estudo onde ensina:
"que a falta de relatório e motivação provocam a nulidade da sentença, por se tratar de requisitos essenciais do ato decisório. Mas acrescenta o mestre, é o dispositivo ou conclusão da sentença que reside o comando que caracteriza o ato judicial em tela. Por isso, mais do que nula, sentença sem dispositivo é ato inexistente – deixou de haver sentença."
Diante disso, observa-se que, se estamos diante de uma sentença, já acobertada com o manto da coisa julgada, consolidada com base em uma lei, que no momento do trânsito em julgado da decisão era vigente, esta decisão encontra-se em plena harmonia com o que prevê o artigo 458 do Código de Processo Civil.
Posteriormente, vem o Supremo Tribunal Federal em sede de ação direta de inconstitucionalidade, e declarar inconstitucional a lei na qual se fundou a sentença; estamos aí diante de uma sentença que não preenche os requisitos do artigo 458 do Código de Processo Civil, pois como já apresentado, em regra, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade são ex tunc, ou seja, retroativos, portando estamos diante de uma nulidade absoluta da sentença, conforme pensam Humberto Theodoro e Amaral Santos, na citação apresentada.
Partindo de uma análise fria dos preceitos processuais que regem a ação rescisória e coisa julgada, podemos achar que a coisa julgada inconstitucional tem uma aparência de coisa julgada e que sua desconstituição deve-se dar por intermédio da ação rescisória, com base no inciso V, artigo 585 do Código de Processo Civil. O que não é verdade, pois esta coisa julgada inconstitucional encontra-se contaminada com um vício absoluto, ou seja uma nulidade absoluta, primeiro por não ter a decisão um de seus requisitos, a fundamentação e segundo por estar de encontro com a Constituição; neste sentido é grandiosa a lição apontada por Paulo Otero:
"Admitir solução contrária, significaria reconhecer a autovinculação dos tribunais de um Estado de Direito democrático a actos inconstitucionais e a ausência de uma tutela processual eficaz contra as inconstitucionalidades do poder judicial".
Não se pode olvidar que a coisa julgada inconstitucional é nula e atacada não por ação rescisória, mas por ação declaratória de nulidade da decisão, a chamada querela nullitati; neste sentido, ensina Carlos Valder Nascimento:
"Não há como, pelo que se infere do exposto, convalidar sentença nula, notadamente contaminada pelo vício de inconstitucionalidade que não se subordina sua desconstituição ao manejo da rescisória. De fato, essa é a regra que prevalece no direito brasileiro, o que possibilita a reconhecer-se a ação de impugnação autonôma, tanto que a de incidentes de embargos à execução."
Sobre a nulidade da coisa julgada inconstitucional e de sua desconstituição por meio da ação autônoma de querela nullitatis acrescenta Carlos Valder que:
"A querela nullitatis foi concebida com o escopo de atacar a imutabilidade da sentença convertida em res iudicata, sob o fundamento, consoante Moacyr Amaral Santos, de achar-se contaminada de vícios que a inquinasse de nulidade, visando a um indicium rescinders. Este, uma vez obtido, ficava o querelante na situação de poder colher uma nova decisão sobre o mérito da causa. A decisão judicial impugnada de injustiça desse modo, posta contra expressa disposição constitucional, não pode prevalecer. Neste caso, configurando o julgado nulo de pleno direito, tem cabimento de ação própria no sentido de promover sua modificação, com vistas a restaurar o direito ofendido. Contradiz a lógica do ordenamento jurídico a sentença que, indo de encontro a Constituição, prejudica uma das partes da relação jurídico-processual.
São por conseguintes, passíveis de ser desconstituídas as sentenças que põem termo ao processo, por ter decidido o mérito da demanda, enquadrando-se também, na hipótese, os acórdãos dos tribunais. Isso se persegue mediante ação autônoma que engendra uma prestação jurisdicional resolutória da sentença hostilizava, [sic], cujo efeitos objetiva desconstituir. Nisso é que reside sua razão fundamental: anulação de sentença de mérito que fez coisa julgada inconstitucional."
Neste sentido, acrescentam Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro:
"A decisão judicial transitada em julgado desconforme a Constituição padece do vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos, lhe impõe a nulidade. Ou seja, a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades, os atos judiciais nulos independem de rescisória para a eliminação do vício respectivo. Destarte pode "a qualquer tempo ser declarada nula, em ação com esse objetivo, ou em embargos à execução" (STJ, Resp 7.556/RO, 3 T., Re. Ministro Eduardo Ribeiro, RSTJ 25/439)".
Ademais, vem sendo aceito pela jurisprudência pátria a ação rescisória para a desconstituição da coisa julgada inconstitucional; entretanto, não se pode ver essa aceitação como um valor absoluto, mais como uma aplicação do princípio da economia processual, uma vez que as nulidades absolutas podem ser reconhecidas de ofício pelo julgador e ser impugnadas a qualquer tempo. Também não implica de igual modo a observância do prazo de dois anos para sua impugnação (art. 495 do Código de Processo Civil).
Dessa forma, ensinam Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro, com base na doutrina de Paulo Otero:
"Deste modo a admissão da ação rescisória não significa a sujeição da declaração de inconstitucionalidade de coisa julgada ao prazo decadencial de dois anos, a exemplo do que se dá com a coisa julgada que contempla alguma nulidade absoluta, como é o exemplo o vício de citação".
Mais adiante acrescentam ainda que:
"Nada obstante e porque as nulidades podem ser decretáveis até mesmo de ofício, como é a hipótese da inconstitucionalidade, a eleição da via rescisória, ainda que inadequada, para a argüição da coisa julgada inconstitucional não importa na impossibilidade de conhecer-se do vício. O que se deve ter em mente é o fato de que a admissibilidade da rescisória, nesta hipótese, é medida extraordinária diante da gravidade do vício contido na sentença.
Os Tribunais, com efeito, não podem se furtar de, até mesmo de ofício, reconhecer a inconstitucionalidade da coisa julgada o que pode se dar a qualquer tempo, seja em ação rescisória (não sujeita a prazo), em ação declaratória de nulidade ou em embargos à execução.
A inconstitucionalidade direta da coisa julgada afasta o seu efeito positivo, de modo que ‘intentada uma ação que tenha como fundamento do pedido uma anterior decisão judicial transitada em julgado, o juiz só terá de decidir o novo pedido em conformidade com o caso julgado se este for conforme com a Constituição".
Consumados assim a nulidade da coisa julgada inconstitucional e o cabimento da querela nullitatis, uma outra hipótese é a da desconstituição por meio do manejo dos Embargos à Execução, onde o fundamento encontra respaldo na inexigibilidade do título judicial, por ser o mesmo eivado de nulidade absoluta, previsto no artigo 741, II do Código de Processo Civil.
Esta hipótese de desconstituição recentemente foi convalidada com a edição da medida provisória n. 2.180-35/2001, que acrescentou o parágrafo único ao artigo 741 do Código de Processo Civil, que apresenta a seguinte redação:
"Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal".
Com isso se convalida a tese de que a coisa julgada inconstitucional é nula na medida em que o legislador já decretou a inexigibilidade do título fundado em coisa julgada com base em lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Concluem, finalmente Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro que:
"Dúvida não mais pode subsistir que a coisa julgada inconstitucional não se convalida, sendo nula e, portanto, o seu reconhecimento independe de ação rescisória e pode se verificar a qualquer tempo e em qualquer processo, inclusive na ação incidental de embargos à execução".
Neste diapasão temos que a coisa julgada, com base em lei declarada inconstitucional, é nula de pleno direito. É que não está restrita ao manejo da ação rescisória e tampouco se submete ao prazo de dois anos para sua impugnação. Podendo ser desconstituída então a qualquer tempo, quer por ação autônoma, declaratória de nulidade da coisa julgada (querela nullitatis), quer em sede de embargos à execução.