A progressão de regime nos crimes contra a administração pública

Análise da (in)constitucionalidade

Leia nesta página:

O artigo busca analisar a (in)constitucionalidade do §4º do art. 33 do Código Penal, que versa sobre a progressão de regime nos crimes praticados contra a administração pública.

1.   Considerações iniciais

Uma grande crítica que se faz ao positivismo é o fato de a sociedade ser dinâmica, mas a lei, estática. Frequentemente, acontecem mudanças na sociedade. Mudam-se os valores, e a lei (em sentido lato sensu), depois de muito tempo, logra regulamentá-los, ou mesmo desregulamentá-los.

Surge então um problema: o fato de haver uma norma prescrevendo determinados preceitos não quer dizer ser ela a melhor para sociedade. Tão somente que, até aquele momento, não houve – ou não subsistiram – fundamentos noutro sentido.

Quanto ao surgimento da “lei”, fazendo uma analogia à bíblia, quando se disse: "Não pode a árvore boa dar maus frutos; nem a árvore má dar frutos bons (Mateus 7:18)”, como poder haver um ordenamento jurídico perfeito se imperfeito é o legislador? A previsão de institutos de controle, tais como a ação direta de inconstitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito fundamental, ação popular etc., tornam clara a ideia de imperfeição do sistema.

Já ensinava com precisão cirúrgica o Professor Lyra Filho:

“Se o Direito é reduzido à pura legalidade, já representa a dominação ilegítima, por força desta mesma suposta identidade; e este “Direito” passa, então, das normas estatais, castrado, morto e embalsamado, para o necrotério duma pseudociência, que os juristas conservadores, não à toa, chamam de ‘dogmática’”.[1]

Quer-se, com essa introdução, conferir parâmetro de verificação da conformidade da restrição à progressão de regime, estampada no parágrafo 4º do art. 33 do Código Penal, com o direito penal, com o direito constitucional e até mesmo com o direito natural.

Para responder ao referido questionamento, será analisada a doutrina nacional, a jurisprudência, bem como será informada a posição pessoal deste autor ao final.

2.   Regime progressivo de cumprimento da pena

Para cumprimento da pena, têm-se os regimes fechado, semiaberto ou aberto.

A progressão do regime trata-se de parte da individualização executória da pena. Excepcionalmente, poderá ocorrer também durante o cumprimento provisório da pena. Por meio dela, há um incentivo à proposta estatal de reeducação e ressocialização do sentenciado[2].

Assim, o condenado, mediante cumprimento de alguns requisitos, terá sua pena cumprida de modo progressivo: do regime mais grave ao regime menos grave.

O regramento jurídico do instituto em questão encontra-se, fundamentalmente, nos diplomas/dispositivos adiante:

Código Penal:

§ 2o As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:

a) o condenado a pena superior a oito anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado;

b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a quatro anos e não exceda a oito, poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto;

c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.

§ 4o O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais.

A Lei de Execuções Penais:

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.

Lei dos Crimes Hediondos:

Art. 2o [...]

§ 1o A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.

§ 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

Não sendo o caso de crimes hediondos, a regra padrão para a progressão de regime é norteada por dois requisitos:

a)      Requisito subjetivo: bom comportamento carcerário; e

b)      Requisito objetivo: cumprimento de 1/6 da pena no regime em que se encontre.

Deste modo, a grande maioria dos delitos tipificados no Código Penal tem como regra objetiva o cumprimento de 1/6 da pena.

3.   A progressão nos crimes contra a administração pública

Como vimos, a regra geral da progressão de regime é o cumprimento dos requisitos bom comportamento e 1/6 da pena.

No entanto, é no parágrafo 4º do art. 33 do CP que encontraremos o cerne do presente trabalho acadêmico. Dispõe-no:

§ 4o O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena CONDICIONADA à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais. (grifo nosso)

Introduzido pela Lei 10.763/03, o dispositivo retro trouxe mais um requisito para aquisição daquele benefício nos crimes contra a administração pública, a saber:

a)      A reparação do dano causado; ou

b)      A devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais.

Conforme se depreende do parágrafo anterior, aplicando-se uma interpretação literal, nos crimes contra a administração pública, para concessão do benefício da progressão de regime, deverá o acusado reparar ou restituir a vantagem ilícita, ainda que possua merecimento.

Quanto à extensão da reparação, a lei penal não a considerou na forma parcial. Nesse sentido, a doutrina de Luis Regis Prado.[3]

4.   A ineficiência da norma específica de progressão

A vedação à progressão de regime em crimes contra a administração pública, quando não restituída ou reparada a vantagem ilícita, é, a princípio, uma norma de política criminal plausível e louvável, ante a moralidade da administração pública. O acusado não poderia fazer jus a vantagem que porventura o delito o tenha proporcionado[4]. Ainda mais quando ela é obtida em prejuízo à sociedade.

Todavia, em que pese os argumentos apresentados, resta-nos agora a seguinte indagação: sendo o acusado reduzido à insolvência, ou sendo a vantagem ilícita irrisória, até que ponto a proibição de progressão de regime deveria chegar?

A regra é clara: terá condicionada a progressão de regime à reparação ou devolução do bem/valor obtido ilicitamente.

A título acadêmico, imaginemos a seguinte situação:

“Pedro, condenado duas vezes por furto simples, tendo já cumprido ambos, um deles transitado nos últimos 5 (cinco) anos, foi nomeado para exercer uma função de confiança na Administração Pública. Infelizmente, Pedro não se contentou com a remuneração que fazia jus, tendo desviado, em sucessivos atos, cada um no valor de R$ 200,00, a importância de R$ 2.000,00, em razão da facilidade que a sua função lhe proporcionara. Na dosagem da pena, verificaram-se os seguintes fatos:

1º Reincidência (delito de furto transitado nos últimos 5 anos);

2º Maus antecedentes (o outro delito);

3º Crime continuado, visto estar nas condições do art. 71 do CP.

Tendo em vista as circunstâncias do art. 59 do CP, Pedro restou condenado à pena de 8 anos de reclusão, em regime FECHADO, visto a regra do art. 33 do CP para crimes punidos com pena acima de 4 anos.

Ocorre que Pedro já havia se desfeito da quantia que adquirira ilicitamente, não tendo, DE NENHUMA MANEIRA, meios necessários para a repor.”

Como no exemplo teve-se a pena de 8 anos de reclusão, em regime fechado, pergunta-se: uma vez não preenchido o requisito da progressão de regime estipulado (pois não houvera restituído a importância recebida), deverá esse acusado cumprir os oito anos da pena em regime INTEGRALMENTE fechado?

5.   Mínima intervenção

Um dos princípios penais consagrado no nosso ordenamento jurídico é o da mínima intervenção. Diz-se dele que “o direito penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes”.[5]Analisando esse princípio com o da individualização da pena, tem-se que a sanção dirigida ao infrator deve ser proporcional ao bem jurídico violado.

Não seria adequada uma decisão que cominasse a um homicídio doloso seis meses de detenção e a uma lesão corporal simples uma pena de vinte anos de reclusão em regime fechado (perdoe-me o exagero). A lesão ao bem jurídico LIBERDADE, pertencente ao infrator, tem que guardar devida proporção ao bem jurídico lesado.

O que dizer da decisão que nivelasse um acusado que obteve R$ 1.000,00 de vantagem ilícita, sem conseguir repô-la, com um acusado que causou um prejuízo de R$ 1.000.000.000,00, também sem conseguir restituí-los?

6.   Individualização da pena

A Constituição da República consagra o princípio da individualização da pena. Individualizar é ajustar a pena cominada, considerando os dados objetivos e subjetivos da infração penal, no momento da aplicação e da execução, e até mesmo no momento de elaboração da norma penal pelo legislador[6].

O legislador ordinário, tampouco o magistrado, poderá impor, desconsiderando os dados objetivos e subjetivos, regime único e inflexível de determinada conduta ou instituto penal[7].

Percebe-se que condicionar o benefício da progressão, em todos os casos de peculato e delitos da mesma natureza, à reparação do prejuízo, seria engessar o tipo penal incriminador, em detrimento dos princípios outrora tratados.

No entanto, naquele exemplo acima, foi fixado o regime fechado. Se esse artigo 33, §4, fosse aplicado, ele cumpriria a pena em regime integralmente fechado, visto estar impedido de utilizar aquele benefício, o que não se admite nem se tratado de crimes hediondos. Aliás, para esses, entendeu a corte suprema ser inconstitucional a norma penal que fixasse regime integralmente fechado aos delitos que ela regulamentara.

O raciocínio aplicado naquele precedente é o mesmo a ser utilizado na concessão da progressão nos crimes contra a Administração Pública. Dispor o contrário seria conferir mais importância ao valor patrimonial público subtraído que a própria liberdade do ser humano.

Por fim, ressalte-se que da forma como está disposta a lei penal, um réu que tenha cometido diversas atrocidades (estupro, tortura, assassinato) terá direito à progressão de regime. Enquanto aquele que cometeu um crime de peculato, modalidade leve, não tendo como restituir ou reparar o ilícito, não poderia fazer jus a tal benefício.

7.   Posição doutrinária

A doutrina brasileira cinge-se a reproduzir o texto penal da aludida progressão em suas obras. Dos raros doutrinadores que dissertam sobre ela, registro dois adiante.

Entendendo inconstitucional a referida norma, temos Guilherme Nucci. Diz ele:

“Tal reclamo e, em nosso entender, inconstitucional e, além de tudo, de pouca utilidade.[...) O condenado que esteja em regime fechado, dando mostras de plena recuperação, cumprido o período mínimo de um sexto, sem o cometimento de falta grave, nem tampouco possuindo laudos ou pareceres desfavoráveis dos componentes da Comissão Técnica de Classificação, tem o direito inafastável de progredir[8]”.

Já Julio Fabbrini Mirabete confere outra solução:

“A exigência deve ser afastada, porém, na hipótese de comprovação de efetiva impossibilidade de reparação do dano, como ocorre em relação à concessão do sursis especial e do livramento condicional[9]”.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

8.   Posição jurisprudencial

No entanto, esse raciocínio parece estar tomando novos rumos. Em 15/04/2010, foi proferido em sede de Habeas Corpus na corte suprema uma decisão que concedeu a ordem a fim de permitir a progressão de regime, e aplicar o disposto genérico do art. 112 da LEP em delito de peculato, conforme a seguir:

 

EMENTA Habeas corpus. Constitucional. Processual penal. Peculato e Gestão Fraudulenta. [...] Progressão de regime. Possibilidade antes do trânsito em julgado. Súmula nº 716/STF. OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS OBJETIVOS. CUMPRIMENTO DE MAIS DE 1/6 DA REPRIMENDA. ARTIGO 112 DA LEI Nº 7.210/84 (LEI DE EXECUÇÃO PENAL). Concessão da ordem de ofício. 1.

[...]

O delito praticado pelo paciente não se enquadra no rol dos crimes hediondos - lei nº 8.072/90 - ou equiparados, a regra objetiva para a progressão no regime prisional é a do artigo 112 da lei de execução penal, ou seja, o cumprimento de um sexto da pena no regime em que se encontre. 5. Ordem concedida de ofício para que o juiz competente examine a possibilidade da concessão de progressão de regime[10].

Conforme visto, entendeu a Corte Suprema que a progressão de regime é um direito individual do preso, sendo utilizada, para aferição do direito, a regra de cálculo presente no artigo 112 da Lei de Execução Penal.

9.   Da inconstitucionalidade

Uma norma infraconstitucional pode ser retirara do ordenamento jurídico de várias formas. Dentre estas, podem-se citar a declaração de inconstitucionalidade e a revogação.

Para Hans Kelsen, constituição, compreendida numa perspectiva estritamente formal, consiste na norma fundamental de um Estado, paradigma de todo ordenamento jurídico[11]. Partindo desse pensamento, tem-se que as normas infraconstitucionais de um Estado deverão buscar naquele texto supremo o seu fundamento de validade. Quando tal fundamento não respaldar a vontade declarada pelo legislador derivado, tais normas deverão ser declaradas inconstitucionais – ou seja, contrárias à constituição – e expelidas do ordenamento jurídico.

Feitas essa considerações, voltemos à análise do parágrafo 4º do art. 33 do CP. Sendo essa norma penal fruto do legislador de infraconstitucional de 2003 e o princípio da individualização da pena pelo constituinte ogirinário, pelos motivos já expostos nos itens supra, acreditamos que o elemento objetivo aplicável aos crimes contra a Administração Pública encontra-se maculado de vicio de inconstitucionalidade.

10.        Conclusão

A discussão proposta nesse artigo é didática. Temos a intenção de suscitar indagações a fim de se evitar injustiças aos menos protegidos na sociedade.

No mais, cremos que essa norma exerce um grande valor preventivo, bem como repressivo. Retirá-la do ordenamento jurídico não será a melhor medida.

Como intérprete do direito, vejo como melhor alternativa, em vez de declará-la inconstitucional, estabelecer-lhe critérios de aplicação. Poderão ser utilizados parâmetros como a situação econômica do acusado, o montante da vantagem ilícita e outras circunstâncias na eleição da fração de pena a ser cumprida para aferição do almejado benefício. Tal medida viabilizaria a não incidência de possíveis injustiças ou abusos no provimento jurisdicional.

Bibliografia

GRECO, R. Curso de Direito Penal - Parte Geral. 11. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.

FILHO, R. Lyra. O que é direito. Brasiliense, v. 61, 1982.

MIRABETE, Julio Fabbrini/ FABBRINE, Renato N. – Código Penal Comentado. 7ª edição. São Paulo: Atlas, 2011.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10 ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: Editora RT, 2010.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, parte geral. 8ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2007.

 


[1]FILHO, R. Lyra. O que é direito. Brasiliense, v. 61, 1982., p. 10.

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10 ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: Editora RT, 2010. Pág. 324.

[3] “Reparar o dano ou devolver o produto do ilícito com juros e correção monetária”. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, parte geral. 8ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. Pág. 575.

[4]GRECO, R. Curso de Direito Penal - Parte Geral. Impetus, 2009. p. 629.

[5] MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción AL Derecho Penal, p. 59-60.

[6] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, parte geral. 8ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. Pág. 575.

[7]STJ - RE - 19.420-0- Rel. Min. Vicente Cernicchiaro - DJU, 7.6.93, p.11.276

[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10 ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: Editora RT, 2010. Pág. 341

[9] MIRABETE, Julio Fabbrini/ FABBRINE, Renato N. – Código Penal Comentado. 7ª edição. São Paulo:Atlas, 2011. Pág. 204

[10](HC 98145, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 15/04/2010, DJe-116 DIVULG 24-06-2010 PUBLIC 25-06-2010 REPUBLICAÇÃO: DJe-190 DIVULG 07-10-2010 PUBLIC 08-10-2010 EMENT VOL-02418-02 PP-00370)

[11]SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2007

Sobre o autor
Eliezer Guedes de Oliveira Junior

Concursos passados:a) Policia Militar-BA (Soldado, 2008);b) Banco do Brasil (Escriturário, 2008);c) Caixa Econômica (Técnico Bancário, 2009);d) TJDFT (Técnico Judiciário, 2008);e) TSE (Analista Judiciário, 2012);f) TCU (Técnico Federal de CEX, 2012).Atualmente é servidor público do TCU e exerce a advocacia no Distrito Federal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos