O uso absusivo da força, além de ser desumano, é inconstitucional e criminoso

01/03/2019 às 21:18
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Uma breve análise do que se entende hoje por uso de força e emprego de algemas, com comentários acerca do caso de Crispim Terral, que foi retirado, com truculência, de uma agência da Caixa por um Policial Militar, tendo o gerente pugnado por algemas.

“Pra mim ele tem que sair daqui algemado”, dizia o gerente da Caixa Econômica Federal, em lamentável e recente episódio envolvendo um empresário negro e a Polícia Militar. Em resposta, o policial empregou força absurda para retirar do banco Crispim Terral, sujeito que só queria resolver sua situação financeira. No ocorrido, o empresário estava em pé, sem agredir quaisquer pessoas ali presentes e tentando conciliar o cenário. Será que isso justificaria o uso de algemas ou um “mata-leão”?

 No presente e breve artigo, serão analisados os critérios para o uso da força e de algemas, contidos nos direitos e garantias constitucionais e convencionais atinentes à tutela da liberdade de locomoção, à luz da Súmula Vinculante nº 11, do STF, e ditames legais.

I) Injustificável, ilegal e inconstitucional

 Antes de qualquer conversa, é necessário preceituar que as regras contidas nas leis brasileiras para presos são aplicáveis àqueles que estão sendo conduzidos por policiais, já que é situação menos grave, portanto aplica-se tratamento, no máximo, igual a do preso. Trata-se de interpretação extensiva do conceito de preso constante no Art. 285 do Código de Processo Penal.

 Isso posto, busca-se analisar, de modo teleológico, finalístico, a atmosfera da disciplina constitucional e processual da prisão e da condução da pessoa. A Constituição da República, no seu Art. 5.º, inc. XLIX, entabulou a regra geral de respeito à integridade física e moral dos encarcerados. Na mesma senda, o Código de Processo Penal, em seu Art. 284, foi além e especificou que não é permitido o emprego de força, exceto se na ocasião for indispensável, no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.

 Ora, pela mera análise dos dispositivos supracitados, sabemos que absolutamente ilegal o ato do policial, que utilizou um “mata-leão” para conduzir Terral, na presença de sua filha, de 15 anos. Por analogia, o emprego de algemas também é inconstitucional, já que constitui um meio severo de emprego de força, sobretudo para uma pessoa que não apresentava qualquer nível de periculosidade.

 Sobre o tema, Guilherme Nucci é pragmático.

Tem-se assistido a autênticos espetáculos de violência (no mínimo, imoral), por ocasião da realização de prisões de pessoas em geral, disseminando-se o uso das algemas como se esta fosse a regra – e não a exceção. Algemar alguém configura nítido emprego de força, o que o art. 284 do CPP veda, como regra, para a efetivação da prisão.
[...]
Pessoas idosas, agentes de delitos não violentos, enfermos, enfim, muitos réus estão sendo algemados somente para dar uma satisfação à opinião pública, com a deprimente sessão de fotos e filmagens do ato.

 O uso de algemas e uso desproporcional da força, portanto, violam os artigos supracitados, mas, mais ainda, um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, o da dignidade da pessoa humana. O nosso próprio STF, cúpula máxima do judiciário brasileiro, em sua jurisprudência, reitera o caráter excepcionalíssimo do uso de algemas e da necessidade de uso proporcional da força nas abordagens policiais.

 Nesse sentido foi o julgamento do HC 91.952, no qual o relator, Ministro Marco Aurélio, deixou cristalino que não só é absurdo e inconstitucional o uso da força com arbitrariedade, como retrógrado, já que o Código de Processo Criminal do Império - de 29 de novembro de 1832 – já previa que “se o réu não obedecer e procurar evadir-se, o executor tem direito de empregar o grau da força necessária para efetuar a prisão, se obedecer porém, o uso da força é proibido”. Na mesma esteira caminha a lei subsequente (até as para militares), no sentido do juízo de necessidade e proporcionalidade do uso da força.

 Corroborando o julgamento acima e muitos outros - bem como por conta da alteração do Art. 474, § 3.º, do CPP, em 2008, relacionada ao uso de algemas no plenário do júri - o Supremo editou a Súmula Vinculante nº11, a vigorar com a seguinte redação:

Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio defuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

 Sendo assim, mostra-se mais que desnecessário o “mata-leão” do policial e o pedido do gerente para uso de algemas, já que não houve, pelo que foi apresentado, qualquer resistência por parte do empresário, bem como, ao que parece, no evento todo estava se buscando uma conciliação, abruptamente interrompida pela declaração do gerente que não negociaria “com esse tipo de gente”.

II) Abuso de autoridade

 Não é o objetivo do presente artigo analisar o racismo inerente a muitas operações policiais e à conjuntura social passada e moderna. Nesse ponto, parece claro que houve uma desproporcionalidade de tratamento e, diante disso, também merecem responsabilização administrativa/disciplinar e criminal os envolvidos.

 Por outro lado, no tema pertinente - do uso desproporcional da força e da impropriedade das algemas – merece atenção o Art. 4.º, alínea a, da Lei 4.898/65, que disciplina o abuso de autoridade.

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 Conforme o artigo em comento, consititui crime “ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”, assim como “submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”

 A sanção vai na via administrativa, civil e penal, nos termos do Art. 6º da mesma lei:

Art. 6º O abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa civil e penal.

§ 1º A sanção administrativa será aplicada de acordo com a gravidade do abuso cometido e consistirá em:

a) advertência;

b) repreensão;

c) suspensão do cargo, função ou posto por prazo de cinco a cento e oitenta dias, com perda de vencimentos e vantagens;

d) destituição de função;

e) demissão;

f) demissão, a bem do serviço público.

§ 2º A sanção civil, caso não seja possível fixar o valor do dano, consistirá no pagamento de uma indenização de quinhentos a dez mil cruzeiros.

§ 3º A sanção penal será aplicada de acordo com as regras dos artigos 42 a 56 do Código Penal e consistirá em:

a) multa de cem a cinco mil cruzeiros;

b) detenção por dez dias a seis meses;

c) perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo até três anos.

§ 4º As penas previstas no parágrafo anterior poderão ser aplicadas autônoma ou cumulativamente.

§ 5º Quando o abuso for cometido por agente de autoridade policial, civil ou militar, de qualquer categoria, poderá ser cominada a pena autônoma ou acessória, de não poder o acusado exercer funções de natureza policial ou militar no município da culpa, por prazo de um a cinco anos.

 Desta vez, Nucci conclui que “algemar (emprego de força) quem não apresenta risco algum para a efetivação do ato, constitui delito de abuso de autoridade”.

III) E agora?

 O episódio que aconteceu há cerca de 2 dias não é um caso isolado, nem mera e infeliz casualidade. É um alerta, um sinal de que devemos dar um passo para trás de cogitar se essa é a melhor alternativa para a nossa segurança e para a segurança dos nossos semelhantes. O aumento do poder punitivo do Estado é realmente uma alternativa plausível para garantir a segurança ou somente trará segurança para alguns? 

 É bem verdade que o ente estatal é um gerador de desigualdades se não limitado por ele mesmo e pela sociedade civil. Em outros momentos, foi o dever de autolimitação do Estado que deu força à primeira constituição existente, que não foi feita para ser seguida à risca pelo cidadão para manutenção da cidadania e dignidade de outros, mas para o Estado, para não haver abusos - para quem não conhece a história, João Sem Terra, na Inglaterra, em sua batalha contra barões e prelados, foi vencido em 1215 e foi obrigado a escrever a Magna Carta, limitando seus poderes contra os nobres e religiosos.

 A ascenção de uma tirania, poderosa, , sem ideologia, no Brasil, acontece há décadas e não é necessariamente legislada. Nossa Carta Magna brasileira prevê diversos direitos negativos do cidadão com o Estado, mas a tirania enaltece com o desrespeito reiterado dessas garantias e não responsabilização dos agentes. 

 Enquanto o Estado não dá a sua resposta (sabemos que as vezes ele é lento, as vezes ele é rápido, depende da pessoa), precisamos cobrar e utilizar as ferramentas hoje à nossa disposição para divulgar casos como o que aconteceu com o empresário Crispim Terral, pois, a todo tempo, o Estado Democrático se dilui e, com ele, a humanidade das pessoas.

Já que, no Brasil, temos o direito penal do inimigo não legislado.


REFERÊNCIAS

AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal. 9.ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 5ª. ed. rev .. ampl. e atual.- Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 15. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.

Sobre o autor
Guilherme Schaun

Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Advogado criminalista. Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal na Verbo Jurídico. Aprovado na OAB em Direito Penal e no Trabalho de Conclusão de Curso acerca da imputação de responsabilidade criminal ao advogado pelo recebimento de honorários maculados. Orgulhosamente ex-estagiário do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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