Desconsideração da personalidade jurídica pelo Pregoeiro

Leia nesta página:

É possível a desconsideração da personalidade jurídica pelo Pregoeiro no curso da própria licitação?

 

1. AFINAL, O QUE É DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA?

 

Trata-se da possibilidade de afastamento temporário da autonomia e independência da pessoa jurídica, de modo a estender à outras pessoas físicas ou jurídicas os efeitos de eventuais sanções diante da ocorrência de desvio de finalidade, confusão patrimonial e/ou o próprio abuso das prerrogativas decorrentes da personalidade jurídica.

 

No âmbito das licitações públicas, o instrumento de “desconsideração da personalidade jurídica” se mostra essencial para impedir a contratação de empresa que se vale, de forma abusiva e fraudulenta, do “escudo” da autonomia jurídica para burlar sanções anteriormente aplicadas a outra pessoa jurídica.

 

No ordenamento jurídico brasileiro, há expressa previsão legal quanto à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil, havendo, ainda, a normatização específica de um "incidente de desconsideração" nos arts. 133 a 137 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).

 

LEI Nº 8.0748/1990 (CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR)

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

[...]

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

 

LEI Nº 10.406/2002 (CÓDIGO CIVIL)

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

 

2. HÁ BASE NORMATIVA PARA A APLICAÇÃO DO INSTRUMENTO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA?

 

Ainda que ausente a previsão expressa em lei, não poderia a Administração, em vista dos princípios da moralidade e isonomia, tolerar que uma empresa, atuando com desvio de finalidade, com abuso de forma e em nítida fraude à lei, participe de certames licitatórios e, caso sagre-se vencedora, seja contratada.

 

De todo modo, há expressa previsão legal quanto à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo: art. 14 c/c art. 5º, IV, “e”, da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção):

 

Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

[...]

IV - no tocante a licitações e contratos:

[...]

e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;

 

Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática de atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.

 

Como consolidação do entendimento acerca de tal possibilidade, destaca-se a previsão contida no art. 29 da Instrução Normativa nº 03, de 2018[1], da Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (SEGES/MPDG):

 

Art. 29. Caso conste na Consulta de Situação do Fornecedor a existência de Ocorrências Impeditivas Indiretas, o gestor deverá diligenciar para verificar se houve fraude por parte das empresas apontadas no Relatório de Ocorrências Impeditivas Indiretas.

§ 1º A tentativa de burla pode ser verificada por meio dos vínculos societários, linhas de fornecimento similares, dentre outros.

§ 2º É necessária a convocação do fornecedor para manifestação previamente à sua desclassificação.

§ 3º O disposto neste artigo deve ser observado quando da emissão de nota de empenho, contratação e pagamento, previstos nos arts. 28 e 29.

 

Para tanto, no âmbito das licitações eletrônicas, em especial aquelas realizadas no sistema COMPRASNET, a ferramenta “Ocorrências Impeditivas Indiretas” afigura-se como relevante para o desenvolvimento de uma atuação mais incisiva da Administração para coibir o abuso da personalidade jurídica nos certames e contratações.

 

3. O QUE SÃO AS “OCORRÊNCIA IMPEDITIVAS INDIRETAS” INFORMADAS NO SICAF?

 

A Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (SLTI/MPOG), em junho de 2015, implantou no âmbito do SICAF (Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores), a funcionalidade denominada “Ocorrências Impeditivas Indiretas”, que tem por objetivo alertar os Pregoeiros quanto à existência de membros em comum no quadro societário de empresas que tenham sido impedidas, suspensas ou declaradas inidôneas, nos termos da Lei nº 8.666/1993 e da Lei nº 10.520/2002.

 

Tal alerta é obtido a partir do cruzamento de informações existentes no próprio SICAF acerca da composição dos quadros societários de sociedades empresárias cadastradas no sistema.

 

Ao consultar a situação do fornecedor no SICAF, é informado ao Pregoeiro se há, a partir do número de CPF, alguma correlação de sócio(s) de uma sociedade empresária (CNPJ consultado) com o quadro societário de outra empresa cadastrada no sistema que possua algum tipo de sanção vigente consistente em impedimento ou suspensão do direito de licitar.

 

Em atenção à recomendação exarada pelo TCU no Acórdão nº 2.115/2015-Plenário[2], o alerta é emitido pelo SICAF mesmo que haja eventual alteração na composição societária posterior à data da aplicação da sanção. Ou seja, a funcionalidade “Ocorrências Impeditivas Indiretas” contempla todo o histórico de vinculação do CPF ao quadro societário das sociedades empresárias cadastradas no SICAF.

 

Cumpre ressaltar que a simples existência de “Ocorrência Impeditiva Indireta” não é, por si só, fundamento apto a ensejar o afastamento de determinado licitante do certame, porquanto a sanção de impedimento ou suspensão é aplicada a uma determinada personalidade jurídica (pessoa jurídica), inconfundível com a pessoa de seus sócios (pessoa física).

 

A bem da verdade, o alerta do SICAF constitui importante ferramenta para o Pregoeiro aferir, a partir das circunstâncias e indícios do caso concreto, se a criação da pessoa jurídica participante da licitação teve por propósito burlar uma sanção administrativa anteriormente aplicada.

 

Havendo elementos suficientes para configuração da fraude, a Administração Pública deve desconsiderar a personalidade jurídica e estender a sanção de impedimento de licitar e contratar à empresa cujo CNPJ consultado no SICAF, a princípio, se mostrava sem a referida apenação.

 

 

DICA!

 

Quanto às “Ocorrências Impeditivas Indiretas”, o SICAF alerta não apenas a existência de registro de sanção de impedimento de licitar (com fundamento no art. 7º da Lei nº 10.520/2002) como, também, a sanção de suspensão do direito de licitar (com fundamento no art. 87, III, da Lei nº 8.666/1993).

 

Conforme expressa dicção do art. 7º da Lei do Pregão, a sanção consistente no impedimento do direito de licitar surte efeitos apenas no âmbito interno do ente federativo que a aplicar (Acórdão TCU nº 2.242/2013 - Plenário). Assim, por exemplo, se for aplicado impedimento por parte do IBAMA, a empresa ficará impedida de licitar no âmbito de toda a União, abrangendo todo e qualquer órgão ou entidade da Administração Pública Federal.

 

No tocante à abrangência dos efeitos da suspensão do direito de licitar, há profundas divergências na doutrina e na jurisprudência. Afinal, a suspensão abrangeria toda a Administração Pública ou ficaria restrita ao âmbito do órgão ou entidade que aplicou a sanção?

 

TCU: a sanção de suspensão temporária produz efeitos apenas em relação ao órgão ou entidade sancionador (Acórdão nº 2.242/2013 - Plenário)[3].

 

STJ: a sanção de suspensão temporária não produz efeitos somente em relação ao órgão ou entidade que aplicou a reprimenda, mas a toda a Administração Pública, em todas as suas esferas federativas: União, Estados, DF e Municípios (RMS nº 32.628/SP).

 

Dessa forma, ao se deparar com um alerta do SICAF de impedimento indireto, deve o Pregoeiro aferir qual a natureza, o fundamento legal e o órgão/entidade aplicador da penalidade. Imaginemos a seguinte situação: em um pregão eletrônico realizado pela ANATEL, surge um alerta de impedimento indireto, sendo informado que a empresa que tenha relação de quadro societário com o participante do certame teve aplicada a sanção de impedimento de licitar pela Secretaria de Cultura do Município de Caxambu/MG. Nesse caso, a sanção surte efeito apenas no âmbito do ente federativo que a aplicar, no caso, os órgãos e entidades da Administração Pública do Município de Caxambu/MG. Logo, s.m.j., não seria o caso de aplicação do impedimento indireto, vez que, mesmo que a própria licitante tenha sido penalizada pela Secretaria de Cultura do Município de Caxambu/MG, não estaria impedida de licitar no âmbito da Administração Pública Federal.

 

Por sua vez, em se tratando de suspensão do direito de licitar, a extensão do impedimento indireto (via desconsideração da personalidade jurídica) irá variar a depender da corrente interpretativa adotada pelo Pregoeiro, se aquela defendida pelo TCU ou aquela defendida pelo STJ. Exemplo: em um pregão eletrônico realizado pelo MPOG, surge um alerta de impedimento indireto, sendo informado que a empresa que tenha relação de quadro societário com o participante do certame teve aplicada a sanção de impedimento de licitar pela EMATER/MG (autarquia estadual). Na hipótese de o Pregoeiro adotar a corrente do STJ, seria viável estender o impedimento indireto, porquanto a suspensão surte efeitos para toda a Administração Pública. Por sua vez, se adotado o entendimento  do TCU, como os efeitos da suspensão se restringem ao âmbito da EMATER/MG, não haveria lastro para extensão impedimento indireto.

 

 

4. É POSSÍVEL REALIZAR A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA A PARTIR DE UM CONJUNTO DE INDÍCIOS E PRESUNÇÕES?

 

Em atenção aos princípios da Administração Pública, em especial, a moralidade e isonomia, cumpre transcrever, a seguir, alguns trechos de acórdãos do TCU no sentido da possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica em situações em que restar configurado o propósito de burla aos objetivos da licitação e de afastamento das consequências da sanção aplicada a determinada empresa:

 

ACÓRDÃO TCU Nº 2.136/2006-1ª CÂMARA

9.7. com fundamento no art. 250, inciso III, do Regimento Interno/TCU, recomendar ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – MPOG que oriente todos os órgãos/entidades da Administração Pública a verificarem, quando da realização de licitações, junto aos sistemas Sicaf, Siasg, CNPJ e CPF, estes dois últimos administrados pela Receita Federal, o quadro societário e o endereço dos licitantes com vistas a verificar a existência de sócios comuns, endereços idênticos ou relações de parentesco, fato que, analisado em conjunto com outras informações, poderá indicar a ocorrência de fraudes contra o certame;

 

ACÓRDÃO TCU Nº 2.218/2011 – 1ª CÂMARA

Não raro, integrantes de comissões de licitação verificam que sociedades empresárias afastadas das licitações públicas, em razão de suspensão do direito de licitar e de declaração de inidoneidade, retornam aos certames promovidos pela Administração valendo-se de sociedade empresária distinta, mas constituída com os mesmos sócios e com objeto social similar.

Por força dos princípios da moralidade pública, prevenção, precaução e indisponibilidade do interesse público, o administrador público está obrigado a impedir a contratação dessas entidades, sob pena de se tornarem inócuas as sanções aplicadas pela Administração.

O instituto que permite a extensão das penas administrativas à entidade distinta é a desconsideração da personalidade jurídica. Sempre que a Administração verificar que pessoa jurídica apresenta-se a licitação com objetivo de fraudar a lei ou cometer abuso de direito, cabe a ela promover a desconsideração da pessoa jurídica para lhe estender a sanção aplicada.

Desse modo, não estará a Administração aplicando nova penalidade, mas dando efetividade à sanção anteriormente aplicada pela própria Administração.

[…]

O fato de um sócio ou um diretor de uma sociedade empresária fazer parte do ato constitutivo de outra declarada inidônea ou suspensa não significa, necessariamente, que foi constituída com o fim de fraudar. Para que seja possível presumir a intenção ilícita, é preciso que possua objeto social similar e, em acréscimo, sócios-controladores e/ou o sócios-gerentes em comum com a entidade apenada.

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ACÓRDÃO TCU nº 495/2013- PLENÁRIO

Ementa: recomendação à Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão no sentido de que:

a) desenvolva mecanismo, no âmbito do SICAF, que permita o cruzamento de dados de sócios e/ou de administradores de empresas que tenham sido declaradas inidôneas e de empresas fundadas pelas mesmas pessoas, ou por parentes, até o terceiro grau, que demonstrem a intenção a participar de futuras licitações;

b) oriente todos os órgãos/entidades do Governo Federal, caso nova sociedade empresária tenha sido constituída com o mesmo objeto e por qualquer um dos sócios e/ou administradores de empresas declaradas inidôneas, após a aplicação dessa sanção e no prazo de sua vigência, nos termos do o art. 46 da Lei nº 8.443/1992, a adotar as providências necessárias à inibição de sua participação em licitações, em processo administrativo específico, assegurado o contraditório e a ampla defesa a todos os interessados.

 

ACÓRDÃO TCU Nº 2.460/2013-PLENÁRIO

9.5. recomendar ao Departamento Nacional de Produção Mineral - Superintendência Pernambuco que, diante de atos, comportamentos ou conjunto de informações suspeitas por parte dos licitantes, verifique, junto aos sistemas Sicaf, Siasg, CNPJ e CPF, o quadro societário e o endereço dos licitantes com vistas a detectar a existência de sócios comuns, endereços idênticos ou relações de parentesco, o que, analisado em conjunto com as demais informações, poderá indicar a ocorrência de fraudes contra o certame;

 

ACÓRDÃO TCU Nº 1.831/2014-PLENÁRIO

A presente denúncia informa acerca de possível tentativa de burla à penalidade de inidoneidade para licitar com a Administração, aplicada à Adler Assessoramento Empresarial e Representações Ltda. pelo Governo do Distrito Federal (GDF), por meio da utilização de outra sociedade empresarial, pertencente aos mesmos sócios e que atua na mesma área.

2. De fato, a R.E. Engenharia Ltda. - ME possui a mesma composição societária que a Adler, como se verifica a partir das pesquisas feitas no CNPJ, autuadas sob as peças 5 e 6. Apesar de essa empresa ter sido criada em 2006, antes, portanto, da sanção de inidoneidade, efetivada em 11/08/2011 (peça 4), ela incorporou a Adler em 09/12/2011 (peça 9, p. 13), absorvendo todo seu acervo técnico, além de sucedê-la nos contratos em curso.

3. Obviamente, tal manobra teve a intenção de contornar o impedimento legal aplicado à Adler, devendo ser tolhida por esta Corte de Contas. A fraude, aqui, configura-se a partir da assunção do acervo técnico e humano e dos contratos da Adler pela R. E. Engenharia. A transferência de toda a capacidade operacional de uma entidade para outra evidencia o propósito de dar continuidade às atividades da empresa inidônea sob nova denominação.

4. O Tribunal, ao examinar, em ocasião anterior, matéria análoga, já havia se pronunciado sobre a irregularidade de tal tipo de operação, registrando na ementa do Acórdão 2.218/2011 - 1ª Câmara o seguinte entendimento:

"3. Presume-se fraude quando a sociedade que procura participar de certame licitatório possui objeto social similar e, cumulativamente, ao menos um sócio-controlador e/ou sócio-gerente em comum com a entidade apenada com as sanções de suspensão temporária ou declaração de inidoneidade, previstas nos incisos III e IV do art. 87 da Lei 8.666/1993."

5. A situação verificada nos presentes autos possui muito mais elementos de convicção acerca da existência de tentativa de burla ao disposto na Lei 8.666/1993 do que a hipótese delineada no acórdão mencionado.

6. Em meu modo de ver, três características fundamentais permitem configurar a ocorrência de abuso da personalidade jurídica neste caso:

a) a completa identidade dos sócios-proprietários;

b) a atuação no mesmo ramo de atividades;

c) a transferência integral do acervo técnico e humano.

7. Apesar de nossa legislação civil garantir às pessoas jurídicas existência distinta da de seus donos, tal proteção não abrange os casos de abuso, a exemplo de simulações que operam à margem da lei, como a aqui examinada. Sobre o tema, Marçal Justen Filho assim se pronunciou (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 13ª ed., pág. 799):

"Não se trata de ignorar a distinção ente a pessoa da sociedade e a de seus sócios, que era formalmente consagrada pelo art. 20 do Código Civil/1916. Quando a pessoa jurídica for a via para realização da fraude, admite-se a possibilidade de superar-se sua existência. Essa questão é delicada mas está sendo enfrentada em todos os ramos do Direito. Nada impede sua aplicação no âmbito do Direito Administrativo, desde que adotadas as cautelas cabíveis e adequadas."

8. Examinados, os argumentos apresentados pela R.E. Engenharia e por seu proprietários foram incapazes de afastar, após avaliadas as circunstâncias e os fatos concretos que orientaram os atos praticados, os indícios de que a incorporação foi realizada exclusivamente com o intuito de possibilitar a supressão da pena administrativa anteriormente aplicada. Assim, os efeitos da sanção de inidoneidade imposta à Adler devem ser estendidos à empresa que a incorporou, a R.E. Engenharia.

 

Com efeito, a possibilidade de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo já foi, inclusive, objeto de pronunciamento expresso do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sede do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 15.166/BA:

 

ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E

DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.

- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações (Lei n.º 8.666/93), de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.

- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.

 

Em acréscimo ao entendimento jurisprudencial mencionado, vale reiterar a existência de expressa previsão legal quanto à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo para o caso em análise: art. 14 c/c art. 5º, IV, “e”, da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção).

 

Destarte, constata-se que, diante de evidências flagrantes de burla à efetividade de sanção administrativa imposta, o TCU e o STJ reconhecem a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo mesmo sem haver previsão legal específica e sem pronunciamento judicial.

 

Para tanto, é necessário que reste demonstrado que a constituição de nova empresa teve o objetivo de burlar uma sanção imposta, com a finalidade de fraude aos objetivos da licitação.

 

5. PROCEDIMENTOS A SEREM OBSERVADOS PARA APLICAÇÃO DO “IMPEDIMENTO INDIRETO” NO ÂMBITO DA PRÓPRIA LICITAÇÃO

 

A intenção de fraudar à licitação, segundo o TCU e o STJ, é presumida quando uma empresa impedida de licitar e contratar com a União se reveste de outra, com a finalidade de retomar contratações com a Administração.

 

Na esteira da jurisprudência mencionada, quatro características fundamentais permitem configurar a ocorrência de abuso da personalidade jurídica neste caso:

 

a) a completa identidade dos sócios-proprietários;

b) a atuação no mesmo ramo de atividades;

c) a transferência integral do acervo técnico e humano;

d) data de constituição da nova empresa posterior à data de aplicação da sanção de suspensão/impedimento ou declaração de inidoneidade.

 

Ademais, outras circunstâncias podem robustecer o conjunto de indícios do abuso de personalidade jurídica, como:

 

- identidade (ou proximidade) de endereço dos estabelecimentos;

- identidade de telefones, e-mails e demais informações de contatos;

- existência de um mesmo representante/procurador/preposto entre as sociedades. 

 

Quanto à possibilidade de realização da desconsideração da personalidade jurídica e, consequentemente, a exclusão de licitante do certame, note-se que o TCU possui entendimento consolidado no sentido de que indícios vários e concordantes são aptos a evidenciar a prática de fraude à licitação, sendo, portanto, possível caracterizar a burla com base em conjunto de indícios[4].

 

Destarte, no bojo da realização do certame, antes mesmo da avaliação da proposta ou documentos de habilitação de empresa apontada com ocorrência de impedimento indireto no SICAF, deve o Pregoeiro realizar uma análise complexa da composição societária das empresas envolvidas, do objeto social constante dos contratos sociais e demais informações que possibilitarão uma conclusão sobre uma eventual tentativa de burla e fraude.

 

Em tal intento, sugere-se que o Pregoeiro, após apontar objetivamente o conjunto de indícios levantados, conceda à empresa em questão a oportunidade de se manifestar previamente sobre o assunto de forma a possibilitar a elucidação dos fatos.

 

Não sendo os esclarecimentos prestados pelo licitante suficientes para ilidir a presunção de fraude, o Pregoeiro, no seio da própria licitação, excluíra a empresa do certame, devendo, posteriormente, comunicar o fato à autoridade superior a fim de avaliação da pertinência de instauração de processo administrativo sancionatório por violação ao art. 7º da Lei nº 10.520/2002.

 

Com efeito, poder-se-ia advogar que o ideal seria a suspensão do processo licitatório para a instrução específica de procedimento incidental de apuração da burla e existência de fraude à licitação. Contudo, tal providencia poderia colocar em risco a necessidade pública de conclusão do certame e realização da contratação, mostrando-se, portanto, razoável, o afastamento cautelar do licitante para apuração da conduta em processo administrativo sancionatório, sem prejuízo à continuidade da licitação.

 

De tal modo, seria viável a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica durante o certame com fundamento no poder geral de cautela da Administração que, na Lei nº 9.784/1999, encontra expressa previsão no art. 45[5]

 

A seguir, apresentamos uma sugestão de roteiro a ser observado pelo Pregoeiro, no âmbito do sistema COMPRASNET, caso seja constatada, em pesquisa no SICAF, a ocorrência de “impedimento indireto”:

 

 

1º passo: a apuração de indícios de fraude à lei:

 

Em consonância com a jurisprudência do STJ (RMS nº 15.166/BA) e TCU (Acórdão nº 1831/2014-Plenário), uma vez constada a ocorrência de “impedimento indireto”, na fase de aceitação das propostas, o Pregoeiro examinará a existência de indícios que conduzam à presunção segundo a qual a empresa licitante foi constituída como forma de burlar eventual sancionamento de impedimento de licitar aplicado à outra pessoa jurídica com identidade de sócios, levando em conta os seguintes elementos:

 

- identidade dos sócios;

- similaridade de objeto social;

- data de constituição da nova empresa posterior à data de aplicação da sanção de suspensão/impedimento ou declaração de inidoneidade;

- similaridade de endereços e telefones;

 

2º passo: contraditório e ampla defesa no curso do pregão eletrônico:

 

Diante da ocorrência no caso concreto de grande parte dos elementos acima apontados que conduzam à presunção de tentativa de burla à sanção de impedimento/suspensão do direito de participar de licitações, o Pregoeiro registrará no chat, em termos objetivos, tais ocorrências.

 

Considerando que a “desconsideração da personalidade jurídica”, na ótica do STJ e TCU, demandam a observância do contraditório e ampla defesa, o Pregoeiro, após motivar a formação de sua convicção quanto à configuração da presunção de burla, enviará mensagem direta ao licitante em questão, conclamando-a a apresentar esclarecimentos até o prazo de 60 (sessenta) minutos, realizando, inclusive, a convocação de anexo a fim de que a empresa encaminhe a documentação que reputar necessária.

 

3º passo: análise das justificativas e documentos apresentados pela empresa:

 

Após a apresentação pela licitante das justificativas e documentos com o intento de afastar a configuração de presunção de burla, o Pregoeiro deverá, no campo de “Aceitação”, selecionar a opção “Em Análise” para o respectivo GRUPO/ITEM. 

 

A análise será realizada no curso da própria sessão de licitação, devendo o Pregoeiro ater-se às justificativas para o afastamento dos elementos tendentes a configurar a presunção de burla (identidade dos sócios; similaridade de endereços e telefones; similaridade de objeto social; data de constituição da nova empresa posterior à data de aplicação da sanção de suspensão/impedimento ou declaração de inidoneidade).

 

4º passo: desclassificação da empresa:

 

Caso se entenda que os argumentos apresentados pelo licitante foram incapazes de ilidir a presunção de burla, o Pregoeiro deverá realizar a desclassificação da empresa (como providencia acauteladora), registrando o seguinte motivo (máximo de 300 caracteres):

 

Afastamento cautelar, com base no art. 14 da Lei nº 12.846/2013 e no entendimento do STJ (RMS 15.166/BA) e TCU (Ac. 1831/2014-P), em razão do conjunto de indícios que conduziram à presunção de burla à sanção de impedimento de licitar, o que será objeto de apuração aprofundada em processo específico.

 

5º passo: instauração de processo administrativo para aplicação de penalidade:

 

Tendo em vista que a empresa declarou-se apta a participar do certame sem, de fato, ostentar tal condição (dada a configuração de burla à sanção aplicada e abuso de forma), deverá o Pregoeiro elaborar memorando relatando o fato  à autoridade superior a fim de que seja instaurado processo administrativo para aplicação de penalidade com fundamento no art. 7º da Lei nº 10.520/2002.

 

 

 

 


[1] Disponível em: <https://www.comprasgovernamentais.gov.br/index.php/legislacao/instrucoes-normativas/911-in-sicaf>

 

[2]1.6.2. Determinar à Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (SLTI), com fulcro no art. 250, II, do Regimento Interno/TCU, que proceda aos ajustes necessários na recém-implantada ferramenta do Sistema Comprasnet (Ocorrências Impeditivas Indiretas), de modo a evitar que eventual alteração na composição societária posterior à data da aplicação da sanção impeça a identificação da tentativa de burla à penalidade aplicada, informando ao TCU, no prazo de 15 dias, as medidas adotadas”.

[3] Cumpre ressaltar que no âmbito da Administração Pública Federal vinculada ao Poder Executivo deve ser adotada a interpretação dos efeitos restritos da suspensão tendo em vista o que consta do §1º, art. 34, da Instrução Normativa SEGES/MPDG nº 03/2018, que estabelece normas para o funcionamento do SICAF no âmbito dos órgãos e entidades integrantes do Sistema de Serviços Gerais (SISG):

 

Art. 34. São sanções passíveis de registro no SICAF, além de outras que a lei possa prever:

[...]

III – suspensão temporária, conforme o inciso III do art. 87 da Lei nº 8.666, de 1993;

[...]

§ 1º A aplicação da sanção prevista no inciso III deste artigo impossibilitará o fornecedor ou interessado de participar de licitações e formalizar contratos, no âmbito do órgão ou entidade responsável pela aplicação da sanção.

[4] Nesse sentido: Acórdãos nº 560/2016, nº 834/2014, nº 888/2011, nº 1.433/2010 e nº 720/2010, todos do Plenário.

[5] Art. 45. Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.

Sobre o autor
Victor Aguiar Jardim de Amorim

Doutorando em Constituição, Direito e Estado pela UnB. Mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Coordenador do Curso de Pós-graduação em Licitações e Contratos Administrativos do IGD. Professor de pós-graduação do ILB, IDP, IGD, CERS e Polis Civitas. Por mais de 13 anos, atuou como Pregoeiro no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (2007-2010) e no Senado Federal (2013-2020). Foi Assessor Técnico da Comissão Especial de Modernização da Lei de Licitações, constituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 19/2013, responsável pela elaboração do PLS nº 559/2013 (2013-2016). Membro da Comissão Permanente de Minutas-Padrão de Editais de Licitação do Senado Federal (desde 2015). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA). Advogado e Consultor Jurídico. Autor das obras "Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência" (Editora do Senado Federal) e "Pregão Eletrônico: comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019" (Editora Fórum). Site: www.victoramorim.com

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