Torna-se conveniente a aplicação de dois conceitos relevantes para a análise da evolução constitucional de diversos países do mundo, sobretudo os pertencentes à América Latina, bem como alguns países da Europa, sendo eles o desenho institucional e o constitucionalismo abusivo. Vale ressaltar que a aplicação desses conceitos caracteriza-se por ser inversamente proporcional, fato que será exemplificado adiante.
O desenho institucional consiste no melhor sistema para, de certa forma, fazer a Constituição funcionar. Ou seja, seria o melhor desenho institucional que possui uma certa potencialidade para contribuir para uma maior efetividade constitucional, possuindo forte relação com a democracia. Além disso, os desenhos constitucionais mais estáveis são os que fão maiores garantias àqueles que mais os sustentam. Dessa forma, ao definir esse conceito, é possível relacioná-lo com sistemas de governo, sendo eles, por exemplo, o presidencialismo, sistema da América Latina, as configurações particulares e o parlamentarismo.
Já ao se falar em constitucionalismo abusivo, decorre-se sobre certas mudanças constitucionais formais, como emendas constitucionais ou substituição de Constituições, ou informais, em busca do desmembramento da democracia. Diversos teóricos, tais como David Landau e Roberto Gargarella trabalham com esse conceito, aplicando-o no contexto constitucional de vários países, sobretudo, os que compõem a América Latina.
Primeiramente, considera-se que essa espécie de constitucionalismo é caracterizada, precipuamente, por "neutralizar" os partidos de oposição, de modo a dificultar a alternância de governos, fato que causa controvérsias à ordem democrática. Diante disso, seria, basicamente, um fenômeno que é utilizado para manter diante do governo uma determinada autoridade por tempo indeterminado, a partir de instrumentos de reforma (emendas constitucionais) ou renovação constitucional (substituição das Constituições), os quais são vistos, em um primeiro momento, como meios democráticos, mas que, na realidade, fortalecem o seu poder.
Em exemplo do exposto, as emendas constitucionais poderiam ser citadas como instrumentos de reforma que facilitariam a propensão do constitucionalismo abusivo, justamente pelo fato este possibilitaria a alteração dos elementos constitucionais segundo os preceitos fixados pela própria Constituição. Cada alteração acarretaria em um conjunto mais amplo que afetaria a força normativa do constitucionalismo. Em correlação, os regimes, ao controlarem os fenômenos que principiam a substituição constitucional conseguem propiciar uma nova forma à ordem constitucional de modo a satisfazer os seus próprios interesses. Resultanto, portanto, em um constitucionalismo abusivo.
Ademais, no que tange às mudanças constitucionais informais, fala-se de fenômenos em que não há a alteração no texto da Constituição, porém, há modificações em relação à sua interpretação, ao seu sentido e ao seu alcance.
Nessa conjuntura, David Landau considera que os governos que se utilizam destes meios para se perpetuarem em posição de autoridade estatal (tanto pelo prolongamento de seus mandatos, quanto pela diminuição dos outros poderes) possuiriam uma certa pretensão autocrática diante de um contexto, em prevalência, democrático.
Em sequência, tal estratégia seria considerada perspicaz, uma vez que ainda há eleições para ascensão governamental, apesar de serem menos democráticas e, por isso, não podem ser considerados amplamente como governos autoritários. Por conseguinte, os instrumentos democráticos tornam-se, em sua maioria, ineficientes, e dão espaço a estratégias consideráveis do constitucionalismo abusivo. Isto posto, Landau considera uma comparação em que, em um pólo, tem-se a democracia pura e, no outro, o autoritarismo completo. O constitucionalismo abusivo estaria concentrado em meio a essas duas concepções, sendo considerado, pelo autor, como um tipo híbrido de constitucionalismo. Assim sendo, os regimes híbridos basicamente autoritários passaram a ser denominados de autoritarismos competitivos ou autocracias eleitorais, de forma a elencar aspectos democráticos e autoritários em um único conceito.
É crível que há uma relação inversa entre os conceitos de desenhos constitucionais e constitucionalismo abusivo. Essa relação se fundamenta, basicamente, no fato de que quanto mais se segue o desenho institucional, menos abusivo o constitucionalismo se torna e o regime, mais próximo da democracia se encontra. Portanto, direcionando-se ao desenho institucional, não é tão necessária a adoção de mecanismos formais e informais de reformas constitucionais, de modo que o controle de um regime sobre a sua posição de autoridade torna-se cada vez menor, abrindo, consequentemente, um espaço maior para a democracia. Portanto, é cabível dizer que desenhos constitucionais importam.
Em detrimento disso, como no texto "Poland's government is putting the courts under its control: The question is whether the EU will do anything about it", extraído do The Economist, um exemplo oportuno de autoritarismo vedado é o da Polônia. A partir do momento em que o partido governista Direito e Justiça (PiS) é eleito, há diversas mudanças que se adequam a tal classificação. Desde então, o judiciário passa por certa politização, levando a população a acreditar que os três poderes estariam nas mãos do governo. Tal fato teria ocorrido por conta de algumas emendas constitucionais que tornaram esse processo possível. Percebe-se que dificulmente há uma condução a um desenho institucional, de modo que a consideração de um autoritarismo velado é existente. Não só na Polônia, mas também na Hungria, o constitucionalismo abusivo é expresivo ao considerar que o seu Primeiro-Ministro autocrático busca fazer mudanças constantes no texto constitucional, com o objetivo de afastar possíveis contraposições às suas decisões.
Em análise análoga em relação ao apresentado com o contexto constitucional da América Latina ao longo dos anos, há uma forte presença dos instrumentos de reforma constitucional, sobretudo, as substituições de Constituições, de modo que, no Brasil, por exemplo, houve sete Constituições até a atual. Expondo um encadeamento histórico, a América Latina, em determinado momento, é marcada por ditaduras militares, as quais se caracterizaram por abusos e violações aos direitos humanos, que em seguida tendem a conquistarem regimes não democráticos e, por fim, caminham em busca de uma mudança constitucional, ensejando a valorização dos processos democráticos. Para tal efeito, muitos países passam a adotar as "cláusulas da democracia", de maneira que as novas Constituições passaram a reconhecer os direitos sociais e civis, principalmente em um contexto dos golpes presentes na década de 60, como ocorreu na Venezuela.
A partir dessas cláusulas democráticas, cria-se uma nova forma de constitucionalismo que visa um novo modelo de Estado com uma maior participação dos povos que compõem a sociedade, com certa valorização dos direitos humanos nos novos textos constitucionais. Contudo, paralelamete a isso, há uma exacerbação do presidencialismo e, consequentemente, uma forte ascensão do Poder Executivo. Isso gera, em diversos países da América Latina, a destreza das reeleições presidenciais. Em detrimento disso, passa-se a verificar uma espécie de hiperpresidencialismo, o qual, de forma genérica, adota medidas, como prebiscitos e referendos, com o objetivo de controlar o Poder Executivo. Tais medidas passam a ser utilizadas pelos governos para instituir controles autoritários disfarçados de comportamentos democráticos como acontece, por exemplo na Venezuela, a qual rompe com o modelo anterior de Estado e apresenta uma maior convergência de objetivos a serem alcançados pelo novo constitucionalismo, fato que é frustado por este ser de caráter abusivo.
Em um primeiro momento, enfatizando o ocorrido na Venezuela, é notável a participação popular, bem como a preservação dos extensos poderes do executivo. Nesse caso em específico, observa-se o constitucionalismo abusivo pela via da substituição constitucional. No contexto da década de 90, o até então presidente Hugo Chavez, em busca de neutralizar a resistência de sua oposição, propõe uma Assem bleia Constituente, a qual, em sua maioria, era composta por partidários similares a ele. A primeira medida a ser tomada, foi a dissolução do Congresso e o fechamento da Suprema Corte, caracterizando fortemente a redução da perspectiva democrática que deveria estar presente neste momento. Determina, por fim, as regras de eleição da Assembleia, o que favoreceu o seu partido, e, por meio da nova Constituição, pôde intensificar o poder do Executivo e consolidar-se no poder. Vale ressaltar que o modelo venezuelano chavista passa a ser presente por grande parte da América Latina como, por exemplo, na Bolívia e no Equador.
Contudo, atualmente, visando criar um novo modelo de Estado em que há, de fato, a valorização do poder popular, a Venezuela bem como outros países criam novos textos constitucionais em um movimento chamado de Novo Constitucionalismo Latino Americano. Democraticamente eleita pela última vez, a Constituição venezuelana torna a Assembleia Nacional um órgão legislativo. Logo, seu atual presidente deve reconhecer os resultados que propiciaram a presença de certa oposição, ainda que seja perseguida. Em contrapartida, a Constituição da Venezuela é uma das mais enfáticas quando se trata do interesse e direito de participação popular. É pontualmente por este fato que a contradição se torna presente no que se refere à expansão do poder presidencial. Por conseguinte, o hiperpresidencialismo torna-se responsável por interferir na participação popular e nos direitos sociais, bem como por investir em fortalecer-se. Isso é perceptível no atual contexto da Venezuela, em que o seu presidente, Nicolás Maduro busca minimizar a participação efetiva de partidos oposto ao seu partido dominante. Logo, a partir disso, nota-se um sistema de freios e contrapesos bem reduzido em relação ao que se espera da separação dos poderes.
À vista disso, a execução de determinados direitos assegurados constitucionalmente pelo, então, constitucionalismo latino americano, tende a valorizar a participação popular, ainda que haja controvérsias, uma vez que há centralização de poder, a qual tende a comprometer a efetividade dessa participação. Torna-se cabível comparação com o exposto por Roberto Gargarella, o qual considera que, antes de promover reformas no que se trata dos direitos, é necessário que se produza mudança na parte que prevê organização do poder, evitando, assim, o constitucionalismo abusivo.
Referências:
. LAW, David S.; VERSTEEG, Mila. Sham Constitutions. California Law Review, v. 101, p. 863-952, 2013.
. LANDAU, David. Abusive Constitutionalism. U.C.D. L. Rev, v. 47, n. 189, p. 189–260, 2013.
. GARGARELLA, Roberto. La Sala de Máquinas de la Constitución. Buenos Aires: Katz Editores, 2014 (Caps. 8, 9 e 10).
. Constituição, Poder Constituinte e Bolivrianismo: Bolívia, Equador e Venezuela e as estratégias presidenciais. Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10674/Constituicao%2C%20Poder%20Constituinte%20e%20Bolivarianismo%20-%20Joao%20Paulo%20Vergueiro.pdf>
. Constitucionalismo, Autoritarismo e Juristocracia. Disponível em: <https://jota.info/artigos/constitucionalismo-autoritarismo-e-juristocracia-03112017>