A discricionariedade do gestor e a contratação direta por inviabilidade de competição

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15/03/2019 às 17:19

Resumo:


  • O processo de contratação pública geralmente requer um procedimento licitatório, mas em certos casos a lei permite a contratação direta, seja por dispensa ou inexigibilidade de licitação.

  • As hipóteses de inexigibilidade de licitação são exemplificativas e dependem da avaliação da inviabilidade de competição, enquanto as situações de dispensa são taxativas.

  • Apesar da discricionariedade na escolha de contratações diretas por inexigibilidade, existem limites e requisitos legais a serem observados para garantir a conformidade com os princípios da administração pública.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente artigo procura discorrer sobre as interações existentes entre a discricionariedade do gestor público e a contratação direta por inviabilidade de competição.

1 Introdução

O certame, por meio de um processo licitatório, é a regra para as contratações públicas, seja no âmbito da administração pública direta ou indireta[1], como no âmbito das empresas estatais[2]. Em alguns casos, no entanto, a lei autoriza a contratação direta, seja por dispensa de licitação ou inexigibilidade[3].

No primeiro caso, a legislação elenca taxativamente, numerus clausus, as hipóteses em que a dispensa de licitação é possível. Assim, o Administrador público possui um leque estrito de possibilidades em que pode se valer da dispensa para uma contratação direta.

Por outro lado, no segundo caso, quando a hipótese é de inviabilidade de competição, os permissivos legais são meramente exemplificativos, não existindo limites claros de que em quais situações é admitida a contratação direta por inexigibilidade de licitação[4].

Em razão disso, pretende-se neste artigo discorrer sobre os limites, porventura existentes, para que o gestor se valha da contratação direta por inviabilidade de competição. À primeira vista, percebe-se que os limites da inexigibilidade de licitação são, por vezes, muito elásticos[5].

A inquietação deste artigo surgiu da constatação, por meio de pesquisa perfunctória nas publicações feitas no Diário Oficial da União, de um leque amplo de contratações diretas por inexigibilidade de licitação cujos objetos são consultorias, assessorias, treinamentos, patrocínios, dentre outros tipos de bens e serviços, dos mais variados tipos.

Ademais, segundo estatísticas das compras governamentais, elaborado pelo Ministério do Planejamento, nas contratações efetuadas pela Administração Pública direta federal, os processos de inexigibilidade de licitação, em termos de valor envolvido, alcançam o segundo lugar do ranking, ficando atrás somente das contratações efetuadas por meio de pregão eletrônico.

Tantas contratações da espécie são deveras preocupante, haja vista que a regra, como dito alhures, é a competição entre os interessados. A exceção, portanto, não deve se tornar uma regra[6].

É certo, prima facie, que existe uma certa carga de discricionariedade[7] inerente a uma contratação por inviabilidade de competição, mas isto não significa que inexistem limites ou marcos de observância jurídicos para este tipo de contratação.

Nesse diapasão, busca-se analisar e compreender quais são as divisas das quais o Administrador pode, ou não, optar por uma contratação direta por inexigibilidade de licitação.

O tema proposto é relevante para definir a atuação estatal, principalmente na aquisição de produtos, realização de obras, solicitação de serviços e alienação de bens[8], estabelecendo quando será possível, ou não, realizar uma contratação por inviabilidade de competição.

2 A inviabilidade de competição

A inexigibilidade de licitação ocorre quando se constata uma situação de inviabilidade de competição[9]. Acerca do tema, leciona Marçal Justen Filho[10] que a inviabilidade se verificará quando houver impossibilidade de seleção entre diversas alternativas, sendo as abordagens da Lei de Licitações meramente exemplificativas. Complementa o referido autor[11]:

É difícil sistematizar todos os eventos que podem conduzir à inviabilidade de competição. A dificuldade é causada pela complexidade do mundo real, cuja riqueza é impossível de ser delimitada através de regras legais. As causas de inviabilidade de competição podem ser agrupadas em dois grandes grupos, tendo por critério a sua natureza.

Sobre a matéria, outrossim, ensina também Lucas Rocha Furtado[12] que “sempre que houver inviabilidade de competição, e isso seja devidamente demonstrado e comprovado, estará autorizada a contratação direta, em face de sua inexigibilidade (art. 25, caput)”.  

Extrai-se da doutrina suso mencionada, portanto, que as hipóteses legais de contratação direta por inviabilidade de competição são assemelhadas a uma norma em branco, pois não encerra o comando normativo em seu texto.

Em verdade, trata-se de um conceito indeterminado ou vago[13], na medida em que, ante a imprecisão legislativa, remete a sua completude à tarefa de subsunção do fato à norma[14], gerando uma inesgotabilidade de possibilidades de contratações direta por inviabilidade de competição.

Desse modo, ante a sua característica exemplificativa[15], deixa um leque de opções, inominadas, à disposição do Administrador. E, nesse caso, cabe justamente ao Administrador, com apoio do seu staff técnico, a realização do complemento normativo, apontando em que casos concretos a inviabilidade de competição estaria caracterizada. Percebe-se, assim, que a inexigibilidade de licitação decorre de uma situação fática ou técnica, perante a qual a Administração, em vista de uma necessidade, depara-se com a inviabilidade de competição.

Difere dos casos de dispensa de licitação em que o rol de hipóteses é extenso e exaustivo, descabendo a criação de dispensas não previstas expressamente em Lei. Explica o ilustre doutrinador Marçal Justen Filho[16]:

A inexigibilidade deriva da natureza das coisas, enquanto a dispensa é produto da vontade legislativa. Esse é o motivo pelo qual as hipóteses de inexigibilidade indicadas em lei são meramente exemplificativas. Enquanto as de dispensa são exaustivas, é que somente a dispensa de licitação é criada por lei - logo, a ausência de previsão legislativa impede o reconhecimento de dispensa de licitação. As hipóteses de inexigibilidade dependem das circunstâncias, impondo-se sua adoção independentemente da vontade do legislador.

A Lei nº 8.666/93, que institui as normas para licitações e contratos da Administração Pública, não define parâmetros objetivos claros que limitem a inexigibilidade de licitação, trazendo um elenco meramente exemplificativo, o que acaba deixando a cargo do Administrador público a definição dos casos em que a licitação se mostra inviável.

O art. 25 do aludido diploma legal[17] traz três situações em que a licitação se mostra inexigível, mas não esgota o tema, o que acaba por deixar uma porta aberta para abusos, intencionais ou não, do Administrador. Na mesma senda, o art. 30 da Lei nº 13.303/2016, que trata da contratação direta por inexigibilidade de licitação nas empresas estatais, também deixa margem para a deliberação administrativa.

A discricionariedade[18] permeia esta espécie de contratação, mas isto não significa livre arbítrio[19], que a contratação direta por inviabilidade de competição não possua requisitos e limites para serem observados.

Hartmut Maurer entende que “o poder discricionário não proporciona liberdade ou até arbitrariedade da administração. Não existe poder discricionário livre, mas somente um poder discricionário conforme o seu dever, ou melhor: um poder discricionário juridicamente vinculado”[20].

3 Limites da discricionariedade

Constata-se que a Constituição Federal e as leis infraconstitucionais (Lei nº 8.666/93 e Lei nº 13.303/2016) são muito flexíveis, aparentemente, com as contratações por inviabilidade de competição. Tal flexibilidade pode dar margem a desvios na atuação do Administrador Público e, por consequência, contribuir para a burla do mandamento constitucional da licitação como regra.

Na mesma senda, a nebulosidade das hipóteses permitidas pela Lei, no que tange à inviabilidade de competição, pode levar o Administrador Público a ser acionado pelos órgãos de controle (Ministério Público, TCU, CGU, etc.) mesmos nos casos em que se comportava uma contratação direta por inviabilidade de competição.

Não se está a defender engessar as contratações públicas, tampouco se pretende dizer que apenas pela via do certame licitatório é que a Administração Pública pode contratar com terceiros, mas alertar que é necessário a existência de balizas que devem ser observadas pelo Administrador Público para que se realize uma contratação direta por inviabilidade de competição.

Nesse espeque, é necessário ter em mente um viés de mão dupla: são necessários limites nas contratações diretas por inviabilidade de competição e, ao mesmo tempo, ao se observar todas as balizas para esta espécie de contratação, deve-se afastar o risco de o gestor público vir a ser penalizado por órgãos de controle ou a se tornar réu em ações judiciais promovidas pelo parquet.

A Constituição Federal de 1988, apesar de analítica, não estabelece parâmetros objetivos para a contratação direta por inviabilidade de competição. De igual forma, tanto a Lei nº 8.666/93 como a Lei nº 13.303/2016 também deixam margem para a atuação estatal sem critérios objetivos para a contratação direta por inexigibilidade de licitação[21].

Nesse quadro, como dito, o procedimento licitatório, pela via de uma competição entre todos os interessados aptos para atender o objeto demandado pela Administração Pública, é a regra nas contratações no âmbito da Administração Pública e, portanto, a contratação direta, seja qual a sua modalidade, constitui uma exceção, prevista na própria Constituição Federal, que permite, de acordo com o previsto em Lei Ordinária, a realização de contratações diretas[22].

Para Jorge Ulysses Jacoby Fernandes[23], a limitação das margens da discricionariedade do Administrador Público podem ser obtidas pelo confronto do interesse público e a natureza da contratação, existindo um certo limite de valoração de ordem moral, mas nem por isso incontrastável com o Direito.

Nessa senda, parece relevante traçar balizas com o apoio da Constituição Federal, nos princípios que se irradiam do seu texto, como o art. 5º, caput, que elenca o princípio da isonomia. Outrossim, o art. 37, caput, determina explicitamente que a Administração Pública obedeça aos princípios, dentre outros, da moralidade, impessoalidade e publicidade[24].

A respeito da influência do princípio da moralidade no processo de contratação, Diogo de Figueiredo Moreira Neto explicita que ele “vem acrescer ao processo um forte balizamento de licitude, que é sempre especialmente exigido no comportamento do Poder Público, além e em acréscimo da legalidade estrita e da legitimidade finalística” [25].

De igual forma, o art. 1º, inciso IV, e o art. 170, inciso IV, ambos da Constituição Federal, expõem que a livre iniciativa deve ser respeitada e, como fruto disso, a ampla competitividade entre os interessados em contratar com a Administração Pública deve ser observada antes do Administrador partir para uma contratação direta por inviabilidade de competição[26].

Juntamente a tais vetores constitucionais, devem ser pensados em mecanismos que viabilizem um compliance adequado em situações de contratação direta por inviabilidade de competição e um accountability voltado para as decisões do gestor público nesta seara.

Cumpre ressaltar que, como meio de controle, mesmo nos casos de inexigibilidade de licitação, é necessário a observância de um processo interno, com a devida explicitação de motivos da tomada de decisão, sendo este um requisito de seriedade e de validade dos atos administrativos, nos termos do parágrafo único do art. 26 da Lei nº 8.666/93[27].

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A respeito dos procedimentos que auxiliam no controle da gestão pública, Ronny Charles Lopes de Torres[28] menciona:

A contratação direta deve obediência aos princípios do Direito Administrativo, exigindo, por exemplo, a realização de um procedimento formal, destinado a justificar a escolha de tal contratação, aprovação pela autoridade competente e o delineamento de seus parâmetros e objetivos. Prática correta e que atende ao interesse público é a realização de pesquisa de preços com empresas do mercado, a justificativa do preço contratado e a razão de escolha do fornecedor. Por conta dessas cautelas burocráticas, parte da doutrina sugere que a contratação direta seria uma “modalidade anômala de licitação”.

E mais, o direito à informação, ampla e com transparência, para toda a sociedade, com o intuito de amplificar o controle da coisa pública deve ser observado, igualmente como ferramenta limitadora da tomada de decisão do Administrador Público, ao optar, ou não, pela contratação direta por inviabilidade competição. Nesse sentido, Maria Paula Dallari Bucci explicita que “a informação organizada é a base para a prestação de contas das autoridades ou gestores públicos à sociedade, a chamada responsividade ou accountability” [29].

Destarte, os limites da discricionariedade do Administrador público para a contratação direta por inviabilidade de competição podem influir nos caminhos a serem percorridos pelo Administrador Público para a realização das contratações e, por conseguinte, afetar a gestão de políticas públicas no que concerne às suas contratações. Por oportuno, Renato Geraldo Mendes[30] leciona:

Estudos realizados recentemente permitem concluir que saber quando a competição é viável e quando ela é inviável é a condição mais importante para atuar na área da contratação, pois é com base em tal distinção que se saberá em que caso a licitação é obrigatória e quando ela será afastada. Definir em que ocasião a licitação é obrigatória ou quando é o caso de adotar necessariamente a inexigência implicará decidir qual é o regime jurídico a ser adotado na fase externa do processo, o que possibilitará consequências muito diferentes, sob o ponto de vista das etapas e dos aros na seleção do futuro contratado.

Em suma, contratar diretamente por inviabilidade de competição é plenamente possível e admitida em lei, mas deve ser realizada como exceção à regra da competição e com cautelas para que a inviabilidade não se torne, em verdade, mera burla à licitação.

Em outros termos, os princípios da administração pública devem ser sopesados e o processo de contratação devidamente instruído, com todos os elementos que provem que a inviabilidade de competição está presente. Do contrário, estará o gestor exposto ao risco de ser sancionado nas mais diversas esferas de controle estatal.

4 Conclusões

À luz de todo exposto é possível sustentar (i) que a inexigibilidade de licitação é uma exceção que deve ser robustamente justificada a sua escolha para que não seja banalizada; (ii) há limites objetivos a serem observados pelo Administrador na contratação, tais como a necessidade de instruir o processo com as justificativas pertinentes; (iii) a moralidade, a impessoalidade, a publicidade e a eficiência, princípios de índole constitucional, devem ser tidas como balizas da atuação do Administrador Público; (iv) faz-se necessário também criar mecanismos de compliance e accountability de atuação estatal em busca do maior controle das decisões do Administrador Público quando opta pela contratação direta por inviabilidade de competição, com vistas garantir que o processo decisório, discricionário por sua própria natureza, seja revestido de fundamentação adequada para comprovar que contratação direta, por inexigibilidade de licitação, é a melhor alternativa para a necessidade a ser atendida.

Referências

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Sobre o autor
Alexandre Santos Sampaio

Advogado. Mestre em Direito pela Uniceub - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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