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O neoliberalismo é intervencionista?

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01/05/1999 às 00:00
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4 - As Ilusões do Neoliberalismo

Sem dúvida é no plano cultural mais que no econômico que veremos as principais repercussões do neoliberalismo, vejamos : a difusão de um Ethos sem raízes tradicionais precisas é um dos marcos de nosso tempo: o mito da mobilidade pelo esforço pessoal; as generosidades da livre empresa ("somos todos empresários"); o direito à diferenciação; a liberdade como valor máximo, embora como autodisciplina; e uma solidariedade não problemática para aqueles que não são beneficiados pelo mercado. O neoliberalismo investe no senso comum, alimentando o antiestatismo do povo, com a idéia de que o Estado é o causador da crise, o Estado que, para proporcionar, previdência social, cobra altos impostos; Estado que alimenta uma grande burocracia ineficiente e Estado que tem protegido exageradamente os trabalhadores sindicalizados.

Estes pressupostos do neoliberalismo são cumpridos em parte, pois, ao apresentar-se como alternativa ao Estado Social, o neoliberalismo enfrenta as seguintes contradições, apontadas por Henrique Toledo(18), como as seguintes: 1) permite às economias crescerem dentro de certos limites ou reduzirem taxas de inflação, mas às custas de uma polarização produtiva e social. A promessa de igualdade no mercado só se cumpre com desregulamentação e privatização, mas em nenhum momento atenta contra os monopólios, que crescem em poder com as políticas neoliberais; 2) A liberalização dos mercados ocorre com uma rígida política salarial que provoca uma queda nos salários reais. Neste mercado, o da força de trabalho, não se aplica a eliminação de fatores exógenos para que se chegue aos preços de equilíbrio. A crise de fato recai sobre os ombros dos assalariados; 3) A liberdade conseguida com a ruptura com os pactos corporativos, que distorcem os mercados, ocorre ao mesmo tempo em que se conformam grupos de pressão (formação de grupos privilegiados), sobretudo provenientes dos grandes capitais, para os quais as políticas ortodoxas são combinadas com apoios heterodoxos. O ator racional otimizador é substituído pelos magos das finanças e seus conhecimentos privilegiados de mercados e políticas do Estado"(19).

Theotônio dos Santos(20), denuncia a falácia do neoliberalismo, enquanto um intervencionismo escamoteado, através da análise dos gastos públicos de vários Estados Nacionais, que aumentaram do período de 1960 aos nossos dias drasticamente (incidindo sobre a corrida armamentista) da casa dos 20 a 30% para a dos 40% do Produto Interno Bruto, particularmente sob a égide do neoliberalismo de Thatcher, Reagan etc.

"No entanto, eles ainda se apresentam como feitores de uma colossal onda neoliberal. Trata-se, portanto, do neoliberalismo do capitalismo monopolista de estado que consiste no aumento da intervenção estatal para garantir a sobrevivência do capital, sobretudo dos grandes monopólios e do capital financeiro (o grifo é nosso). Quando se trata de defender esses interesses, a economia de mercado é mandada às favas, pois ela não se coaduna com o mundo dos monopólios, oligopólios e corporações multinacionais que dominam a vida econômica dos nossos dias"(21).

Eros Grau(22), dá-nos conta que a pretensão de modernidade, tida pelos neoliberais como sinônimo de livre mercado, é uma ilusão produzida por estes modernos, demonstra isto através de sua análise do tratamento normativo que os países desenvolvidos vêm conferindo à matéria do trato preferencial conferido pelo Estado, na aquisição de bens e serviços a empresas nacionais. Concluindo, que os ditos modernos, não fazem nenhum exemplo de mercado livre(23).

Estas afirmações nos conduzem a atestar que o Estado neoliberal não existe. O neoliberalismo realmente existente não é senão o Estado do grade capital que, por meio da derrota da classe operária, impôs rupturas ou limitações aos pactos corporativos do pós-guerra. A derrota proletária foi econômica e política, mas também ideológica, onde o Keynesianismo e o marxismo estão desprestigiados, e a atuação estatal virou sinônimo de ineficiência, inflação e privilégios.

As perplexidades trazidas pelo neoliberalismo se ampliam quando o confrontamos com a democracia, pois hoje torna-se um lugar comum associar o neoliberalismo com o autoritarismo.

Em observando as pautas neoliberais, que se punham como alternativa à crise global do capitalismo, veremos que o neoliberalismo sucede o Welfare State sem solucionar vários impasses, ao contrário acirrando-os: a) "o crescente aumento da distância entre pobres e ricos (em 1900 os ricos eram 33% do planeta, em 1990 a riqueza concentra-se nas mãos de 15%); b) a ascensão do racismo e dos xenofobismos, e Le Pen é um exemplo de rápida ascensão institucional ao poder, como efeitos por toda a Europa; c) a crise ecológica está ampliada. A não resolução dessas três realidades apontam para a barbárie"(24)

Norberto Bobbio em ensaio a respeito do tema nos esclarece que a incompatibilidade entre democracia e neoliberalismo é um dos objetivos dessa doutrina, vejamos: "por neoliberalismo se entende hoje, principalmente, uma doutrina econômica consequente, da qual o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre necessário; ou, em outros termos, uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário. Ninguém melhor do que um dos notáveis inspiradores do atual movimento em favor do desmantelamento do Estado de serviços, o economista austríaco Friedrich von Hayek, insistiu sobre a indissolubilidade de liberdade econômica e de liberdade sem quaisquer outros adjetivos, reafirmando assim a necessidade de distinguir claramente o liberalismo, que tem seu ponto de partida numa teoria econômica, da democracia, que é uma teoria política, e atribuindo à liberdade individual (da qual a liberdade econômica seria a primeira condição) um valor intrínseco e à democracia um valor instrumental. Hayek admite que, nas lutas passadas contra o poder absoluto, liberalismo e democracia puderam proceder no mesmo passo e confundir-se um na outra. Mas agora tal confusão não deveria mais ser possível, pois acabamos por nos dar conta - sobretudo observando a que conseqüências não-liberais pode conduzir, e de fato conduziu, o processo de democratização - de que liberalismo e democracia respondem a problemas diversos: o liberalismo aos problemas das funções do governo e em particular à limitação de seus poderes; a democracia ao problema de quem deve governar e com quais procedimentos"(25).

Com este esclarecimento de Bobbio, fica mais nítida a associação entre neoliberalismo e autoritarismo, pois para os neoliberais a excessiva participação do povo no governo, é traduzida em mais demandas para o Estado, e para o mercado isto é uma sobrecarga insuportável. Sem dúvida estamos hoje às voltas com a hegemonia da ideologia de mercado, porém não mais o mercado que educa e civiliza dos primeiros liberais, mas do mercado quase como guerra. "E o mercado como guerra gera, como Hobbes bem sabia, um Estado para pôr ordem nas coisas que não será o Estado Democrático, o Estado de Direito, mas o oposto"(26)


5 - Os Princípios da Ordem Econômica da Constituição Federal de 1988 face ao Neoliberalismo

Partindo de um referencial teórico que admite que o neoliberalismo anacroniza os pilares do paradigma liberal-legal, sob o qual está erigido o ordenamento jurídico brasileiro, devemos fazer uma breve análise de como a ordem econômica brasileira e seus princípios estatuídos na constituição sentem a repercussão do ideário neoliberal.

A Ordem Econômica na Constituição Federal de 1988, segundo Eros Grau, após uma análise de vários autores, "consagra um regime de mercado organizado, entendido como tal aquele afetado pelos preceitos da ordem pública clássica (Geraldo Vidigal); opta pelo tipo liberal do processo econômico, que só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de quaisquer interferências, quer do próprio Estado, quer do embate econômico que pode levar à formação de monopólios e ao abuso do poder econômico visando o aumento arbitrário dos lucros - mas sua posição corresponde à do neo-liberalismo ou social-liberalismo , com a defesa da livre iniciativa (Miguel Reale).

Segue Eros Grau em sua análise afirmando que a Constituição de 1988, "contempla a economia de mercado, distanciada, porém do modelo liberal puro e ajustada à ideologia neo-liberal (Washington Peluso Albino de Souza); a Constituição repudia o dirigismo, porém acolhe o intervencionismo econômico, que não se faz contra o mercado, mas a seu favor (Tércio Sampaio Ferraz Júnior); a Constituição é capitalista, mas a liberdade é apenas admitida enquanto exercida no interesse da justiça social e confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado (José Afonso da Silva);

A Constituição consagra a "estatolatria" (Manoel Gonçalves Ferreira Filho); o constituinte preferiu o modelo rígido-ortodoxo que conduz ao dirigismo econômico (Raul Machado Horta).

Quanto ao Princípios positivados da ordem Econômica na Constituição de 1988, observa-se que consagram valores entre si potencialmente conflitantes, a exemplo: a propriedade privada (incisos XXII do art. 5º. e III do artigo 170), a livre concorrência (inciso IV do art. 170) e a "busca do pleno emprego" (inciso VIII do art. 170), a livre iniciativa (inciso do art. 1º) e o caráter normativo e regulador da atuação do estado no exercício de suas funções de fiscalização, incentivo e planejamento (art. 174), no plano da efetiva aplicação desses dispositivos constitucionais quais deles devem efetivamente predominar quando todos estiverem ao mesmo tempo em questão ? Em termos mais específicos: na medida em que a constituição também enfatiza a dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1º) e a erradicação tanto da pobreza e da marginalização econômica quanto das desigualdades sociais (inciso III do art 3º) estará ela subordinando estes princípios programáticos ao direito de propriedade? Ou, ao condicionar o exercício desse direito à sua função social, não o estará colocando como meio para a realização desses mesmos princípios? As respostas a estas questões ultrapassam os limites desse trabalho, sendo colocados no intuito de refletirmos sobre as contradições existentes em nosso ordenamento jurídico.

Passemos a analisar os princípios constitucionais da ordem econômica frente ao neoliberalismo, de antemão veremos que alguns deles são amplamente receptivos ao neoliberalismo, tais como : a propriedade privada (inciso II do art. 170) e a livre concorrência (inciso IV do art. 170), porém outros chocam-se com a perspetiva neoliberal, como a busca do pleno emprego (inciso VIII do art. 170) que uma meta de teor Keynesiano a quem o neoliberalismo é antípoda; a função social da propriedade e a redução das desigualdades regionais e sociais (incisos III e VII do art,170) perfazem um princípio de justiça distributiva correlato da justiça social; e também a soberania nacional (inciso I do art. 170) que é desprezada pelo capital monopolista e internacionalista.

O quadro constitucional que temos diante do neoliberalismo é de clara indeterminação, pois diante da conflituosidade entre princípios antagônicos no que tange o seu arcabouço ideológico, nos leva a de certa forma reiterar a idéia inicial deste tópico de que o neoliberalismo anacroniza o paradigma liberal-legal sob o qual está erigido o nosso ordenamento jurídico.

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6 - Esboçando Conclusões

Não é o fato de aceitarmos uma certa hegemonia da pregação neoliberal, que nos levará aceitar todos os seus ditames, pois como observamos, o discurso neoliberal é falacioso e não vem cumprindo com as suas promessas de progresso, não se mostrando , portanto, como verdadeira alternativa ao suposto esgotamento do Welfare State. Destarte, nos cabe corroborar a afirmação feita de que o Estado neoliberal realmente existente não existe. E respondendo à questão que nos propusemos, se o neoliberalismo é intervencionista, constatamos ao longo do trabalho que este vem praticando um intervencionismo perverso, bem mais do que o intervencionismo oficial que denuncia e contrapõe.

Ademais, a imperiosidade de desregulamentação do processo econômico, posta pelo neoliberalismo, no sentido de uma diminuição da ordenação normativa, encontra ressonância na conformação da ordem econômica na Constituição de 1998, a qual ora atende ao estado intervencionista, ora rende-se ao neoliberalismo. Acreditamos que para fazer face ao neoliberalismo, devemos passar por um processo de substituição da rigidez das normas jurídicas, dotadas de coatividade e sanção, pela flexibilidade das normas programáticas e dos regulamentos administrativos, isto se dá através do direito econômico com seu conjunto de normas-objetivos, que suplantando a tradicional normatividade da atividade econômica, possibiltará a realização de uma mediação entre o até então vitorioso neoliberalismo e as exigências de justiça social.


NOTAS
  1. - Merquior, José Guilherme. O Liberalismo - antigo e moderno, S. Paulo, Nova Fronteira, 1991.p. 45
  2. - Op.cit. p. 45.
  3. - Op.cit. p. 58.
  4. - " se o resultado é tão diverso dos nossos objetivos- se ao invés de liberdade e prosperidade, é miséria e servidão o que temos pela frente- não está claro que forças funestas devem ter frustrado as nossas intenções, e que somos vítimas de algum poder malígno que deve ser dominado antes de retomarmos o caminho para melhores coisas". F. A. Hayek, O Caminho da Servidão, Rio, Ed. Globo, 1946, p. 33.
  5. - Hayek, Os Fundamentos da Liberdade, Brasília, Ed. UNB, 1983. p. 59.
  6. - Anarquia, Estado e Utopia, Rio, Zahar, 1991.p. 18
  7. - Responsabilidade do Estado Intervencionista, S. Paulo, Saraiva, 1990.p. 26- 32.
  8. - Op.cit. p. 33- 37.
  9. FernandoScaff adeverte que o Estado contemporâneo somente pode ser considerado como intervencionista no dominío econômico se contraposto ao Estado liberal, em que a intervenção também ocorreu, apenas que no "ponto zero". Op.cit. p. 38.
  10. Scaff. Op.cit. p.40.
  11. - Mises, Ludwig von. Uma Crítica ao Intervencionismo. Rio, Instituto Liberal. 1987.p. 16
  12. - Intervenção do Estado x Sistema de Mercado. Confrontando Hayek e Olson. Direito, Estado e Sociedade, PUC-Rio, Depto. Ciências Jurídicas, nº 1, 2º ed.,1991. p. 13- 29.
  13. - Manin, Bernard Apud Cittadino, Gisele. Op. cit. p. 16
  14. - Os Princípios de uma Ordem Social Liberal. . Ideologias Políticas, Brasília, UNB.
  15. - Balanço do Neoliberalismo. pós-neoliberalismo : As Políticas Socias e o Estado Democrático, Emir Sader (org.), S. Paulo, Paz e Terra, 1993.
  16. - Anderson. Op, cit. p. 10.
  17. - Anderson. Op.cit. p. 11.
  18. - Toledo, Enrique de la Garza. Neoliberalismo e Estado. Estado e Políticas Sociais no Neoliberalismo (Asa Cristina Laurel, org.). S. Paulo, Cortez, 1995.p. 83- 84.
  19. - Toledo. Op.cit.p. 83- 84.
  20. - Cartas; Falas, Reflexões; Memórias, Informe de distribuição restrita do Senador Darcy Ribeiro. Brasília, Gabinete do Senador Darcy Ribeiro, 1991. p. 45.
  21. Santos. Op. cit. p 45.
  22. Grau, Eros Roberto. O Discurso Neoliberal e a Teoria da Regulação. Desenvolvimento Econômico e Intervenção do Estado na Ordem Constitucional. Porto Alegre, Sergio Fabris Editor, 1995, p. 64- 69.
  23. - Grau. Op.cit. p. 69
  24. - Netto, João Paulo. Apud. Arruda Jr. Edmundo Lima de. Neoliberalismo e Direito: Crise de paradigmas na Crise Global. Teoria do Direito e do Estado (Leonel Servero Rocha, org.). Porto Alegre, Sergio Fabris Editor, 1994. p. 45.
  25. - Liberalismo e Democracia, S. Paulo, Brasiliense, 4º ed. 1993.
  26. Cardoso, Fernando Henrique. Estado, mercado, democracia: existe uma perspectiva latino-americana?. Estado, Mercado e Democracia (Loudes Sola, org.). S. Paulo, Paz e Terra, 1993. p. 33.

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Sobre o autor
Maurício Leal Dias

advogado em Belém (PA), mestre em Direito pela UFPA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Maurício Leal. O neoliberalismo é intervencionista?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 31, 1 mai. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73. Acesso em: 22 nov. 2024.

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