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Algumas considerações acerca do controle jurisdicional do mérito administrativo

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3 O Controle Jurisdicional do Mérito Administrativo

            O controle jurisdicional da Administração Pública, conforme a doutrina dominante, limita-se à verificação da estrita legalidade da atividade administrativa, vedando-se examinar aspectos de mérito dos atos da Administração. O Poder Judiciário, na visão desta corrente doutrinária, tem terreno próprio de atuação, não podendo invadir a seara privativa da Administração Pública, qual seja, a livre apreciação acerca da conveniência e da oportunidade do ato que pretende apto ao alcance do resultado almejado pela norma.

            Neste sentido, a apreciação, o exame, a decisão pela prática de determinado ato administrativo, ou até pela inércia da Administração, no que toca a aspectos de mérito, fica afastada do contraste jurisdicional. Ao juiz é proibido invadir o campo privativo à Administração, no intento de examinar possíveis vícios de mérito do ato administrativo.

            Este entendimento doutrinário vem sustentado por expressa previsão legal, inserta no artigo 13, § 9°, a da Lei 221 de 1894 (21), pela qual o Judiciário deve se abster de apreciar o merecimento dos atos administrativos sob o ponto de vista de sua conveniência ou oportunidade. Por esse instrumento normativo contemporâneo ao início da Primeira República, ficava vedado o controle jurisdicional do mérito administrativo, sendo que as medidas administrativas tomadas em virtude de faculdades discricionárias somente poderiam ser controladas por ilegalidade em razão da incompetência da autoridade respectiva ou de excesso de poder – Lei n° 221/1894, artigo 12, § 9°, b.

            A jurisprudência preponderante não tem destoado desta opinião, corroborando o entendimento de que o mérito administrativo é parcela de livre apreciação subjetiva da Administração Pública, limitado o exame jurisdicional da sua razoabilidade, proporcionalidade, adequação e justiça (22).

            Em contraste com este entendimento, o próprio Supremo Tribunal Federal já se posicionou favorável ao alargamento da atuação jurisdicional, na intenção de garantir o respeito do Poder Público aos direitos subjetivos dos cidadãos, preservada, entretanto, a vedação à justiciabilidade do mérito administrativo (23).

            O controle jurisdicional do mérito administrativo deve ser abordado sob o reflexo da importante evolução da cláusula do devido processo legal, que, atualmente, não mais comporta meros aspectos processuais, constituindo-se em expressiva garantia aos direitos subjetivos dos cidadãos. A redefinição do princípio da razoabilidade como meio limitador à atuação do Poder Público, no sentido de vedar restrições desarrazoadas e inadequadas a direitos subjetivos dos cidadãos, acaba por reclamar o alargamento da atuação do Poder Judiciário, a fim de proteger os cidadãos da atuação injusta e desproporcional do Estado, onde quer que se alojem tais vícios.

            O novo conteúdo conferido ao princípio da razoabilidade apresenta a insofismável conseqüência de agigantar a atuação do Poder Judiciário, abrindo-lhe possibilidade ao exame do mérito das leis e dos atos administrativos. Conforme sustenta Carlos Roberto de Siqueira Castro, "a ampliação da competência judicante a ponto de possibilitar aos juízes e tribunais o controle meritório dos atos do Poder Público conduz à justificável proeminência dos órgãos do Poder Judiciário na disputa decisória quanto à "razoabilidade" e "racionalidade" das leis e dos atos administrativos" (24).

            Não se pode mais negar a justiciabilidade do mérito administrativo, sob o fundamento de que as questões referentes ao mérito do ato administrativo não podem ser revistas pelo Poder Judiciário, pois que, estaria o juiz atuando como administrador, em afronta ao princípio da separação dos Poderes.

            Defendendo a tese da sindicabilidade jurisdicional do mérito administrativo, ainda que vencido, o juiz do Supremo Tribunal Federal, Ministro Orozimbo Nonato, em célebre julgamento acerca da possibilidade do controle jurisdicional de legitimidade das demissões de funcionários públicos, assim se manifestou:

            Não me convenço, porém, de que, na apreciação do ato administrativo, deva o juiz limitar-se a verificar a formalização, não entrando no mérito da decisão impugnada. Não entendo que deva o poder judiciário limitar-se a apreciar o ato administrativo do ângulo visual da legalidade extrínseca e não do seu mérito intrínseco, ou seja, da sua justiça ou injustiça. A essa tese jamais darei meu invalioso apoio. Entendo, ao revés, que ao Poder Judiciário é que compete, principalmente, decidir o direito que a parte oponha à administração baseada em lei do país. Quem dirá se o ato foi justo ou injusto: a própria administração, acobertada por um inquérito formalmente perfeito, ou, a cabo de contas, o Poder Judiciário? A minha resposta é que cabe ao Poder Judiciário, por que a este compete, especificamente, resolver as pendências, as controvérsias que se ferem entre cidadãos ou entre cidadãos e o estado (25).

            Segundo o entendimento de Johnson Barbosa Nogueira, "não é aceitável o mito de que o mérito do ato administrativo é insindicável, bem como os atos discricionários. (...) Todo ato administrativo é passível de controle. Não há ato "a priori" excluído da apreciação jurisdicional, segundo SAYAGUÈS LASO" (26). Pode-se concluir, pois, que onde há poder governamental ilimitado não há Estado de direito e, tampouco, Estado democrático de direito.

            É que as questões de mérito derivam da discricionariedade administrativa, e são, em última análise, a sua própria medida. O mérito administrativo, portanto, configura-se naquela faixa decisória em que o administrador, segundo apreciação subjetiva, preenche a finalidade da norma com uma medida capaz de alcançar o resultado pretendido. Ocorre que, por vezes, o agente administrativo transborda a legitimidade de sua apreciação meritória, editando medidas inadequadas, que restringem de forma desarrazoada direitos subjetivos dos cidadãos.

            Se a apreciação meritória do administrador se mostra desarrazoada e desproporcional, é certo que não está ajustada à moldura legal – lei em sentido lato, reclamando o legítimo controle jurisdicional a fim de garantir a invalidação da excessiva restrição ao direito subjetivo dos cidadãos. Se a atuação administrativa limita de modo inadequado e desproporcional determinado direito fundamental, ilegítima se mostra a medida adotada, viciada quanto aos aspectos de mérito ou de legalidade, gravitando fora do campo da legítima atividade discricionária.


4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Ainda que a própria Constituição da República de 1988, em seu artigo 5º, XXXV, tenha expressamente garantido a inafastabilidade do Poder Judiciário quando da existência de qualquer lesão ou ameaça a direito, não se pode negar a existência de casos em que não é possível dizer, sem certa margem de dúvida, qual dentre duas ou mais medidas traria melhor resultado, com o menor ônus aos cidadãos. Nestes casos, pela própria limitação da compreensão humana, fica difícil, senão impossível, asseverar qual a medida mais razoável, oportuna, justa, conveniente e adequada.

            Em determinadas situações, nem a Administração Pública nem o Poder Judiciário podem seguramente dizer qual a medida mais adequada, já que, pelas peculiaridades do fato concreto, pela indeterminação do mandamento normativo e pela subjetividade da apreciação, não há como se pretender uma homogeneidade decisória. Nestes casos, não há como o juiz invalidar a medida escolhida pelo administrador, sob o fundamento de que, ao seu juízo, outra medida seria mais razoável. Neste aspecto reside o mérito administrativo insindicável pelo Judiciário.

            Com semelhante entendimento, Castro Nunes defende que a faixa meritória insindicável pelo Poder Judiciário é, exclusivamente, o cerne da valoração subjetiva do administrador, na escolha de um entre dois ou mais atos razoáveis e oportunos:

            A apreciação do mérito interdita ao judiciário é a que se relaciona com a conveniência ou oportunidade da medida, não o merecimento por outros aspectos que possam configurar uma aplicação falsa, viciosa ou errônea da lei ou regulamento, hipóteses que se enquadram, de modo geral, na ilegalidade por indevida aplicação do direito vigente (27).

            O controle jurisdicional do mérito administrativo não guarda uma conotação positiva, no sentido de invalidar determinada medida administrativa por que existe outra mais razoável. Ao juiz é vedado invadir o mérito administrativo e anular o ato praticado sob o fundamento de que, ao tempo da decisão administrativa, o administrador dispunha de outra medida mais adequada ao cumprimento do resultado pretendido. Compete-lhe apreciar o mérito do ato administrativo, no intento de apurar possível injustiça ou irrazoabilidade do meio empregado à solução do caso concreto. Ao Judiciário compete o controle negativo do mérito administrativo, anulando os atos que a Administração Pública tenha praticado de modo desarrazoado.

            A cláusula do devido processo legal substantivo não exige do administrador, sempre, o ato mais razoável e oportuno, até porque, em inúmeros casos, não é possível estabelecer qual o ato mais razoável. Por outro lado, a atuação desarrazoada da Administração, quer por aspectos de mérito quer por aspectos de legalidade estrita, enseja o controle jurisdicional.

            Na maior parte dos casos é possível estabelecer uma linha fronteiriça dividindo as medidas razoáveis e oportunas das desarrazoadas e inoportunas. O controle jurisdicional, nestes casos, examina se o administrador escolheu o ato que se encontrava dentro dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, não sendo possível vedar ao Judiciário o controle meritório do ato administrativo. Em outra reduzida parcela de situações, entre os atos sabidamente razoáveis e desarrazoados, existe uma faixa de atos cujos conteúdos são tidos, por uns como razoáveis e por outros como desarrazoados.

            Pode-se analisar este quadro visualizando uma fruta de suculento mesocarpo (carnuda). Toda a porção do mesocarpo, toda a polpa da fruta, constituir-se-ia nas medidas razoáveis em maior ou menor intensidade, variando conforme a compreensão de cada pessoa, uma zona de certeza positiva. Já a parte exterior da fruta seria a interminável zona de medidas inadequadas, injustas, desproporcionais e inconvenientes, que, se praticadas, ensejariam a legítima invalidação jurisdicional, ou seja, uma zona de certeza negativa. A casca, aquela fina camada que separa a fruta do meio exterior, o invólucro exterior da fruta, seria a zona de indeterminação, a faixa de incerteza, o espaço cinzento onde não se pode definir, com precisão, se a medida é oportuna e conveniente e, mesmo que apreciada pelo Judiciário deve ser mantida, pois que não se pode decidir precisamente acerca da sua razoabilidade ou irrazoabilidade, justiça ou injustiça, adequação ou inadequação.

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            Nesta estreita faixa decisória é que reside o verdadeiro mérito administrativo, o irresolúvel confim de incerteza acerca da conveniência, oportunidade, razoabilidade e justiça da medida, restando uma margem de livre apreciação ao administrador, fortemente imbuída de subjetividade, que deve ser respeitada pelo juiz quando do controle jurisdicional.

            A vedação ao controle jurisdicional desta parte do mérito administrativo não encontra irrefutável fundamento no princípio constitucional da separação dos poderes, pelo qual seria interdito ao juiz cumprir função própria de administrador público, porque a decisão de mérito é atribuição que representa o núcleo essencial da função administrativa. Justifica-se sim, na impossibilidade, pela própria limitação da compreensão humana, de se decidir, certa e objetivamente, qual dentre as medidas oportunas e convenientes é a que melhor alcança o resultado previsto no mandamento normativo.


5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. Algumas considerações acerca do controle jurisdicional do mérito administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 802, 13 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7258. Acesso em: 4 mai. 2024.

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