Conclusão
O debate travado entre as diferentes teorias democráticas, especialmente aquelas que opõem modelos formais e substanciais de limitação da soberania popular, toca diretamente na questão da legitimidade do Estado e no exercício de seu poder sobre a liberdade e autodeterminação dos seres humanos. Habermas estrutura a teoria crítico-deliberativa com a tarefa de conjugar a soberania popular (essencial à democracia) e a existência de direitos protegidos pelo Estado contra esse mesmo Estado e também contra a vontade popular. Tanto a soberania popular como a noção de garantias invioláveis dos indivíduos são construções teóricas herdadas da modernidade, de maneira que a sua solução, para Habermas, permanece ligada à modernidade [42] e, mais especificamente, à justificação racional do poder estatal.
Uma vez estabelecida como premissa teórica a possibilidade de limitação substancial da soberania popular, entendeu-se pertinente relacionar essa premissa ao sistema punitivo identificando os limites postos direito penal e processual penal de um Estado democrático de direito, considerados elementos indisponíveis à deliberação pela maioria dos membros de uma comunidade, e assegurando, por conseguinte, a estruturação de um sistema punitivo democrático.
A teoria garantista estabelece premissas de cunho epistemológico, axiológico e normativo com a finalidade de legitimar o Estado a partir da proteção dos direitos fundamentais e construir um modelo de direito penal mínimo, adequado a uma concepção ilustrada e democrática de Estado de direito, em que o Estado não é um fim em si mesmo, mas um meio que tem como fim a tutela da pessoa humana, de seus direitos fundamentais, de sua liberdade e da segurança coletiva.
No plano epistemológico, o garantismo se apresenta como um sistema cognoscitivo de poder mínimo segundo o qual o Estado-juiz age obedecendo a critérios de minimização de poder (convencionalismo penal) e maximização do saber (cognitivismo processual) judicial. No plano axiológico, o garantismo busca uma justificativa ético-política da qualidade, quantidade e necessidade da intervenção punitiva, representando a necessária legitimação dos custos do sistema punitivo. No plano normativo, tem especial relevo a separação entre legitimação interna e externa.
O garantismo também designa uma teoria jurídica que analisa a dicotomia entre o modelo normativo (geralmente garantista) e a prática de aplicação desse modelo (comumente antigarantista). Outrossim, para garantir a correlação entre o arcabouço teórico (planos epistemológico, axiológico e normativo) e sua aplicação prática, admite-se uma atuação jurisdicional "ativa", autorizando o Estado-juiz a recorrer àqueles princípios fundamentais reconhecidos como limites substanciais à soberania popular na avaliação da correspondência substancial das leis que irá aplicar a fim de garantir sua validade (recurso à legitimação externa).
Todavia, essa faculdade é uma exceção na atuação jurisdicional garantista porquanto o juízo de validade substancial da lei constitui um juízo de valor. Logo, a teoria garantista justifica o acréscimo de poderes ao Estado-juiz exclusivamente quando estiver vinculado à prevalência dos direitos fundamentais e, em especial, das liberdades individuais, sobre o interesse público repressivo, em matéria de direito penal e processual penal.
Notas
01 - VIEIRA, Oscar Vilhena: A constituição como reserva de justiça. In Lua Nova - Revista de Cultura e Política, nº 42, São Paulo: CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 1997.
02
- RAWLS, John: Justiça como eqüidade: uma concepção política, não metafísica. In Lua Nova - Revista de Cultura e Política, nº 25, São Paulo: CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 1992.03
- Segundo Habermas, na concepção liberal "o processo democrático cumpre a tarefa de programar o Estado no interesse da sociedade, entendendo-se o Estado como o aparato da administração pública e a sociedade como o sistema, estruturado em termos de uma economia de mercado, de relações entre pessoas privadas e do seu trabalho social. A política (no sentido de formação política da vontade dos cidadãos) tem a função de agregar e impor os interesses sociais privados perante um aparato estatal especializado no emprego administrativo do poder político para garantir fins coletivos" (HABERMAS, Jürgen: Três modelos normativos de democracia. In Lua Nova - Revista de Cultura e Política, nº 36, São Paulo: CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 1995, p. 39).04
- WALZER, Michael: Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999.05
- "(1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de liberdades subjetivas de ação. Esses direitos exigem como correlatos necessários: (2) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito; (3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual. (...) (4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo. (...) (5) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) a (4)" (HABERMAS, Jürgen: Direito e Democracia – entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 159/160).06
- "A teoria do discurso, que associa ao processo democrático conotações normativas mais fortes do que o modelo liberal, porém mais fracas do que o modelo republicano, toma elementos de ambos e os articula de uma forma nova e distinta. Coincidindo com o modelo republicano, ela concede um lugar central ao processo político de formação da opinião e da vontade comum, mas sem entender como algo secundário a estruturação de um Estado de Direito. Em vez disso, a teoria do discurso entende os direitos fundamentais e os princípios do estado de Direito como uma resposta conseqüente à questão de como institucionalizar os exigentes pressupostos comunicativos do processo democrático. A teoria do discurso não faz a realização de uma política deliberativa depender de uma cidadania coletivamente capaz de ação, mas sim da institucionalização dos correspondentes procedimentos e pressupostos comunicativos" (HABERMAS, Jürgen: Três modelos normativos de democracia. In Lua Nova - Revista de Cultura e Política, nº 36, São Paulo: CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 1995, p. 47).07
- "To say that citzens are free is to say, inter alia, that no comprehensive moral or religious view provide a defining condition of membership or the foundation of the authorization to exercise political power. To say that they are equal is to say that each is recognized as having the capacities required for participating in discussion aimed at authorrizing the exercise of power" (COHEN, Joshua: Procedure and substance in deliberative democracy. In BENHABIB, Seyla (org.): Democracy and Difference: Contesting the Boundaries of the Political. Princeton University Press: New Jersey, 1994, p. 96).08
- "A deliberative conception puts public reasoning at the center of political justification. I said ‘public reasoning’ rather than ‘public discussion’ because a deliberative view cannot be distinguished simply by its emphasis on discussion rather than bargaining or voting. (…) The conception of justification that provides the core of the ideal of deliberative democracy can be captured in an ideal procedure of political deliberation. In such a procedure participants regard one another as equals; they aim to defend and criticize institutions and programs in terms of considerations that others have reason to accept, given the fact of reasonable pluralism and the assumption that those others are reasonable; and they are prepared to cooperate in accordance with the results of such discussion, treating those results as authoritative" (COHEN, Joshua: Procedure and substance in deliberative democracy. In BENHABIB, Seyla (org.): Democracy and Difference: Contesting the Boundaries of the Political. Princeton University Press: New Jersey, 1994, p. 99/100).09
- "Evidente que a regra da maioria desempenha um papel de destaque nesse processo de decisão coletiva entre indivíduos iguais, porém a decisão democrática não depende de um simples fato aritmético. Essa decisão deve resultar de um processo de formação livre e racional da vontade. Portanto a manutenção de certos direitos é tão essencial à democracia como a própria regra da maioria. Nesse sentido o precomprometimento constitucional, por intermédio de cláusulas super-constitucionais, será moralmente legítimo toda vez que proibir os cidadãos de se auto-destruírem enquanto seres igualmente livres, portadores de direitos que protegem sua condição de dignidade humana. (...) As cláusulas pétreas não precisam assim buscar no direito natural a sua fundamentação, mas prospectivamente retiram sua legitimidade da capacidade de compreender quais as pré-condições fundamentais para a preservação da autonomia privada e pública dos cidadãos" (VIEIRA, Oscar Vilhena: A constituição como reserva de justiça. In Lua Nova - Revista de Cultura e Política, nº 42, São Paulo: CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 1997, p. 79/80).10
- "Las cuatro dimensiones, en cambio, son todas necesarias y conjuntamente suficientes para definir el paradigma de la actual democracia constitucional, con base en la cual se sustrae a cualquier poder decisional, tanto público como privado, la disponibilidad no sólo de los derechos políticos y del método democrático en la formación de las decisiones, sino del entero conjunto de los derechos fundamentales y de los otros principios constitucionales, como la división de poderes, la independencia de la jurisdicción – tanto de la ordinaria como constitucional – y las varias figuras de incompatibilidad dirigidas a impedir excesos de poder y conflictos de intereses" (FERRAJOLI, Luigi: Sobre la definición de "democracia". Una discusión con Michelangelo Bovero. In ISONOMIA, nº 19, Alicante: Universidade de Alicante, 2003, p. 232).11
- "La positivización de principios y derechos fundamentales en normas constitucionales, condicionando la legitimidad del sistema político a su plena tutela y observancia, ha incorporado también en la democracia una dimensión sustancial, que se añade a la dimensión formal o política tradicional. Quiero decir que dimensión sustancial de la validez de las leyes en el estado constitucional de derecho, determinada por los principios sustanciales que no pueden ser derogados por sus contenidos, se traduce en una dimensión sustancial de la democracia misma. De la misma manera en la que la dimensión formal de la vigencia, determinada por las reglas de procedimiento sobre la forma de las decisiones, corresponde a la dimensión formal de la democracia.". (FERRAJOLI, Luigi: Juspositivismo crítico y democracia constitucional. In ISONOMIA, nº 16, Alicante: Universidade de Alicante, 2002, p. 12/13).12
- FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 30.13
- FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 31.14
- "Somente por convenção jurídica, e não por imoralidade intrínseca ou por anormalidade, é que um determinado comportamento constitui delito; e a condenação de quem se tenha provado ser responsável não é um juízo moral nem um diagnóstico sobre a natureza anormal ou patológica do réu" (FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 33).15
- FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 35.16
- FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 36.17
- "A definição de ‘verdade formal’ ou ‘processual’ e a análise das condições nas quais uma tese jurisdicional é (ou não é) ‘verificável’ e ‘verificada’ constituem, pois, o primeiro capítulo de uma teoria analítica do direito e do processo penal e, também, os principais parâmetros de um sistema penal garantista. Sem uma adequada teoria da verdade, da verificabilidade, e da verificação processual, toda a construção do direito penal do iluminismo, que aqui chamei de ‘cognitiva’ ou ‘garantista’ termina apoiada na areia; resulta desqualificada, enquanto puramente ideológicas as funções civis e políticas a ela associadas" (FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 39).18
- "Para considerar as premissas que acabam de ser referidas, impende considerar que no Estado Constitucional e Democrático de Direito, fundado nos direitos fundamentais, o Direito penal (particularmente o Direito penal que envolve o ius libertatis), em razão dos custos e da violência que significa, somente se justifica quando presentes algumas exigências ético-políticas (...)" (GOMES, Luiz Flávio: Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: RT, 2002, p. 15).19
- "Refletindo sobre o peso destes custos, compreende-se a centralidade que o direito penal ocupa na caracterização de um ordenamento jurídico e do sistema político que através deste se expressa. No tratamento penal manifesta-se – em estado puro e na maneira mais direta e conflitual – a relação entre Estado e cidadão, entre poder público e liberdade privada, entre defesa social e direitos individuais. O problema da legitimação ou justificação do direito penal, conseqüentemente, ataca, na raiz, a própria questão da legitimidade do Estado, cuja soberania, o poder de punir, que pode chegar até ao ius vitae ac necis, é sem sombra de dúvida, a manifestação mais violenta, mais duramente lesiva aos interesses fundamentais do cidadão e, em maior escala, suscetível de degenerar-se em arbítrio. A falta de correspondência entre culpados, processados e condenados, e, em particular, a ‘cifra de injustiça’, formada pelas, ainda que involuntárias, punições de inocentes, cria, de outra parte, complicações gravíssimas e normalmente ignoradas ao problema da justificação da pena e do direito penal. Se, com efeito, os custos da justiça e aqueles opostos da ineficiência podem ser, respectivamente, justificados em modo positivo, ou tolerados com base em doutrinas e ideologias de justiça, os custos da injustiça, por seu turno, são, neste diapasão, injustificáveis, consentindo ao direito penal que os produz apenas uma justificativa eventual e negativa, ancorada nos custos maiores que, hipoteticamente, a falta de um direito penal e das suas garantias acarretaria. Porém, a cifra da injustiça, como facilmente perceptível na análise até o momento realizada, é, principalmente, o produto da carência normativa ou da não efetividade prática das garantias penais e processuais, que acabam por prestar-se ao arbítrio e ao erro. E, ao menos no que tange aos ordenamentos modernos, quanto mais cresce o Poder Judiciário das disposições já evidenciadas, tanto maior se tornam a ilegitimidade jurídica e a injustificabilidade política. O problema da justificação, portanto, se confunde, em larga escala, com o problema do garantismo, posto que, como veremos, as suas soluções dependem dos modelos normativos de direito e de processo penal escolhidos e do seu efetivo funcionamento" (FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 89).20
- "Quando deve o Estado intervir para impor uma pena a determinada conduta? Esta pergunta nos leva à questão tão discutida de saber se o Direito Penal tem ou não tem caráter secundário. (...) A polêmica surgiu, em grande medida, com o desacerto da escolha da palavra ‘secundário’ para designar algo que é essencial ao Direito Penal. Por ‘secundário’ se entende, em linguagem corrente, algo sem importância, irrelevante. E o Direito Penal é tudo, menos isso. Muitos autores afirmam, de fato, que nossa disciplina é secundária; mas com isso não pretendem discutir sua importância, mas sublinhar que o recurso à pena para proteger interesses socialmente relevantes é o extremo, que o Direito Penal apenas intervém em última instância; pois a privação da liberdade, da vida, inclusive (pena de morte), supõe uma intervenção tão profunda na esfera individual que somente se deve recorrer a ela quando os bens jurídicos atingidos sejam da máxima envergadura e outra conseqüência jurídica distinta da pena não ofereça garantia suficiente de proteção" (ORDEIG, Enrique Gimbernat: Conceito e método da ciência do direito penal. São Paulo: RT, 2002, p. 25).21
- "A violação de um bem jurídico-penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização de cada um na comunidade. Nesta precisa acepção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da política social e sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária" (DIAS, Jorge de Figueiredo: Questões fundamentais do direito penal revisadas. São Paulo: RT, 1999, p. 78).22
- "A cadeia principiológica elaborada pelo autor serve como instrumento avaliativo de toda incidência do sistema penal, desde a elaboração da norma pelo legislativo até a irrogação da pena. Viabiliza ao intérprete uma principiologia adequada para legitimação/deslegitimação de todo o espectro teórico sistemático da atuação penal: da teoria da norma (princípio da legalidade, princípio da necessidade e princípio da lesividade) à teoria do delito (princípio da materialidade e princípio da culpabilidade) e da teoria da pena (princípio da retribuição jurídica), bem como da teoria processual (princípio da jurisdicionalidade, princípio da presunção de inocência, princípio acusatório, princípio da verificabilidade probatória, princípio do contraditório e princípio da ampla defesa). Tais princípios correspondem às ‘regras do jogo’ do direito penal no interior dos Estados democráticos de direito e, dado ao fato de sua gradual incorporação constitucional, conformam vínculos formais e materiais de validade jurídica das normas penais e processuais penais" (CARVALHO, Salo de: Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 88).23
- Por teoremas derivados das máximas devemos entender todas as possíveis relações dos axiomas, de onde derivam as afirmações: A11 – Nulla poena sine lege; A12 – Nulla poena sine necessitate; A13 –Nulla poena sine injuria; A14 –Nulla poena sine actione; A15 –Nulla poena sine culpa; etc; A21 –Nullum crimen sine necessitate; A22 –Nullum crimen sine injuria; A23 –Nullum crimen sine actione; A24 –Nullum crimen sine culpa; e assim por diante.24
- FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 83.25
- "Nos ordenamentos dos modernos Estados de direito, caracterizados pela diferenciação em vários níveis de normas, estas duas tendências opostas convivem entre si, caracterizando a primeira os níveis normativos superiores, e a outra, os níveis normativos inferiores, e dando lugar com sua separação a uma ineficiência tendencial dos primeiros e uma ilegitimidade tendencial dos segundos" (FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 83).26
- "Os fundamentos do direito penal moderno são lançados em bloco pela Ilustração, tendo em vista a coerência e sintonia de suas proposições: a lei penal – geral, anterior, taxativa e abstrata (legalidade) – advém de contrato social (jusnaturalismo antropológico), livre e conscientemente aderido por pessoa capaz (culpabilidade/livre arbítrio), que se submete à penalidade (retributiva) em decorrência da violação do pacto por atividade externamente perceptível e danosa (direito penal do fato), reconstituída e comprovada em processo contraditório e público, orientado pela presunção de inocência e pela atividade imparcial, visto ser a prova livremente apreciada pelo juiz (sistema processual acusatório). Assim, percebe-se claramente um programa de intervenção penal limitada cuja centralidade é a tutela dos direitos fundamentais do homem contra os poderes irracionais, tanto públicos (Estado) como privados (terceiros)" (CARVALHO, Salo de: Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 55/56).27
- "As doutrinas coletivistas consideram a normalidade da subordinação do indivíduo ao poder exclusivo e total do Estado. O indivíduo perde sua identidade real em função da universalidade ético-política em progressão. O coletivismo, em seu aspecto genérico, tende a compartilhar da concepção hegeliana do que o Estado está acima do indivíduo e da sociedade. (...) O Estado, para Hegel, ultrapassa a realidade social concreta para se alojar na categoria de ‘moralidade concreta absoluta’. As variáveis estabelecidas dimensionalizam o jogo da tese e antítese que perfazem, de um lado, o elo de junção, configurado na família e, de outro, a dispersão das relações, representada pela sociedade civil. Ambas – família e sociedade civil – não passam de meros esquemas abstratos e quase inexistentes em face da única realidade materializada, a verdadeira expressão do ‘espírito objetivo’ – o Estado. A proposição hegeliana de Estado – assevera com segurança Gurvitch – encarna ‘a realidade de idéia moral, a totalidade ética, a realização da liberdade, o verdadeiro organismo, o infinito real, o espírito na sua racionalidade absoluta e na sua realidade imediata’" (WOLKMER, Antonio Carlos: Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: RT, 2000, p. 68/69.)28
- "(...) e é precisamente isso, como diremos melhor no parágrafo 60.2, que os distingue de qualquer outro tipo de direito, em particular o direito de propriedade e dos outros direitos patrimoniais, que não são invioláveis enquanto não são, obviamente, inalienáveis" (FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 691).29
- "Desde luego em uma democracia puede estabelecerse el domínio de la razón, de la ley, del progresso, o de um derecho divino, y qualquiera de ellos puede determinar em um sentido material la regulación de la vida em común, pero solo cuando y em la medida em quel el pueblo lo quiera así y lo haga suyo como titular del poder del Estado" (BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang: Estudios sobre el Estado de Derecho y la democracia. Editorial Trotta, 2000, p. 54).30
- "A garantia desses direitos correspondem a pré-condições de convivência, sendo que sua lesão por parte do Estado justificaria o dissenso, a resistência e a guerra civil. O que nos parece relevante sublinhar é o fato de que todas as pessoas, independentemente de incorrerem ou não em sanção penal preservam e devem ter garantidas igualmente condições mínimas de dignidade. O garantismo penal é um instrumento de salvaguarda de todos, desviantes ou não, visto que, em sendo estereótipo de racionalidade, tem o escopo de minimizar a violência e garantir a paz" (CARVALHO, Salo de: Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 99).31
- FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p.289.32
- Luiz Werneck Vianna examinou a questão da politização da justiça no Brasil (VIANNA, Luiz Werneck et alii: A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999). Observou o pesquisador que as demandas normativas decorrentes de um determinado modelo de Estado não são atendidas pelo Poder Legislativo (Poder mais democrático), gerando uma demanda crescente entre grupos sociais e uma desqualificação da política na organização social. O Legislativo também fica refém da profusão legislativa do Poder Executivo, gerando um desequilíbrio entre os poderes. Nesse quadro, o Poder Judiciário é instado a atuar para resolver os conflitos coletivos sociais, bem como para controlar os demais poderes políticos por meio de interpretações do direito. Vianna reproduz, ainda, o alerta de Habermas, para quem a expansão do poder do direito por meio de largas margens de interpretação põe em risco a democracia representativa ao transferir a "elaboração" das leis para uma "casta sacerdotal" que atua como guardiã de uma ordem suprapositiva de valores.33
- "Desde hace algún tiempo se presencia un fenómeno que, con mayor o menor propiedad – tanto en lenguaje periodístico como en ciertos niveles de estudio – se denomina como protagonismo judicial. El fenómeno consiste en una aparente hiper-actividad de la acusación pública y la jurisdicción penal, llamada a intervenir en asuntos de una supuesta mayor entidad política respecto de los otros para las que regularmente aquéllas están predispuestas" (BERGALLI, Roberto: Protagonismo judicial y representatividad política. In DOXA. Cadernos de filosofia do direito, nº 15-16, Alicante: Universidade de Alicante, 1994, p. 423).34
- "O espaço original da liberdade dos cidadãos permanece tanto maior quanto menor for o do ‘proibido’. É de se exigir, portanto, o máximo de precisão das proibições legais, já que toda ambigüidade dilata o campo de ação do aparato estatal na aplicação das leis. Nesse sentido, o poder de interpretação dos tribunais em face de leis deve ser o mais limitado possível" (MAUS, Ingeborg: Judiciário como superego da sociedade. In Novos Estudos, nº 58, São Paulo: CEBRAP Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, 2000).35
- "Campanhas de lei e ordem. Por seu intermédio, canaliza-se um sentimento de insegurança cidadã, quando o poder das agências é ameaçado (cortes orçamentários, mudanças de jurisdição operacional), ou quando se aproxima alguma ruptura institucional e se procura gerar a necessidade de ‘ordem e segurança’, qualidades que se auto-atribuem os regimes com vocação totalitária, pelo simples expediente do desaparecimento das notícias (Zaffaroni, 1989: 133)" (...) "Certamente o temor nem sempre se funda em fatos concretos, mas antes em uma percepção subjetiva de uma possível ameaça, que se vê fomentada, muitas vezes, através de campanhas orquestradas pelos meios de comunicação. Isso não é gratuito nem casual, pois o temor, além de aparecer como conseqüência social do delito, converte-se em um precipitador coletivo facilmente manipulável e eu um importante fator econômico que gera gastos em prevenção e segurança em pessoas empresas, instituições e no próprio Estado, que também é atingido pelos efeitos desse medo" (CERVINI, Raul: Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, pp. 86 e 89, respectivamente).36
- Um exemplo de legislação de exceção são os "USA Patriot Acts" (o primeiro deles concebido, votado e aprovado menos de dois meses após o ataque terrorista, expressando perfeitamente o conceito de legislação de emergência) que trouxeram trouxe uma completa modificação no sistema penal e processual penal estadunidense (cuja constituição sempre esteve firmemente ancorada nos princípios liberais e na figura do Estado gendarme). As mudanças foram as mais variadas possíveis, indo desde uma definição extremamente vaga e aberta do crime de terrorismo até a possibilidade de que o Estado promova buscas em residências sem qualquer comunicação ao investigado (nem mesmo depois de terminada a investigação), passando pela proibição de que presos tenham acesso privado aos seus advogados e pela criação de tribunais militares secretos especialmente para julgar indivíduos suspeitos de participarem de atividades terroristas.37
- A preocupação de que tais medidas legislativas (que constituem uma exceção ao Estado de Direito) acabem por ser "incorporadas" definitivamente ao ordenamento jurídico é exposta por Bruce Ackerman em trabalho recente, publicado em abril de 2004. Ackerman revela que nem as leis de guerra e menos ainda as leis criminais são apropriadas para lidar com a ameaça terrorista e afirma, sobretudo, que a legislação de emergência tem como finalidade a reafirmação da soberania estatal (reassurance function) e a tranqüilização da população, justamente a razão pela qual não pode esse tipo de legislação perpetuar-se, sob pena de haver uma naturalização da opressão: "The retoric of war does express the shattering affront to national sovereignty left in the aftermath of a successful terrorist attack. But when translated from politics to law, it threatens all of us with indefinite detention without the traditional safeguards developed over centuries of painful struggle" (ACKERMAN, Bruce: The Emergency Constitution. In Yale Law Journal, Volume 113, Issue 5, 2004, p. 1033). Ronald Dworkin destaca que a incorporação do discurso de terror, guerra e emergência nas práticas estatais solapa instituições como o Estado de Direito e a democracia. Referindo-se ao Ato Patriótico, questiona o reflexo da nova legislação nos padrões de justiça, eqüidade e decência da sociedade estadunidense e alerta que os direitos cedidos ao Estado nesse momento tornar-se-ão difíceis de serem resgatados no futuro: "What we lose now, in our commitment to civil rigths and fair play, may be much harder later to regain" (DWORKIN, Ronald: The Threat to Patrotism. In The New York Review, Volume 49, n° 3, 28 de fevereiro de 2002, Disponível em http://www.nybooks. com/articles/15145. Acesso em 15 de março de 2005).38
- O termo "inimigo" remete para a teoria do Direito Penal do Inimigo cujas "(...) principais bandeiras são: a) flexibilização do princípio da legalidade (descrição vaga dos crimes e das penas); b) inobservância de princípios básicos como o da ofensividade, da exteriorização do fato, da imputação objetiva etc.; c) aumento desproporcional de penas; d) criação artificial de novos delitos (delitos sem bens jurídicos definidos); e) endurecimento sem causa da execução penal; f) exagerada antecipação da tutela penal; g) corte de direitos e garantias processuais fundamentais; h) concessão de prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao direito (delação premiada, colaboração premiada etc.); i) flexibilização da prisão em flagrante (ação controlada); j) infiltração de agentes policiais; l) uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares (interceptação telefônica sem justa causa, quebra de sigilos não fundamentados ou contra a lei); m) medidas penais dirigidas contra quem exerce atividade lícita (bancos, advogados, joalheiros, leiloeiros etc.)"(GOMES, Luiz Flávio: Críticas à tese do direito penal do inimigo. Disponível em: http://www.ultimainstancia.com.br/noticias/ler_noticia. php?idNoticia=5504>. Acesso em: 15 de março de 2005). Sobre o tema do Direito Penal do Inimigo, confira-se, por todos, JACKOBS, Günther e CANCIO MELIÁ, Manuel: Derecho penal del enemigo. Madri: Civitas, 2003.39
- Como conseqüência dessa mudança de foco, não se pune o agente conforme sua culpabilidade, mas pela periculosidade. Logo, não há que se falar em proporcionalidade entre o dano causado e a resposta penal, sendo o sistema punitivo orientado pelo princípio da excessividade. "The principle of a preventive state which focuses one-sidely on security, in contrast, is excessiveness in the dual sense of ‘lacking in standarts’ and of achieving ‘more and more’ and ‘better and better’ results" (DENNINGER, Erhard: Freedom versus security. Disponível em: http://www.goethe.de/kug/ges/ rch/thm/em163802.htm>. Acesso: 15 de março de 2005).40
- Essa característica é sublinhada por Denninger na seguinte passagem: "The ongoing discussion about the most suitable forms and instruments for combating ‘organized crime’ iluminates the general process within the sphere of internal security: the time-honored system of criminal procedure, originally conceived as a protection for citizens and as an assurance of their right to fair, rule of law-based treatment, as well as a way of buttressing the ‘search for truth’ in order to clear up crimes, is presently being converted into as efficient as possible a weapon in the ‘fight agains criminality’. There are now criminal searches, undercover agents (government officials, outfitted with fake names and Ids, who infiltrate criminal organizations), both minor and major wiretapping, as well as the break-up of proto-criminal structures in ‘anticipation’ of the ‘beginnings of suspicion’ of a crime, to name just a few of the key treds pointign to the end of the ‘classical’ liberal system of legal security. This has to be acknowleged as the face of the ‘preventive state’ in one wants to provide a reasonable account of the situation at hand" (DENNINGER, Erhard: "Security, Diversity, Solidarity" instead of "Freedom, Equality, Fraternity". In Constellations, Volume 7, n° 4, Oxford: Blackwell Publishers Ltd., 2000, p. 515).41 - "A doutrina afirma que é possível a analogiain bonam partem, isto é, que é permitido defender uma solução incompatível com a letra da lei se isso favorece ao réu e se existem pontos de vista materiais que falam por ela. A doutrina tem razão. Isso se deduz de uma interpretação teleológica do ‘princípio da legalidade’cuja existência obedece, fundamentalmente, à gravidade da conseqüência jurídica que a lei penal ordena, isto é, à gravidade da pena, que supõe uma intervenção nos bens mais preciosos da pessoa (vida, liberdade). Fato é que a comunidade, para proteger interesses jurídicos de suma importância, pode restringir a liberdade do indivíduo; porém, esta intervenção é de uma transcendência tal que o cidadão pode exigir que lhe digam, com clareza, quais são os comportamentos motivadores de uma reação estatal tão radical; pode exigir que lhe seja garantido que não acontecerá de ser surpreendido, de uma hora para outra, com o fato de o Estado o privar de bens tão fundamentais como a liberdade, a honra, empregos e cargos públicos que tiver o sujeito, por atos de cuja proibição não o informaram antes que os cometesse. Resumindo: em Direito Penal, e quando o teor literal é claro, o intérprete somente tem duas alternativas: ou acolher o significado das palavras legais em toda a sua extensão ou limitá-lo (para mais ou para menos). Apenas quando uma interpretação, materialmente fundamentada, favoreça o réu é lícito prescindir do ‘significado possível’ da lei penal" (ORDEIG, Enrique Gimbernat: Conceito e método da ciência do direito penal. São Paulo: RT, 2002, p.44/45).
42 - "Como quiera que los ideales de la modernidad fueron los valores ilustrados de la razón, la libertad, la igualdad y la fraternidad universal, debiéramos ser conscientes que la negociación posmoderna de la tradición ilustrada comporta um abandono de esos valores que siguen siendo básicos. Tiene razón Habermas cuando indica que la modernidad constituye um proyecto inacabado y que, em lugar de abandonar esse proyecto como uma causa perdida, deberíamos aprender de los errores de aquellos programas extravagantes que trataron o tratan de negar la modernidad" (PEREZ LUÑO, Antonio-Enrique: Derechos humanos y constitucionalismo en la actualidad: ¿Continuidad o cambio de paradigma? In PEREZ LUÑO, Antonio Enrique (ord): Derechos humanos y constitucionalismo ante el tercer milenio. Madri: Marcial Pons, 1996, p. 13).