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Direito internacional público: os fundamentos de uma ficção?

30/04/2019 às 14:58
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Refletimos acerca dos fundamentos do direito internacional (DI) e do debate entre voluntaristas e objetivistas.

Introdução

Neste artigo, serão apresentadas algumas ideias que ressaltam a importância, teórica e prática, do fundamento do direito internacional, tema negligenciado pelos internacionalistas e por jusfilósofos contemporâneos, ainda que atual em diversos aspectos. Hodiernamente, por exemplo, os juristas dedicados ao direito internacional (DI) dividem-se em dois grandes grupos: aqueles que advogam a progressiva constitucionalização do DI, o qual seria dotado de núcleo duro de normas inderrogáveis, e outros que constatam a inevitável fragmentação do DI. Esse debate contemporâneo, de maneira distinta, retoma e atualiza a controvérsia que sempre existiu no âmbito do direito internacional, uma vez que se refere, indiretamente, à origem, à extensão e à força das normas internacionais.


1. Importância do tema

Analisar o fundamento do direito internacional significa perquirir a justificação da norma jurídica internacional. Mais do que isso, significa investigar se o DI apresenta, de fato, obrigatoriedade e, em caso positivo, qual sua origem filosófica, considerada sua vigência em espaço internacional composto, eminentemente, de Estados soberanos.

Muitos autores consideram o fundamento do DI a própria essência deste, no entanto essa concepção pouco ajuda no estudo do problema, sendo necessária uma definição concreta de essência, o que, convenhamos, é uma tarefa irrealizável (pelo menos no âmbito desse trabalho). Faz-se necessário explicar, de antemão, que o tema, por sua própria natureza, não se circunscreve ao direito internacional. Tanto a filosofia do direito quanto as relações internacionais (ver Morgenthau, Bull, Aron) são também vinculados a ele.

A preocupação com o fundamento do DI é antiqüíssima. Para alguns teóricos, são encontrados imprecisos vestígios do DI na Antigüidade Ocidental Clássica. Nesse período, seu fundamento seria principalmente baseado no jusnaturalismo, com base no qual as normas poderiam ser válidas para todos os povos, independentemente de suas peculiaridades e idiossincrasias. Essa visão é anacrônica, no entanto, no entendimento da doutrina contemporânea, uma vez que o problema está indissociavelmente ligado ao conceito de Estado Moderno e de soberania, a qual se origina na Idade Moderna e se afirma na Idade Contemporânea. Nesse sentido, eventos relevantes da história européia refletem esse processo de consolidação do Estado: Paz de Westfália, Paz de Utrecht, Congresso de Viena, Tratado de Versalhes e Paz de Paris. 

Autores importantes de direito internacional discorreram sobre seu fundamento. Entre os principais, na Idade Moderna, destacam-se o teólogo Francisco Suarez (1548/1617), o humanista Hugo Grotius (1585/1645), Samuel Pufendorf (1632/1694) e Emmerech Vattel (1714/1767). Na Idade Contemporânea, destacam-se, por exemplo, Triepel, Hans Kelsen e os brasileiros, Clóvis Beviláqua e Celso Albuquerque de Mello.


2. As correntes teóricas predominantes: voluntaristas e objetivistas 

Os internacionalistas, ao tratarem do tema do fundamento do DI, adotam, em regra, duas grandes correntes teóricas distintas: a voluntarista e a objetivista. Com base nelas, ao longo da história, surgiram diversas orientações que, por orbitarem ao redor das duas, não obtiveram autonomia e destaque.

Os voluntaristas, como inferido de seu próprio nome, entendem que a obrigatoriedade do DI decorre da vontade dos próprios Estados (em conjunto ou isoladamente). A vontade estatal é expressa, na maior parte das vezes, em tratados ou convenções internacionais. Em outros termos, para os adeptos dessa doutrina, a validade do DI emana sempre da índole da vontade que o exprime. Essa corrente doutrinária é comumente subdividida em teoria da vontade coletiva, teoria da autolimitação, teoria do consentimento dos estados e teoria da delegação do direito interno. Outra possível divisão da corrente voluntarista nos é apresentada por Antonio Truyol y Serra (1977). O autor afirma que os voluntaristas seguem necessariamente uma linha de pensamento hegeliana ou positivista. Ambas, na realidade, propiciam margem para negação do caráter compulsório das normas internacionais.

Os objetivistas, por sua vez, constituem reação aos voluntaristas. A idéia dessa corrente origina-se, em sua concepção geral, na Antigüidade Clássica.  Em se tratando do DI contemporâneo, contudo, o objetivismo surge nos últimos anos do século 19. Para essa corrente, a vontade estatal não determina a obrigatoriedade do DI. Assim como os voluntaristas, a corrente objetivista não é homogênea. O ponto de intersecção entre suas várias vertentes, no entanto, é um componente negativo: a negação do voluntarismo. Entre os diversos ramos do objetivismo, destacam-se a teoria do objetivismo lógico, a teoria sociológica e a teoria do direito natural.

Alguns juristas, ao contrariarem a divisão dual consagrada, preferem o critério de pureza teórica: as teorias são divididas em originais e ecléticas. No âmbito dos primeiros estariam os jusnaturalistas, os voluntaristas e os normativistas; no âmbito dos segundos, por sua vez, estariam a teoria da convicção jurídica, teoria do consenso majoritário e teoria da necessidade social.

Outros autores, igualmente, com base em visão crítica acerca dessas duas correntes, adotam posição intermediária. Guido Fernando Silva Soares, por exemplo, afirma que ambas as correntes são problemáticas e que, por isso, devem ser ajustadas, a fim de se evitar perigos nos excessos (Soares, 2004, pp. 52-53). O internacionalista esclarece que o voluntarismo incorre no erro de exacerbar a noção de soberania, a ponto de minimizar conceitos como o de interesse comum da humanidade e comunidade internacional, além de não explicar como determinadas fontes do direito internacional (e.g. princípios gerais do direito e costume internacional) obrigam até mesmo aqueles Estados que não participaram de sua formação. Os objetivistas, por sua vez, minimizam o conceito de soberania, desconsiderando, muitas vezes, a importância de uma possível vontade estatal na criação do direito internacional.

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3. Fundamento do DIP: constitucionalização e fragmentação como expressão moderna do problema 

A discussão sobre o fundamento do direito internacional é retomada, na atualidade, no debate acerca de constitucionalização ou da fragmentação do direito internacional. A ideia de constitucionalização, cuja característica principal é a existência de núcleo duro de normas gerais (jus cogens), é coerente com a vertente objetivista, uma vez que não pressupõe a vontade do Estado como fundamento último do direito internacional. A sociedade internacional e sua estrutura jurídica teriam, dessa forma, um conjunto de normas indisponíveis que seriam a materialização de valores fundamentais para toda a humanidade. As regras e princípios concernentes aos direitos humanos (e.g. Declaração universal de direitos humanos, Pactos de 1966, Pacto de San Jose da Costa Rica), por exemplo, seriam aquelas mais importantes desse conjunto normativo fundamental.

Os autores que defendem o processo de fragmentação do direito internacional, por sua vez, entendem que este apresenta heterogeneidade baseada na diversidade de tema que regula. Essa heterogeneidade, por sua vez, decorreria dos graus diversos de obrigatoriedade que a norma internacional apresenta conforme a área das relações internacionais. O direito internacional do meio ambiente, por exemplo, teria características diversas das regras concernentes ao comércio internacional.


Considerações finais

O problema do fundamento do direito internacional é, para muitos, um tema sem relevância (ou com relevância meramente teórica). Outros afirmam que essa discussão não é cabível no âmbito do direito, pois seria assunto de teoria política ou da filosofia. Como se nota facilmente, no entanto, as críticas relativas ao estudo do tema baseiam-se na concepção de direito como norma estritamente positiva. Essa concepção é, naturalmente, restritiva em demasia, pois não atribui importância ao processo de formação da norma, momento de aquisição de obrigatoriedade.

No âmbito da teoria, a grande importância do estudo do fundamento do DI está na relação que este tema tem com o conceito de soberania. Tomando este na sua acepção clássica, defendida por Hugo Grotius, a soberania significa poder incontrastável, não submetido a nenhum outro. Com fulcro nessa idéia, como é possível se admitir a existência de um direito internacional, no qual os principais atores a ele submetidos são Estados que ainda se dizem soberanos? Só temos condições de responder essa questão basilar se nos debruçarmos, com todo afinco, sobre o assunto ora tratado neste efêmero artigo.

Se adotado rigor científico, nota-se que os conceitos de direito internacional e de soberania, da maneira que hoje são estruturados e conceituados, podem mútua exclusão. Qualquer tentativa de manutenção conjunta de ambos teria, por isso, de passar reformulações conceituais. Alguns autores, em grande esforço conciliatório, redefinem a soberania, conferindo-lhe um significado mais flexível, a fim de inseri-la numa nova realidade mundial, sem notar que se faz cada vez mais necessário a utilização de categorias mais adequadas, capazes de abranger os novos fenômenos.

As duas grandes correntes doutrinárias do DI, cada qual ao seu modo, tentam, sem êxito, solucionar esse problema. Essa indefinição gera graves reflexos na realidade, proporcionando a constante criação de hipóteses ad hoc para o problema, nas quais os Estados, por meio de seus dirigentes, ora aderem a uma corrente, ora aderem à outra, conforme seja mais favorável à justificação de seus atos (os quais, muitas vezes, são pautados apenas pelo atendimento de interesses de uma pequena minoria). A incapacidade do direito de lidar com o problema possibilita o cometimento de barbaridades políticas fundamentadas ou sem a necessidade de justificação.

É possível vislumbrar, portanto, a relevância do tema sob a ótica meramente teórica e sob um ângulo que o insere na realidade. A primeira diz respeito à problemática convivência entre soberania e direito internacional, dois conceitos aparentemente excludentes; já a importância – em termos práticos – está em esclarecer que os argumentos utilizados pelas duas correntes doutrinárias dominantes são insuficientes para explicar a obrigatoriedade do DI. Isso, acumulado com a ausência de novas perspectivas teóricas para o tema, é responsável por uma situação propícia a um quadro internacional apenas aparentemente regrado, mas, de fato, suscetível à satisfação arbitrária de interesses daqueles que detêm maior poder. A existência de um direito internacional público válido e efetivo passa, necessariamente, por um aprofundamento – por parte de acadêmicos, aplicadores do direito e dirigentes de Estado – no estudo de seus fundamentos.


Referências bibliográficas

SOARES, Guido Fernando Silva, Curso de Direito Internacional Público, São Paulo: Atlas, 2004. 

TRUYOL y SERRA, Antonio, Fundamentos de Derecho Internacional Publico, Madrid, Editorial Tecnos, 1977.

LEWANDOVISKI, Enrique Riçado. Globalização, regionalização e soberania, 2004.

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Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. Direito internacional público: os fundamentos de uma ficção?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5781, 30 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72710. Acesso em: 5 nov. 2024.

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