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Individualismo como incentivador da violência e o papel do Direito Penal nesse contexto

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07/09/2005 às 00:00
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2. Direito (Penal) e Sua Operacionalidade

É curial destacar a relevância da operacionalidade do Direito como sistema e, também, principalmente, o ramo do penal como microssistema que se interligam cambiando influências. Mas, ainda, deve-se ter em destaque que esse cosmos está inserido no macrossistema social que engloba, na sua interdisciplinariedade, as diversas facetas da "vida real". Dessa forma, o trânsito por peculiaridades do penal, no tangenciador de uma visão holística, é teleologicamente guiado para a percepção do âmago do penal.

Logo, a conformação sistêmica do penal em decorrência do individualismo, como acirrador de conflitos, torna-se desvirtuada das proposições metafóricas dos contratualistas. Melhor dizendo, o indivíduo não cede seus direitos ao Estado e este os protege; agora a metáfora pode ser invertida O Estado – ente supremo – concede, conforme sua "vontade", direitos aos seus súditos, ou jurisdicionados.

Frisa-se, também, a confusão que se criou entre Estado e Direito. [42] Isso, devido à relação de origem entre o ente institucionalizador-garantidor da normatividade e os comandos normativos. No entanto, as esferas do Estado e do Direito não devem ser confundidas, pois o Estado é destinatário de comandos normativos, que pelo princípio da legalidade, deve observar estritamente; logo sua inobservância acarreta conseqüências jurídicas. Além do mais, nem todo o Direito teve sua origem ou reflete no aparelho estatal. Este tema é complexo e foge ao fôlego deste trabalho, no entanto, esta confusão será usada de maneira incontestavelmente aceita na esfera "não-técnica", Política, do Direito. Isso devido à problemática posta entre a política penal, que emana do Estado, e o individualismo que emana, basicamente, do homem influenciado por valores que serão discutidos mais adiante.

2.1 Direito contemporâneo: uma visão crítica

2.1.1. Breves considerações históricas

O Direito não pode mais ser tratado como elemento a parte das dinâmicas sociais, ou seja, dotado de autonomia [43] plena e irrestrita, sem qualquer contato com os demais ramos do saber. Sua função não se reduz a, simplesmente, ditar normas axiologicamente neutras ou com pouca significância valorativa. [44] Concebe-se que esta visão ascética do positivismo ortodoxo não é mais aceita sem críticas, embora haja vozes isoladas que insistem em atribuir esta (a) valoração ao Direito. Como se esta posição fosse neutra ideologicamente.

O Direito, como elemento prático-normativo, tem imbricações profundas na sociedade, pois ele é concebido sobre a regra do dever-ser, ou melhor, sobre uma perspectiva hipotética de se tornar de fato um ser ou, pelo menos, através da sua força coativa, a transformar a esfera do dever-ser em ser, o hipotético no real. Isto implica, imediatamente, sua normatividade como uma força coativa; [45] logo, este é guiado por posições políticas que afetam as estruturas sociais. A informação recolhida do jurídico acaba, diretamente, a interagir e imiscuir-se na realidade social.

Assim, o Direito é uma entidade humano-cultural. É que tanto basta para sabermos que ele se projecta em múltiplos planos – em todos os planos em que participa a realidade humana, histórico, social, cultural... [46] Isso dota o campo do jurídico de complexidade ímpar e possibilita que haja, nos meandros obscuros do jurídico, explicações esclarecedoras da postura política adotada.

O sistema jurídico começa por ser reconhecido como tal através da construção romana do Direito. Embora os gregos houvessem lidado com a idéia de Justiça, eles não distinguiam o direito, a justiça, a ética, a política; tudo se encontrava no âmbito da filosofia. Como marco histórico de suma importância, o Corpus Iuris Civilis foi o legado deixado pelo Império do Oriente. É destacável o Corpus Iuris Civilis, confeccionado no Império Romano (justinianeo) a mando do Imperador Justiniano e recepcionado pela Escola dos Glosadores de Bolonha, [47] na Itália, no século XI. É um marco histórico-jurídico sem precedentes, pois influenciou cabalmente a metodologia, em sentido amplo, do Direito e que mesmo hodiernamente, séculos mais tarde, sente reflexos desta "coletânea" de normas [48] – haja vista o Código Civil Francês –. Além do mais, sobre os alicerces do direito romano justineaneu surge o ius commune [49] que, sem ser imposto autoritariamente, ou seja, por um poder constituído, foi se difundindo, por mérito próprio, a unificar princípios pela Europa. O que na atualidade está a se tentar construir em termos de União Européia, uniformizando as nações em princípios comuns (principalmente no que se refere à economia); na época se concretizou, ou seja, um ordenamento jurídico unívoco e com um idioma corrente comum; com isso os doutores e operadores do Direito, imprescindivelmente deveriam manipular o latim, mas não serviu, apenas, como um meio comunicação; serviu, também, como critica combativa entre dois segmentos de juristas: os Humanistas e os do mos italicus. Os primeiros polemizaram o mau uso do latim, ou melhor, o latim dos juristas do mos italicus não expressava o latim "puro" da época de Justiniano; por isso, a malta do mos italicus era acusada de laborar sobre textos alterados que não mais refletiam a fidedignidade da letra do texto [50]. A crítica humanista se estende, no sentido de afastamento dos textos clássicos, pois os juristas do mos italicus interpretavam as interpretações e comentavam comentários, se auto-referenciavam. Os humanistas, juristas cultos, estudavam filologia, história, latim, grego, etc. e procuravam beber na fonte clássica dos textos romanos; percebiam, assim, que o Corpus Iuris Civilis refletia parte da História do Direito Romano. Esses estudos revelam uma desfiguração no direito puro ocasionada pela compilação justinianea feita por Tribuniano [51] e pelos juristas que o acompanhavam.

É importante sublinhar, ainda, que o ius commune conseguiu relacionar-se de maneira a se enquadrar com o ius proprium, de cada Estado – região –, dando-lhe parâmetros gerais em sua operacionalidade; esta, guiada pela força dos textos do ius commune e da opinium doctorum. Conforme o direito de cada Estado se destacava, o direito comum cumpria a função de fonte subsidiária. Marques (2003) destaca desta forma:

No período do ius commune não existe a ideia de sistema jurídico auto-suficiente, tal como será defendido mais tarde pelo pensamento jurídico positivista do século XIX. O direito nacional encontra o seu prolongamento natural nos direitos romano e canónico. São estes dois direitos que fecham a cúpula do ordenamento jurídico. A relação do ius commune com o direito dos reinos particulares (ius proprium) é de intimidade. [52]

Então, com o correr do processo secularizador, [53] civilizatório e pelas novas exigências sociais o direito romano, no que toca ao direito comum, torna-se insuficiente, deixando desprotegidos vários aspectos que surgem da vida cotidiana. A escola dos comentadores conseguem estender o estudo dos textos justinianeo com comentários e interpretações que possibilitavam uma espécie de atualização ao modus operandis societatis. Com o decorrer do tempo a evolução social impulsionada pelo comércio e o avanço científico desvelam uma crise em todas as bases institucionais da sociedade surgindo, então uma nova concepção, secularizada, de Mundo e de Homem. Inicia-se um período de crise do ius commune e começa a florescer o jusnaturalismo racionalista. Assim escreve Marques (2003):

A crise do ius commune, visível, já no século XV, irá acentuar-se com a emergência do jusnaturalismo racionalista. Ao refutar a tradição, esta corrente mostra os seus intuitos destruidores no que respeita aos princípios nucleares que constituem o cimento da formação organizacional da ordem instituída. Começam a perfilar-se os pressupostos que irão conduzir à ideia de código como um conjunto de normas simples, claras e autossuficientes, impostas pelo Estado. A crença na capacidade intrínseca do homem põe em causa a credibilidade dos velhos instrumentos metodológicos de obtenção da verdade. (...) Os modernos, invocando novos paradigmas e novas positividades, olham para o direito vigente como um conjunto transformável. Surge então uma vasta bibliografia cujo objectivo é o de dar resposta às novas exigências de reordenamento racional do direito positivo. Estas obras, ostentando uma concepção racionalista da ética, ou, em termos mais gerais, uma concepção racionalista da filosofia, apontam as virtualidades da razão humana como fonte autêntica da justiça natural. (...) A produção de um corpo de direito ordenado segundo os novos princípios pressupõe uma recolha de critérios normativos que sejam a expressão da razão natural. Na expressão de Domat, «as leis do homem são as regras da sua conduta». Ora, dadas as limitações do direito canónico no foro secular, o Corpus Iuris surge ainda aos olhos de muitos juristas como único corpo de leis onde se encontram depositadas muitas das verdadeiras regras do direito civil. [54]

A História mostra a progressiva complexidade dos ramos do conhecimento. A revolução científica do século XVI, o Homem passa da visão teocêntrica para a antropocêntrica abalando o suporte do saber medieval que tinha por base o critério da fé e da revelação. [55]

Continua Gauer (1996):

O homem moderno deixou de admitir uma concepção puramente contemplativa de ciência, desligada da tecnologia. A nova cosmovisão da ciência moderna criou um novo homem, cujo valor se encontrava não mais na linhagem familiar, mas no prestígio resultante do seu esforço e capacidade de produzir. Esse novo homem – indivíduo – rompeu com a visão holística da sociedade. A concepção da ciência moderna ligava a investigação das forças da natureza à utilidade das mesmas para beneficiar a humanidade. A ciência deixava de ser serva da teologia. Nesse sentido, a contemplação formal e finalista foi substituída por um saber que produzia uma técnica capaz de auxiliar o homem. As inovações científicas forma expressão do esfacelamento do mundo feudal. O racionalismo, poder exclusivo da razão de discernir, distinguir e comparar, substituiu o dogmatismo medieval, assumindo uma atitude crítica e polêmica perante a tradição. O antopocentrismo eliminou o pensamento teocêntrico (centrado na figura de Deus), possibilitando ao homem moderno colocar-se a si próprio no centro alterando, assim, a visão de mundo. [56]

Envolto nesta nova complexidade, que ocorre com a revolução científica, o Direito ganha novas configurações (complexidades), como ocorre com todo o saber humano; não pode mais ser simplificado como um elemento tridimensional, como Reale (1975) [57] acentua, fato, valor e norma, mas pode-se acrescentar, atualmente, outros fatores incidentes, tornando-o multi-dimensional; logo, o Direito é formado por uma pluralidade de fatores. Pode-se pensar, ainda, em outras dimensões, pois, com o percorrer evolutivo do conhecimento jurídico, descortina-se novas "verdades" [58], novos horizontes das inúmeras dimensões que formam a racionalidade hodierna. Como o tempo e o espaço.

A partir de novos paradigmas o Direito contemporâneo começou a se estruturar através do jusnaturalismo, como nos informa Gauer (1996):

O jusnaturalismo cortou por completo os dogmas doutrinários do velho direito contido no corpus iuris civilis. O novo direito partia de um novo paradigma, o paradigma da razão, da lógica racional. O racionalismo, poder exclusivo da razão, substituiu o dogmatismo do velho direito medieval, desenvolvendo a mentalidade crítica e assumindo uma atitude polêmica perante a tradição. O corpo teórico do direito natural criou uma nova concepção antropológica. A concepção antropocêntrica libertou o homem do teocentrismo aristotélico-escolástico, criando um modo particular de encarar a realidade. [59]

Como se denota das considerações acima, começa a aflorar, pelo predomínio da razão uma concepção de Estado e de Direito na direção de contrapor-se à ordem instituída do jusnaturalismo-religioso. O jusnaturalismo-racionalista ganha volume, não apenas em adeptos, mas na formação e fundamentação de um movimento que pende a cambiar a ordem vigente. O Homem desvincula-se da crença de um Deus manipulador e passa a crer nas aptidões racionais de si próprio. O destino do ser humano adquire ares de independência, autonomia, liberdade-igualdade, frente à posição teocêntrica. O antropocentrismo eleva-se, localizando-se na posição de preponderância e no mesmo talante o Estado e, por conseqüência, o Direito se conformara a nova visão. São, agora, produções da racionalidade humana.

Para a afirmação desta nova visualização do mundo, surgem teorias justificadoras da estruturação do aparelho de estado. Isso para legitimar a monopolização, acima abordada da força física, da arrecadação de tributos e da produção do Direito. Nesta fase, o Estado concentra todo o poder de normatização e, portanto, de controle social. Estas teorias emergem para consolidar o Estado-de-Direito e foram impulsionadas e impulsionadoras da Revolução Francesa [60]; movimento símbolo da mudança de status entre a burguesia, querendo seu espaço, e a nobreza, desejando manter suas prerrogativas.

A Revolução Francesa veio no sentido de inovar, acabar com as instituições então vigentes e implantar outra ordem, que aniquilar os privilégios estamentais, vigorantes no regime feudal; possibilitou uma proteção a todos os cidadãos franceses, principalmente aos burgueses. Destaca-se, ainda, que os legisladores franceses, revolucionários, pretendiam legar ao Mundo, ou seja, para o gênero humano neste empreendimento revolucionário, importante foi a idéia geral e abstrata tida de Homem, individualizado, [61] levando, não só à França, mas ao mundo, a intenção da valorização, em relação à antiga concepção, e resguardo de direitos. Prerrogativas adquiridas apenas pela condição natural de ser racional [62] (deu-se o inicio de uma caminhada, ainda longe de alcançar seu destino, a um maior respeito à dignidade humana).

Deste confronto, pode-se dizer, vencido pela força revolucionária, traz-se à tona o jusnaturalismo e, juntamente, as teorias contratualistas. Estas matizaram, através de um mito, a funcionalidade do aparelho jurídico. Podem ser resumidas do seguinte modo: - os autores que aderem a esta corrente elocubraram teorias que estruturam e explicam, em parte, a conformação burguesa do Estado – em um determinado momento sócio-histórico, cogitou-se a necessidade de um acordo entre os homens, por não suportarem mais a insegurança do estado de natureza, beligerante – estado em que a liberdade é delimitada pela força física, ou melhor, estado de desordem. Assim, resolveram pactuar para a criação de órgão que tivesse poder soberano, com limites, sobre cada indivíduo. Dessa forma, cada pessoa cedeu parte de seu direito natural. Com a soma do direito de todos, foi instituído um ente superior com a função de garantir os gozos dos direitos naturais, civis e da segurança (advindos do pacto) dos Homens, surgidos deste acordo.

O Estado [63] encontra sua justificação no mútuo consentimento de seus integrantes. É notório que as teorias contratualistas explicam o que está posto, ou seja, legitimam, pelo viés do consenso, o Estado burguês e o poder deste sobre os jurisdicionados. Cabe sublinhar que a maioria dos contratualistas tem a consciência de estarem a teorizar sobre um mito. Em "determinado momento houve a reunião de todos e a criação do Estado através do contrato", usam essa metáfora, para expressar o consentimento e a adesão de todos em relação à legitimidade do poder soberano do Estado. Ainda, para reafirmarem o monismo estatal da produção do Direito. Com isto, o Estado adquire o respeito necessário para sua operacionalidade no âmbito interno e externo; através da passagem da responsabilização de cada Homem, contratante, pelo consentimento firmado – surge, logo, o princípio do pacta sunt servanda.

A partir daí, pode-se citar alguns autores que colaboraram com o fortalecimento deste mito, como: Suarez, Grócio, Hobbes, Spinoza, Leibniz, Pufendorf, Thomasius, Wolf, Locke, Montesquieu, Beccaria, Rousseau, Kant, etc. [64] Cada um destes autores problematiza o status libertatis, a autonomia do Homem sobre enfoques diferentes. No entanto, o ponto fulcral do jusnaturalismo baseia-se no corte do mundo teocêntrico, dado construído e determinado por uma entidade metafísica, para uma nova realidade em que o Homem assume a responsabilidade pela construção e direção do cosmos mundanal. Partem duma situação de desordem e perigo para inserir racionalmente estruturas de fornecimento de ordem e segurança.

O jusnaturalismo-racionalista, em suma, busca na natureza racional do Homem leis naturais captáveis pela razão intrínsecas a sua condição humana. Os autores acima citados foram cabais para projetar o que chamamos de Estado demo-liberal. Partindo de suas concepções, modelaram-se institutos formadores do aparelho estatal [65]. Por lógico que o mundo jurídico sofreu modificações bruscas em sua funcionalidade. Em decorrência disso, é difícil delimitar em que instância começa o Direito e em que medida finda o Estado. A confusão entre estas duas esferas de poder se deve pelo monopólio do Estado frente à produção de normas jurídicas e pela inadmissibilidade de qualquer outra fonte produtora de Direito além do Estado (legalismo) – apenas subsidiariamente. Assim acentua Marques (2003):

O jusnaturalismo é potencialmente destruidor porque refuta a tradição e as velhas autoridades e defende um direito assente sobre regras de carácter intemporal válidas para todos os homens. O Estado que se forjou a partir do contrato social só reconhece o direito criado nas instâncias oficiais, «a obrigatoriedade deixa de ser uma noção própria da Filosofia prática e passa a ser considerada exclusivamente como uma peculiaridade da actividade do Estado, quer dizer, da Autoridade pública». (1488 Cfr. Francisco Carpintero, Los inicios del positivismo jurídico cit., 93.) O direito que antecede o Estado constitucional e o que se lhe seguiu é ainda muito marcado pelo diálogo entre os desacreditados quadros mentais do ius commune e os princípios impostos pelo jusnaturalismo racionalista. Devido à feição mais abstracta destes princípios, o predomínio das idéias sobre aqueles quadros que se forjaram a partir das realidades da vida é cada vez mais evidente. Dada a feição racionalista deste movimento cria-se o ambiente propício para a afirmação das grandes construções lógicas e para o domínio de todo o direito a partir daquela fonte que se entende ser a única adequada para se exprimirem os ditames da razão: a lei. Esta passa a unificar a razão e o poder, isto é, passa a encerrar em si as propriedades que a tradição teológica medieval extraída do vértice de como figura divinizada (voluntas legislatoris). Esta simbiose (poder-razão) tem como consequências metodológicas o reforço do método lógico-dedutivo e a superação da tópica casuística. A lei, como fonte da voluntas estadual e como prescrição universal, harmónica, aureolada de plenitude, vê estreitar-se o seu potencial de sentido. Está em marcha a instauração da figura do legislador racional. [66]

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Com isso, a política do Estado era orientada pelos preceitos do direito natural, devendo segui-lo, não ultrapassando-o em seus preceitos, ou melhor, o direito natural constituía-se em paradigma do direito estatal, a esta altura o legislador interpretava e especificava o direito positivo em face delimitadamente do direito natural. A razão explicitava o naturalmente implícito.

A racionalidade capta o direito natural, localizando os preceitos abstraídos na esfera da cultura humana, ou seja, como produto exclusivo do ser humano. O movimento de codificação aflora, marcado pelo Code Civil (1804) francês, para reduzir complexidades e pela superação do mundo das legitimidades espontâneas e tradicionais que caracterizam o sistema do ius commune. [67] Nas condições para o direito positivo codificado, como orientação legislativa já com a preponderância dos ditames do direito positivo-legalista os limites naturais passam a não existir, sendo assim, o poder do Estado e sua política, determinam amplamente os preceitos-valorativos merecedores de figurarem no rol de leis jurídicas. [68]

No entanto, a distinção entre Direito e Estado, anteriormente à total monopolização do Direito pelo Estado, era clara, se, tomar-se exemplo do ius commune com seus costumes tradicionalmente aceitos. Esta confusão é divida pela tal assunção estatal na condução e produção jurídica; ao contrário, se houvesse divisão nesta produção, o Direito havia de ser distinguido como uma instituição à parte do Estado. Por exemplo: se costume, de fato, fosse colocado no mesmo patamar jurídico que a lei (legislativa), ou seja, se a lei originasse-se de outras fontes que não, somente, pelo meio legislativo do Estado; isto fortaleceria a idéia de que o jurídico é composto por outros fatores normatizantes que não somente a lei e, além do mais, em relação ao costume que é produzido pelo movimento societário e não por um corpo de legisladores, legitimaria, desde o início, muitas vezes imperceptível, a norma.

Dessa forma, o Direito, em sua amplitude metodológica, constituiria-se de fontes distintas pela lei, a legislação estatal e o costume, numa adaptativa dinâmica social. Pode-se remeter a duas escolas representativas do costume e da lei respectivamente, a escola histórica e a escola da exegese. Esses dois filões do pensamento jurídico ditaram as regras metodológicas do direito em seus países, em épocas – praticamente – concomitantes, a influenciar o Direito. A reivindicação, baseada sobre no exaurimento do atual modelo predominante de ciência jurídica, metafísico-idealista ou, ainda, formal-positivista, está a forçar o sistema a superações institucionalizantes que estão a ocasionar colapsos no seu núcleo base, a lei e seus princípios moderno-iluministas. A força, movida por imperativos pluralistas, pende à radical democratização do processo centralizado, ou seja, a uma descentralização monopolista do poder para a participação da comunidade com suas estratégias, como Wolkmer (2001) destaca:

Vêem-se pois, os traços demarcadores dessas condições que se incorporam e se reproduzem, funcionando como "fundamentos" de eficácia "material" e "formal", no agir dessa proposta de alargamento do poder societário frente ao poder do Estado, do poder público ao privado, do poder local ou periférico ao poder global ou central etc. Mais atentamente, e procurando sistematizar, dir-se-ia que a articulação deste projeto cultural pluralista e emancipatório que permite aduzir um "novo" Direito - um Direito produzido pelo poder da comunidade e não mais unicamente pelo Estado - envolverá o desenvolvimento de duas condições básicas:

a) fundamentos de efetividade material: engloba o conteúdo, os elementos constitutivos etc.;

b) fundamentos de efetividade formal: refere-se à ordenação prático-procedimental etc. [69]

O movimento jurídico, no percorrer da carruagem histórica, não foi retilíneo e nem uniforme, mas de desuniformidade, de traçados sinuosos. Ao olhar para o período do ius commune, repleto de complexidades (também pluralista) em suas regras jurídicas-sociais, reconhece-se uma coletividade pluralista, mas desigual, tanto na formalidade como na materialidade; o processo civilizatório leva a uma exigência de redução de complexidades, a uma igualdade formal, e uma pretensa-hipotética igualdade material; contemporaneamente ressurge o significante da pluralidade com exigências de igualdade formal e material. Sem dúvida, a complexidade social atual é mais densa em seus imensos problemas, até mesmo pela condição de igualdade material, formal e de liberdade, que compõem a dignidade humana, fim último do mecanismo jurídico.

2.2 O direito hodierno operacionalmente

Ao abordar, de maneira ampla uma parte da história do Direito, encontram-se diferentes tratamentos da normatividade. Não se trata de exaurir algo amplo como o Direito, mas de demonstrar o elo entre épocas determinantes à formação do que encontramos hoje em dia. Logo, a visão que se procura descortinar é a conexão entre o individualismo, o Direito Penal e a violência. Para tal, o Direito como um todo, e o Direito Penal como parte, se inserem nas dinâmicas a serem levadas em consideração.

A estruturação do mecanismo jurídico, a partir do jusnaturalismo-racionalista, implica uma valoração, ou seja, é influenciado por fatores ideológico-valorativos – que não retiram, por vezes, sua autonomia. Como acima abordado, a história demonstra o deslocamento do pensamento jurídico referente a sua construção metodológica implicando imediatamente condições a um condicionado condicionante ao Direito (NEVES, 2003). Logo, a funcionalidade [70] do sistema jurídico é condicionada e condiciona, ao mesmo tempo, o seu interior e o exterior acarretando implicações de duplo sentido em sua operacionalidade. No entanto, essas "condicionantes" variaram conforme o predomínio original da fonte do Direito. Ora, em épocas do ius commune poder-se-ia concluir – parcialmente, pelo menos, – que as condicionantes derivavam, em maior parte, de uma pluralidade de fontes como costume, a opinium doctorum, o ius proprium e etc.; com o advento da legislação normatizadora - ius leges - pode-se indagar que o predomínio de condicionantes advém dos valores do próprio sistema jurídico-político e sua hierarquia coativa. No primeiro, tem-se um movimento de forças centrípetas, que dimanam de fora em direção ao centro de poder; no segundo, o movimento é centrífugo, pois o sentido é do centro monopolista do poder (Estado-Direito) para fora. Essas forças são as principais, no entanto, há sempre movimentos de forças resistentes na direção contrária.

Levando em consideração essas perspectivas, o Estado, através do positivismo jurídico, assume uma posição monista, de monopolizador da força. Não mais uma força arbitrária e ilegítima, capaz de causar sérios danos à imagem e deslegitimar o detentor do poder, anteriormente na figura do Rei, hodiernamente na figura do Presidente, Chefe-de-Estado e Legisladores, etc. Para a legitimação do poder soberano, com o jusnaturalismo, os aparelhos de Estado sofrem profundas alterações. Concebem-se artifícios de controle da arbitrariedade e montam, discursivamente, um ambiente de responsabilização dos cidadãos, frente aos desígnios da societas; e uma neutralidade da norma jurídica. A democracia (re)surge. O Estado Constitucional de Direito toma vigor. Assim, torna-se Estado-Constitucional-Democrático-de-Direito. Isso, de fato, altera a condição do jurídico frente à sociedade. O Direito tem sua operacionalidade alterada pela codificação, pela imposição da lei estatal.

Com efeito impõe-se ao sistema uma racionalidade resultante de uma atmosfera de liberdade, de igualdade e segurança – fundamentos da modernidade [71] –, pelo menos em discurso. Para aparentar a consecução destes princípios, que guarnecem o indivíduo frente ao Estado, a lei é concebida como: a) uma construção hipotético-condicional – ou seja, baseada numa previsibilidade, anteriormente descrita (princípio da Legalidade), se ocorrerem determinados acontecimentos numa realidade prática, condicionalmente, então a resposta para o hipotético-concretizado deverá ser um hipotético-condicionado (a concretização no mundo dos fatos de um postulado hipotético-condicionado pelo hipotético-concretizado); b) formulações universais respeitando a generalidade, a abstração e formalidade: a generalidade trata de atos em geral – sem distinção alguma; a abstração abrange matéria comum a todos; a formalidade é um processo regular pelo qual a lei, para ser considerada preceito jurídico positivo, deve passar – de regra – por um processo legislativo; c) a fundamentação imanente de um sistema de normas (uma unidade coerente); d) a imperatividade, condição essencial para transformar o plano hipotético ao real-concreto – comando, prescrição normativa impositiva originária do poder soberano; e) a perenidade significa a estabilidade da norma frente a contingência da dinâmica relativa histórico individual da concretude humana. Esses requisitos são prementes na configuração do legalismo. Os Códigos, como as leis, devem ser estruturadas pelos alicerces base do Direito.

Com isso, a operacionalidade do Direito com o pensamento moderno-iluminista jogou nas mãos do Estado – monopolista – a tarefa de produção e legitimação da normatização. Conforme destaca Wolkmer (2001):

Em semelhante contexto, o Direito moderno não só se revela como produção de uma dada formação social e econômica, como, principalmente, edifica-se na dinâmica da junção histórica entre a legalidade estatal e a centralização burocrática. O Estado moderno atribui a seus órgãos, legalmente constituídos, a decisão de legislar (Poder Legislativo) e de julgar (Poder Judiciário) através de leis gerais e abstratas, sistematizadas formalmente num corpo denominado Direito Positivo. A validade dessas normas se dá não pela eficácia e aceitação espontâneas da comunidade de indivíduos, mas por terem sido produzidas em conformidade com os mecanismos processuais oficiais, revestidos de coação punitiva, provenientes do poder público. Distintamente das formas pré-modernas e pré-capitalistas, dominadas pela legitimidade tradicional e legitimidade carismática, o Estado Moderno consagra agora a legitimidade jurídico-racional, calcada na despersonalização do poder, na racionalização dos procedimentos normativos e na convicção de uma ‘obediência moralmente motivada’, associada a uma conduta correta. Neste processo de legitimação, a ordem jurídica, além de seu caráter de generalização e abstração, adquire representação formal mediante a legalidade escrita. A lei projeta-se como o limite de um espaço privilegiado, onde se materializa o controle, a defesa dos interesses e os acordos entre os segmentos sociais hegemônicos. Ocorre que, ao criar as leis, o Estado obriga-se, diante da comunidade, a aplicar e a resguardar tais preceituações. Ao respeitar certos direitos dos indivíduos e ao limitar-se à sua própria legislação, o Estado Moderno oficializa uma de suas retóricas mais aclamadas: o ‘Estado de Direito’. A permanente condição do ‘Estado de Direito’ permite e justifica uma certa administração, fundada na pretensa neutralidade de legalidade. O Estado que se legitima na situação de ‘Estado de Direito’ garante-se como um poder soberano máximo, controlado e regulado pelo Direito. Naturalmente, o moderno Direito Capitalista, enquanto produção normativa de uma estrutura política unitária, tende a ocultar o comprometimento e os interesses econômicos da burguesia enriquecida, através de suas características de generalização, abstração e impessoalidade. Sua estrutura formalista e suas regras técnicas dissimulam as contradições sociais e as condições materiais concretas. Em consonância com tais premissas, De la Torre Rangel adverte que esse Direito Moderno, ‘pretendendo ser um Direito igual e supondo igualdade dos homens sem ter em conta os condicionamentos sociais concretos, produz uma lei abstrata, geral e impessoal. ‘Ao estabelecer uma norma igual e um igual tratamento para uns e outros, o Direito Positivo Capitalista, em nome da igualdade abstrata de todos os homens, consagra na realidade as desigualdades concretas’. [72]

Logo, a política, que vigora no Estado produtor e legitimador, impõe suas diretrizes no campo da norma que guiará a ação social. O comportamento normativamente irregular será corrigido pela coação. No entanto, essa questão de relações de poder não reduz o Direito a mero coadjuvante das orientações políticas estatais. Pelo contrário, as normas jurídicas devem ser baseadas em critérios de valores (quais os valores?) benéficos à sociedade, senão o Direito perde seu sentido. Por isso, o campo jurídico, como outras esferas da cultura, atualmente, está a passar por uma crise de paradigmas; é mister observar a pluralidade de valores que se encontram a co-habitar numa mesma sociedade, que apresenta aspectos latentes de insegurança – denominada, por muitos, de sociedade de risco. Perde-se, assim, na contemporaneidade, um dos aspectos da modernidade que é a segurança e o controle. Com isto, o Direito encontra-se no meio de um paradoxo crítico radicalizado, ou seja, o Direito estruturado por princípios perenes, uniformes e que dimanam segurança depara-se, hodiernamente, com uma sociedade insegura, pluralista e com velozes mudanças. Como se denota, há instalada uma crise no modelo de Direito vigente, que insatisfatoriamente vem resistindo às mudanças, como destaca Neves (1976):

Para que uma ordem jurídica possa cumprir a sua função de critério prático-normativo da vida social, substituindo e realizando-se historicamente no cumprimento dessa função, é evidentemente necessário que as suas determinações afirmem um conjunto de intenções, de sentidos e de valorações susceptíveis de, ao mesmo tempo que orientam materialmente a acção social, provocarem e garantirem a adesão prático-comunitária que sustenta a sua vigência e portanto e sua própria existência socialmente histórica. É conteúdo normativo da ordem jurídica que pode fazer dela um critério prático de acção social e são os valores que esse conteúdo normativo implica e manifeita que determinam a adesão prática da vida social de comunidade que se considere. Nenhuma ordem jurídica impõe indiferentemente o que quer que seja, antes prescreve sempre algo que pretende justificar-se pelos fundamentos (materialmente intencionais) que pressupõe e em que se louve. É esta dimensão normativa – i. é, a referência aos valores que fundamentam a sua validade normativa – que uma consideração meramente analítica (descritiva e teorética) da ordem estruturada, que o direito implanta na vida social, não chega a considerar, mas é ela que ùnicamente nos permite compreender o direito naquela função normativa que sua consideração prática (como é decerto a do jurista) não pode ignorar, sem se negar a si própria. [73]

A realização prática do hipotético, dever-ser em ser, é o objetivo do Direito em sua razão prática. A motivação que conduz a coagir, a usar a força na realização dos desígnios marcados, no caso do positivismo, na letra da lei. Isso fica destacado na esfera do Direito Penal. Como última ratio de "controle" o comando deve ser enérgico, conciso e claro em comparação aos demais ramos jurídicos. No entanto, há um contra-senso, o ius puniendi, pois além de usar todos os seus mecanismos, não deve ultrapassar os limites garantidores do indivíduo. Então, a força a ser empregada é mesurada pelos limites e ditames legais. O princípio da legalidade assume a posição máxima da garantia do cidadão frente ao poder estatal.

No entanto, com esta complexa-problemática que atravessa o Direito Penal, destacadamente, a legalidade sofre a força do fluxo social mutacional; resta para ela o centro adaptativo à funcionalidade jurídica. O nullum crimen, nulla poena sine lege, se amplia, ou melhor, funcionaliza-se na materialidade condicionante que deve abarcar as transformações sociais e conseguir satisfazer a política da eficiência penal, numa tentativa de afastar o colapso jurídico-penal. Busca-se, para além do horizonte da segurança e igualdade, um sentido de justiça material – ou jurídica. [74]

Com o deslocamento de horizontes e a agudização das crises do modelo jurídico, procura-se estruturar numa base funcionalista, prática, com variações de valoração, tendo como meta teleológica o alcance de resultados almejados; sem com isso, perceber os fins-valores encetados no mundo social. A super-inflação de legislação nada mais busca do que a consecução dos objetivos; estes, por sua vez, orientados pela pluralidade axiomática indeterminada pelos critérios subjetivos, mas determinados pelos objetivos materiais e processuais. Processo moldado para a concretização do resultado almejado teleologicamente variável. A culpa imunizada de um fundamento ético e de expressão puramente pragmática de um quadro de imputação e punição, na tentativa de imunizar o sistema das suas contradições, implica no princípio da legalidade, que, por sua vez, só terá operacionalidade no momento em que a culpa for sustentável penalmente.

No que tange ao direito criminal tradicional e especial (direito criminal econômico, do ambiente…): coloca-se em voga a questão de tipos-legais – legalidade expandida, pseudo-legalidade – genéricos, abrangentes, que revigorem a eficácia do penal. Levando em consideração que esta condição normativa terá um efeito de maior eficácia (punitiva), em decorrência da maior esfera em que o poder estatal poderá atuar; ainda, no mesmo sentido de eficácia (preventiva), na maior generalidade da norma, na falta de parâmetros que cada indivíduo terá, no hipotético, o receio de agir, sob o medo de ser enquadrado num tipo-legal-penal. Isso tudo sob os auspícios de uma "ética social", de dignidade humana. Destas perquirições, levantam-se diversos problemas de ordem antropo-sócio-jurídicas: Com razão, esta argumentação se coloca. Mas a reta razão a este argumentum somente é encontrada num ambiente de baixo espectro conflitivo, ou seja, em sociedades de pouca complexidade, em que todos, não somente uma classe, tenham oportunidades correlatas de desenvolvimento sócio-cultural, e possam, com seu desenvolvimento sócio-cultural, buscarem subsídios na suas experiências, e assumam a responsabilidade de seus atos, a que tenham um sentimento de solidariedade-cooperativa, além de aceitar o outro, defender o nós, democraticamente igualitária – material e formalmente –, etc.: então, nota-se, que para a generalidade do tipo-penal indefinido – mesmo com o auxílio de uma norma ordenadora que defina a indefinição –, ou amplamente descrito, não descambe – na pena sem previsão legal e no crime sem lei anterior que o defina – na desigualdade (também formal), sócio-individual, e não ressurja o totalitarismo vilipendiador da dignidade humana.

O penal, ao que se percebe da condição humana exposta neste trabalho, deve arranjar outras soluções, do que esta, para a contemporaneidade. Visiona-se, corretamente quando, sob uma base "ético social" houvesse um sentido agregador e cooperador entre indivíduos e entre indivíduo e Estado. No entanto, não há. O que há é a diferença-depreciativa e a competição entre indivíduos e indivíduo e Estado. Pode-se, no continuum tracejar, trazer à baila o seguinte: se o ambiente ético social fosse favorável à integração, cooperação, não haveria necessidade de generalização do tipo-penal e sua maior eficácia (punitiva e preventiva). O problema, embora nestes termos metodologicamente pensados, não se concentra no direito; ressalva-se que a problemática da violência não se encontra no Penal, em si mesmo, pelo menos na sua totalidade, mas na dinâmica humana impulsionada pela claudicante estrutura jurídica. Destaca-se a necessidade de uma ética social pluralista, englobante do todo e a reformulação do jurídico na direção de abarcar e facilitar as condições de adoção das medidas "revolucionárias" em direção a uma nova ética-humana.

O aporte do acima exposto encontra-se nas fórmulas rígidas e no seu processo legitimador que não estão a suportar a velocidade das mudanças e a quebra do paradigma espaço-tempo. Urge a necessidade de reordenar, reformulando-o, o que no passado foi modelo de estabilidade e segurança, não deixando de lado, porém, as conquistas axiológicas do ser humano durante este processo civilizatório, eis que tal procimento representaria um grande retrocesso em termos de humanização. Por isto, a pura funcionalidade do jurídico perseguida é, neste momento, posta em dúvida em relação aos seus valores, tornar a condição da dignidade humana em mero meio recoloca a questão da importância representativa da vida humana em toda a sua amplitude. É correr o risco – insegurança – do regresso de políticas juridiscizadas, impregnadas de uma monoculturalização, de negação da pluralidade.

O positivismo-legalista, também o funcionalista, [75] não corresponde mais aos desígnios formados pela modernidade de organização, de pureza. A globalização e o futuro incerto fogem ao controle do Direito. A crise se robustece pela insistência do Homem em buscar segurança num modelo de ordenamento esgotado, que não responde aos anseios produzidos de pluralismo reconhecidamente axiológico. A descomplexidade da codificação gera, atualmente, o efeito de contrário da segurança num ambiente malheável-pluralista.

2.3 O direito penal e a insegurança

Ao adentrar este tópico foi percorrido um caminho que pretendeu demonstrar o fundamento da operacionalidade do Direito de uma forma geral. Importa, no entanto, a especificação do tema no âmbito Penal. Da mesma forma que o Direito – in genus –, a discussão do Penal [76] será centralizada na sua operacionalidade em meio ao ambiente de risco, pois o capítulo seqüente será restringido à abordagem do movimento lei e ordem. Isso pelo fato deste movimento representar uma ideologia representativa da nova ordem, corrente, mundialmente crescente. Uma ordem seletiva de exclusão, de risco e mal-estar indesejados, juntamente com a tentativa de reafirmação da política neoliberal e resgate do monismo jurídico. O sonho de um ambiente público sem impureza e perigo, sem incômodos ao exercício da liberdade – em seu sentido amplo – daqueles que por razões econômicas-políticas-sociais ostentam seus nomes no rol de homens livres. A dissimetria entre a promessa moderna e a realidade destoa da ação dos institutos promovedores da modernidade, logo isso não deixa de ser um sintoma de esgotamento e, por isso, a necessidade de revitalização do (quase) irrealizado sonho.

O Direito, e inclusivamente o Penal, é constituído pelo formato de um sistema [77] positivista em que opera de forma peculiar e diferenciada das demais instituições culturais. Este operacionalizar é, de alguma forma, jungido de elementos referenciais, captados de uma realidade, filtrado e transformado pela política criminal, pois a perenidade do Direito não pode, com a possibilidade de esclerosar, deixar de acolher as modificações do mundo-cultural-atual, ou seja, suprir de certa forma as expectativas e amenizar as frustrações. Destarte, estabiliza a instabilidade das relações sociais que estão sempre a cambiar. Decorre, desta feita, uma contraposição com o hodierno, devido à contigência de estar, vertiginosamente, a mudar; logo, o instável mundo social não mais obedeça a uma lógica previsível, em que florescem crises dentro do sistema jurídico – principalmente na esfera Penal. A perenidade do Direito não absorve as mudanças com a mesma velocidade com que elas se produzem e, ainda mais, engessa o aparelho jurídico imobilizando-o diante das novas realidades. O dogma Penal e sua estruturação estática tornam, por exemplo, a teoria finalista [78] de Welzel (2001), um ultrapassado teórico, de forma a colapsar a construção penalística calcada a partir desta base teorética. Não se quer reavivar algo arrefecido e insuficiente para lidar com a problemática da contemporaneidade, mas destacar as diferenças de complexidade da época da concepção da teoria de Welzel (2001), por exemplo, e a inadequada resposta que este plano teorético impõe à práxis atual.

O trabalho, envolto num modelo de sistema, proporciona a segurança a que o Direito, classicamente, se propõe a fornecer, no entanto, não é suficiente uma segurança jurídica que cause a insegurança social. A presença do risco, da insegurança, da instabilidade é rotineira a partir do escopo do tudo ou nada de ganhos. Há a finalidade, inconseqüente de buscar resultados – ganhos, seja pecuniários ou científicos, industriais, etc. – sem escandir os resultados danosos, o fato se concentra na atitude a ser tomada. O Penal, por não responder adequadamente com sua tipificação, e com sua força punitiva – individualizadora, para conter abusos, está a sofrer uma hipertrofia em sua legislação e uma super exigência de sua operacionalidade em se adequar à rapidez das mudanças sociais. Como o agravamento da esfera Penal, aquele não pode antecipar-se a atos que ainda não se produziram no mundo dos fatos, melhor dizendo, é preciso da concretude do dano na real dimensão humana para a ação do penal como poder, embora, existam movimentos que estão procurando a penalidade por meio de vaticínios, imputando a meras ações status de penalmente relevantes, antes mesmo que o dano ocorra.

Políticas de reduzir risco e proporcionar segurança são voltadas para a área Penal, como se essa esfera fosse solucionar os problemas com a simples repressão. [79] Ainda, envolto por normas fundantes do sistema Penal, embora com todo o apelo da mídia, não pode sorrateira e despoticamente atuar numa ilegítima repressividade. Não há de ultrapassar o princípio da legalidade, pois caso ocorra o retrocesso, o dano será incalculável; e, ainda, embora haja o princípio da legalidade, que limita o agir penalístico à infração legislativa, é a demonstração da tentativa de contornar este preceito moderno-racional-iluminista.

Em face disso, a operacionalidade Penal encontra-se aturdida de normas específicas a serem postas em práticas, isso em decorrência da insuficiência dos códigos (tipificação comum). Tal realidade não leva a uma redução da complexidade e de risco – insegurança – na qual a esfera jurídica trabalha, mas, pelo contrário, proporciona um aumento de complexidade sem igual, em face de novas exigências legais que especificam, radicalmente, a funcionalidade do sistema Penal, criando, muitas vezes, novas modalidades de delitos e sendo responsáveis por influenciar a criação de novos meios de burlar o Direito. A inventividade é adjetivo próprio da espécie humana. Em decorrência de a norma jurídica impor-se ao futuro, destarte, sempre estará "defasada" a atividade Humana. Vaticínios não cabem ao jurídico, principalmente no campo penal, [80] sob o perigo de causar sérios danos sociais, levando, inclusive, ao caos. O cosmos jurídico trilha uma ordem independente das demais instituições culturais, mas não se pode concluir pela total abstração de influências da experiência das demais.

A onda deste movimento penalizador ocasiona abalos na estrutura social, seja em relação à vítima, ao autor e, também, agudamente, ao grupo específico que a lei penal especializada se dirige, por exemplo: leis ambientais, econômicas, etc. Logo na tentativa de reduzir o risco, acaba-se por criar hipercomplexidades, em decorrência da atuação reducionista, na sua maioria das vezes, simplória de jogar nas redes penais problemas transcendentes a sua operacionalidade e alcance coativo.

Embora as ações de risco hodiernas impliquem, não mais, somente, as conseqüências aos outros [81] do presente, mas, agora, o prejuízo é do nós do presente e do futuro [82]. Panorama este ignorado pela falta de perspectivação coletiva, quer dizer, o interesse individual(izado) não alcança uma perspectiva coletiva (social). O sistema referencial, não só da economia, mas de todas as áreas culturais básicas, é fundado no eu; o Direito, Penal, também, é constituído por uma construção teórica fundamentada na individualização. O filtro pelo qual a conduta humana é usado é, basicamente, montado sobre bases individualista, o que vislumbram o Homem como um ser axiológico auto-constitutivo, ou seja, admite, apenas, que os valores são livremente escolhidos e que as ações são, incondicionalmente – salvo as hipóteses previstas em lei –, reflexo dos valores.

Coloca-se, diante do penal uma problemática em que a solução não pode partir do próprio, deve ter-se como um ponto de auxílio, de apoio na redução ou, até mesmo, dependendo, a aceitação do problema – logo a desproblematização. Embora haja uma criação fecunda de diversas teorias que buscam adaptar o sistema penal aos parâmetros contemporâneos, a resposta – baseando-se neste trabalho – encontra-se no universo social-individual. A inflação de Leis transborda a capacidade de absorção do aparelho administrativo. Volta-se à questão da diferença entre a realidade e a teoria, do ser e dever-ser, da concretização e da abstração. No mundo hipotético há, ontologicamente, diferenças do prático, são dimensões díspares da formação do ser humano. Logo o imaginado não é, necessariamente, concretizado, sendo imprescindíveis reavaliações periódicas até a consecução do almejado. Isto não implica na desvalorização destas duas dimensões, pelo contrário, o reconhecimento das diferenças possibilitará a busca de soluções de maneira eficaz e rápida.

Com efeito, desloca-se a responsabilidade, parcialmente, para o produtor e concretizador de "sonhos", o Homem. O mundo cultural é criado, moldado e mantido pelo Homem; os instrumentos, produtos do meio, são pontos de auxílio para tornar o abstrato em concreto. Fruto de uma realidade problemática a Lei mais política do que jurídica acarreta diversas conseqüências no mundo real. [83] Não cabe a discussão deste tema mas é curial, desde logo, destacar que a má política legislativa acarreta, invariavelmente, distúrbios sociais, abalos no sistema jurídico construído e que por sua operacionalidade positivista-legalista-funcionalizada necessita, conforme a ordem constituída, recepcionar Leis anacrônicas, [84] que acabam por prejudicar, no final ou início, a cadeia jurídica o sistema de garantias do indivíduo em face do poder do Estado. [85] Com reflexos no respeito aos Direito Humanos, incluindo os de primeira [86] e segunda geração. [87] Não obstante, fica firmado o surgimento de demais gerações, sendo uma conseqüência da desatenção prestadas a estas duas gerações de Direitos, frutos de disputas de poder, primeiro do burguês e, na segunda, do proletário.

A busca de horizonte seguro sem diálogo, sem a participação esclarecida de todos (o nós), representa extravio na democracia. Impor Leis Penais, impor uma justiça penal com máxima repressão nada mais significa do que um despotismo travestido e formalizado de democracia. O Penal surge e desenvolve-se no meio de lutas objetivadas para a sua democratização, para a efetivação de propostas demo-liberais, que passam, neste momento, a serem neoliberais. No entanto, ao se encontrar com esta atual conjuntura, de crise, de insegurança, de risco, regride a uma operacionalidade de repressão, anti-garantista, [88] despótica. A assombrosa proliferação Penal, em todos os cantos sociais, e a crescente perda de garantias processuais, na busca de velocidade, apanha um nós desestruturado para suportar o ambiente criado de alto risco, ou seja, se por um lado o eu deve proteger-se de perigos sociais (como o advindo do outro: por exemplo: ambientais, químicos, bélicos, econômicos, etc.), não pode descuidar-se dos desmandos do Estado-poder. Estado que usa desmesuradamente suas prerrogativas em detrimento do risco iminente e, principalmente, na intenção de manter o seu poder em face da ascensão de uma sociedade pluralista, uma sociedade reivindicante no sentido de desmonopolização da produção de Direito.

O Penal não deve e nem suporta abraçar todos os problemas da contemporaneidade. Destaca desta forma Faria Costa (1998):

Por outras palavras: sem direito penal não se pode lutar contra o crime – onto-antropologicamente ele afirma-se irremediavelmente ligado à natureza humana – mas, paradoxalmente, não é ele a arma mais eficaz. Da mesma forma que sem remédios não podemos lutar contra a doença, é evidente que a luta mais eficaz contra esta se faz antes sem, é obvio, a utilização de fármacos. A panóplia da eficácia está fora dele. Está na diminuição da pobreza e da exclusão social. Está na afirmação da material igualdade social. Está na procura de soluções sociais que afastem, na medida do possível, a injustiça do nosso quotidiano. Por isso, o direito penal não é só ultima et extrema ratio quando cotejado com os outros ramos do direito: ele é outrossim razão vicariante na definição e encaminhamento dos comportamentos estadualmente legítimos Ao lado dele e com ele jogam outras instâncias formais de controlo. De certa maneira é porque não funcionaram aquelas outras instâncias que intervem o direito penal. [89]

Portanto, seu escopo deveria concentrar-se na regulamentação da proteção dos valores e bens relevantes socialmente. Implica, ainda, essa conduta acautelatória diante do risco desconhecido, manutenção da insegurança, ou melhor, seu não agravamento. Por isso, o diálogo, a discussão e uma análise fundada em pesquisas e reflexões são de fundamental importância na efetiva operacionalidade do sistema penalístico.

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Sobre o autor
Guilherme Camargo Massaú

especialista em Ciências Criminais pela PUC/RS, em Pelotas (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASSAÚ, Guilherme Camargo. Individualismo como incentivador da violência e o papel do Direito Penal nesse contexto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 796, 7 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7249. Acesso em: 23 dez. 2024.

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