O caso específico de religiosos que não aceitam tratamentos que envolvam transfusão de sangue homólogo em virtude de suas crenças traz à tona tema fundamental: o direito do paciente à escolha terapêutica contido na Constituição Federal e legislação brasileira.
A prática tem mostrado que tais pacientes são pessoas que prezam sua vida, pois procuram espontaneamente tratamento médico quando necessitam. Não acreditam em "curas pela fé" ou em "autoflagelação" e nem reivindicam o "direito de morrer", como de forma sensacionalista vez por outra se alega, mas apenas desejam receber um tratamento médico de qualidade, sem o uso de sangue alheio.
O princípio do Consentimento Informado determina que, antes de uma intervenção, o médico deve esclarecer ao paciente os benefícios e riscos da terapia (bem como alternativas), deixando que o enfermo expresse seu consentimento para o que considera ser o mais adequado aos seus interesses.
O direito ao Consentimento Informado está bem firmado no ordenamento jurídico brasileiro, a começar por princípios constitucionais como a Dignidade da Pessoa Humana, Liberdade e Legalidade (CF arts. 1º, III; 5º, caput e II).
A Dignidade da Pessoa Humana corresponde ao fundamento do princípio do Estado de Direito e vincula a atividade médica. Como não existe dignidade sem autonomia, deve ser concedido ao paciente o direito de fazer escolhas terapêuticas de acordo com seus valores pessoais.
Ao comentar esse princípio constitucional, ALEXANDRE DE MORAIS consigna que "o direito à vida e à saúde, entre outros, aparecem como consequência imediata da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil."
Ademais, o paciente tem pleno direito de recusar um determinado tratamento médico com fundamento no artigo 5º, II da Constituição Federal, que reza que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, salvo em virtude de lei. No caso em tela, como não há lei que obrigue a optar por transfusão de sangue como tratamento para determinados casos, a recusa será legítima e deverá ser respeitada. Aliás, um dispositivo legal neste sentido seria absurdo tendo em vista os métodos de tratamentos médicos alternativos existentes, inclusive para emergências.
A legislação infraconstitucional, atenta ao princípio do Consentimento Informado e ao princípio constitucional da dignidade, positivou no artigo 15 do Código Civil, no capítulo que tutela os direitos da personalidade, que "ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica".
Tal artigo merece ser explorado com maior cautela uma vez que traz uma inversão da responsabilidade civil dos médicos, contrariando o que até recentemente era culturalmente visto como absoluto: a responsabilidade médica em salvar a vida do paciente a qualquer custo.
Ensina o saudoso mestre SILVIO RODRIGUES que tal regra deve ser vista sob dois ângulos: para o paciente, se situa no campo dos diretos da personalidade; para o médico, no campo da responsabilidade civil, constituindo-se mandamento ao médico para "que nos casos graves não atue sem expressa autorização do paciente". Observe-se que pelo artigo 15 do Código Civil, o pressuposto para que o médico não atue sem o consentimento do paciente é a própria gravidade da situação em si, de maneira que não será o caso emergencial ou a situação gravosa que lhe permitirá agir sem o consentimento.
As consequências jurídicas só surgirão no caso de atuação médica sem consentimento e o efeito danoso se dará por agir sem autorização, pelo que responderá por perdas e danos. Por este artigo, o risco de morte do paciente cria a obrigação do médico de colher o seu consentimento sobre o método terapêutico a ser aplicado, sob pena de responder civilmente pelos danos aos seus direitos de personalidade que o tratamento forçado pode causar.
Elucidando ainda mais a questão, o professor SILVIO ROMERO BELTRÃO comenta que "(...) o papel do médico, na tomada de decisão quanto a que tipo de tratamento que um paciente receberá ou se é que receberá algum tratamento, é explicar as várias opções de diagnóstico ou tratamento que existem para o caso em concreto e os possíveis riscos de cada um desses tratamentos"
Encontramos proteção ao Consentimento Informado também na Lei 8.080/90 (Lei do SUS), artigo 7º, II, IV e V, que garante a preservação da autonomia do paciente na defesa de sua integridade física e moral, o atendimento sem preconceitos e o direito à informação adequada.
No mesmo sentido, é de se observar que o artigo 17 do Estatuto do Idoso assegura àqueles que estiverem no domínio de suas faculdades mentais o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável. O mencionado Estatuto não faz referência ao risco de morte como condição para obstar o direito de opção terapêutica, de maneira que estando o idoso no domínio de suas faculdades mentais, não importando qual seja o seu estado clínico, tem ele o direito de optar pelo tratamento de saúde.
A Portaria n.º 1.820/09 do Ministério da Saúde, com texto atual e bem elaborado, também sedimenta o direito ao Consentimento Informado e prevê uma série de direitos ao paciente. Por exemplo, nos artigos 4 e 5, inclui o direito a recusa de tratamento a qualquer tempo durante a internação e a obrigatoriedade de adaptação da terapêutica aos valores e limites pessoais do paciente.
O Código de Defesa do Consumidor garante no artigo 8.º o direito a informações adequadas a respeito da prestação de serviços, o que pode ser traduzido no campo da saúde como o exercício do Consentimento Informado. Também veda no artigo 39, III e IV o fornecimento de serviços sem solicitação, bem como o ato de prevalecer-se da fraqueza do consumidor em razão de seu estado de saúde, o que exclui a possibilidade de tratamento médico compulsório.
É digno de nota que a Lei Estadual 10.241/99 garante como direitos do usuário do serviço de saúde no Estado de São Paulo receber informações claras sobre terapias, agregando-se o respeito aos valores éticos e culturais.
Recomendamos ao leitor um estudo cabal dos dispositivos acima.
Desta feita, fica claro que a moderna legislação brasileira leva em consideração a vontade do paciente, não importando seu estado clínico, positivando assim mecanismos que garantam o seu direito de escolha (seja qual for o motivo) e repelindo a imposição médica e judicial, garantindo assim o princípio constitucional da dignidade da pessoa.
Os motivos que levam um paciente a escolher ou recusar tratamento médico podem variar. Por exemplo, pode ocorrer do paciente não sentir confiança em determinado médico ou hospital, ou que não queira sofrer as reações adversas de uma quimioterapia, ou que pretenda consultar a opinião de outro profissional, etc. Seja como for, a legislação acima elencada garante o direito de escolha e recusa de tratamento médico para qualquer pessoa, independente do que motiva a decisão.
Com isso em mente, se a motivadora da escolha terapêutica em determinada situação for a convicção religiosa do paciente, o direito legal ao Consentimento Informado deve ser preservado como nos demais casos. Do contrário, configurar-se-ia odiosa intolerância religiosa, há muito repelida por nosso ordenamento jurídico. O direito do paciente que não aceita sangue por convicções religiosas não é diferente do direito de qualquer pessoa de escolher o tipo de tratamento médico que deseja para si.
Em suma, ainda que não seja a opção terapêutica preferida pelo médico, prevalece a vontade do paciente acima da decisão puramente técnica e profissional, por força dos preceitos constitucionais e legais aqui considerados. E não são poucos os meios alternativos de tratamento sem sangue homólogo atualmente disponíveis, conforme mais abaixo serão elencados.
Lembramos que a antiga tradição jurídica procurava solucionar a questão em tela por reconhecer a vida como o bem supremo e indisponível, sendo que, havendo um suposto conflito entre direitos fundamentais, como por exemplo, vida e liberdade religiosa, a primeira sempre prevaleceria.
Porém, doutrinadores atuais como CANOTILHO, consideram existir uma autêntica colisão de direitos fundamentais apenas quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Os direitos fundamentais de um único titular não podem ser excluídos entre si, devendo ser harmonizados, sob pena de se sacrificar o princípio maior da dignidade da pessoa humana.
Comentando a impropriedade da tese de colisão de direitos fundamentais (direito à vida x direito à liberdade religiosa) especificamente ao caso dos religiosos que recusam transfusão de sangue homólogo, assim ensina o eminente jurista NELSON NERY JUNIOR:
"Ocorre, entretanto, que essa propalada colisão é um falso problema, na exata medida em que a colisão de direitos fundamentais em sentido estrito [consoante evidenciado na citação acima transcrita do maior expoente da teoria da colisão dos direitos fundamentais, ROBERT ALEXY] somente ocorre quando a realização de um direito fundamental, no caso a liberdade religiosa, causar dano ou repercussão negativa no direito fundamental de outrem."
Dessa forma, quando um paciente recusa ou escolhe tratamento em razão de sua convicção religiosa, isto em nenhum momento afeta direitos fundamentais de terceiros, de maneira que não se deve falar em colisão.
É de se afastar ainda a tese de violação de bem coletivo (indisponibilidade da vida) posto que, conforme acima dito, o paciente não está pleiteando a morte, mas sim, que a ciência médica lhe apresente uma solução terapêutica que preserve ao mesmo tempo a saúde e a sua convicção religiosa. Dessa forma, seus direitos fundamentais estarão harmonizados.
É comum pessoas fazerem escolhas na vida que podem ser avaliadas como mais ou menos arriscadas, mas sem serem recriminadas por terceiros, como por exemplo: soldado que vai à guerra a serviço das Forças Armadas, praticantes de esportes radicais, pessoas que prestam ajuda humanitária em zonas de conflito, fumantes, pessoas que exercem a profissão de motoboy no trânsito de São Paulo, policiais que combatem traficantes em favelas, pessoas que protestam fazendo greve de fome, pacientes que optam por um tratamento médico "X" ou "Y", etc. Assim, a chamada "indisponibilidade do direito à vida" deve ser vista com equilíbrio, principalmente para não ser aplicada discriminatoriamente somente aos religiosos que recusam transfusão de sangue.
Nota-se que a própria interpretação ampla atual do "direito à vida" como o direito à vida digna, acaba por enfraquecer ainda mais a tese da colisão de direitos fundamentais. A Constituição, ao assegurar a inviolabilidade do direito à vida, não quis proteger somente seu aspecto material, a integridade física, mas também os aspectos espirituais que envolvem a vida de uma pessoa.
O direito à vida, constitucionalmente defendido, envolve não apenas os elementos materiais e biológicos da pessoa, mas também os morais, emocionais e espirituais, que certamente lhe serão atingidos caso seja procedido o tratamento com o uso de sangue sem seu consentimento.
Isto porque, para os religiosos que acatam tal entendimento, esta questão envolve os princípios mais fundamentais que baseiam suas vidas, sendo a recusa às transfusões uma regra de conduta a ser observada, ainda que a sociedade a ignore ou menospreze. São exatamente estes princípios íntimos pessoais que a Constituição Federal está a proteger fundamentalmente.
Na mesma esteira de raciocínio, o professor PEDRO LENZA, na sua aplaudida obra "Direito Constitucional Esquematizado", chama a atenção para o fato de que o direito à vida, conforme previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, abrange tanto o direito de não ser morto, como também o direito de ter uma vida digna.
Ainda, faz-se oportuno o comentário de JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES: "Acreditamos, no entanto, que o direito à vida vai além da simples existência física. (...) O direito à vida que se busca através dos Direitos Humanos é a vida com dignidade, e não apenas sobrevivência. Por esse motivo, o direito à vida se projeta de um plano individual para ganhar a dimensão maior de direito (...), sendo, portanto, a própria razão de ser dos Direitos Humanos".
A visão ampla do direito à vida também já é abarcada atualmente pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, como se pôde observar, por exemplo, durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.510-0-DF.
Em suma, ao recusar um tratamento com hemotransfusão, o paciente não está fazendo nada além de invocar o próprio direito constitucional à vida digna, uma vez que esta engloba também os direitos de personalidade como dimensão imaterial, sendo conceitos pessoais que decorrem dos valores e cultura de cada um. Os aspectos imateriais ou espirituais são atributos sem os quais a pessoa fica reduzida a uma condição de pequena significação, sem diferenciação dos demais animais.
A jurisprudência atual cada vez mais abraça o direito à recusa de transfusão de sangue por motivos religiosos em homenagem ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Para ilustrar, remetemos o leitor aos seguintes julgados: TJMG, 1.ª Câm. Cív., Ag. 1.0701.07.191519-6/001, rel. Des. Alberto Vilas Boas, j. 14.8.2007; TJRJ, 18.ª Câm. Cív., Ag. 13229/2004, voto de lavra do Des. Marco Antonio Ibrahim, j. 5.10.2004.; TJMT, 5.ª Câm. Cív., Ag. 22395/2006, rel. Des. Sebastião de Arruda Almeida, j. 31.5.2006; TJMG, 1.ª Câm. Cív., Ag. 1.0701.07.191519-6/001, rel. Des. Alberto Vilas Boas, j. 14.8.2007; TJRS, 12ª Câm. Cív., Ag. 70032799041, rel. Des. Cláudio Baldino Maciel, j. 11.03.2010.
Pelo exposto, concluímos que os direitos fundamentais não devem jamais se sobrepor, mas sim serem aplicados em conjunto, visando o preceito maior garantido pela Constituição, que é a dignidade da pessoa. Em termos práticos, o resultado final da prestação jurisdicional e da terapia médica a ser aplicada deve ser a dignidade e bem estar do paciente aliadas à cura.
Resta-nos ainda alertar quanto à aplicabilidade restrita de regramentos expedidos pelos Conselhos de Medicina, como o Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/2009). Obviamente, por serem de caráter administrativo em posição hierárquica inferior e conteúdo meramente orientador profissional, tais institutos devem ser interpretados de acordo com a Constituição Federal e legislação supra apontada. Não servem, assim, como base para suprimir a autonomia do paciente posto que não podem se sobrepor às liberdades públicas e clássicas garantidas aos cidadãos na Constituição Federal.
Nesse sentido, reproduzimos as colocações do eminente Desembargador SEBASTIÃO ALVES JUNQUEIRA ao ponderar que "o Código de Ética Médica se trata de mera resolução administrativa do Conselho Federal de Medicina. Não sendo lei, não há como ser imposto a terceiros, sendo que eventual dever de salvar a vida por parte do médico se restringe tão somente ao seu campo moral ou deontológico (...) Na verdade, a frequente exaltação que vemos do Código de Ética Médica ou de outros atos dos Conselhos de Medicina, como se tivessem emanado do Poder Legislativo, acaba levando médicos a condutas absolutamente ilegais e até passíveis de reparação".
É digno de nota que considerável parcela da classe médica, em respeito aos direitos acima definidos e ao princípio do Consentimento Informado, vem desenvolvendo técnicas capazes de equilibrar os métodos terapêuticos com a vontade do paciente. Tais profissionais vencem barreiras como o preconceito religioso ou a insuficiência no ensino de hematologia nas faculdades de Medicina, e aprendem técnicas que acabam por beneficiar toda a sociedade, por serem mais seguras e independerem dos estoques cada vez mais escassos e inadequados de sangue homólogo.
Dentre as técnicas alternativas à transfusão de sangue homólogo disponíveis aceitas por muitos dos religiosos, estão a hemodiluição e a recuperação intraoperatória de células (que reutilizam o próprio sangue do paciente), além de outros fármacos que estimulam as funções sanguíneas. Máquinas de uso intraoperatório recuperam e imediatamente reutilizam o sangue do próprio paciente, permanecendo ligadas ao corpo, separando o sangue em seus componentes e reutilizando os que forem necessários.
Nos casos de emergência em que alguém perde muito sangue, os médicos em geral têm duas prioridades: estancar imediatamente a hemorragia e restaurar o volume do sistema circulatório do paciente com algum líquido próprio para isso, como expansores e outros fármacos capazes de temporariamente assumirem uma ou mais das funções normalmente exercidas pelo sangue.
De fato, o sangue é um líquido tão complexo e ímpar para cada indivíduo, que nada o substitui, nem sequer sangue homólogo, de maneira que a infusão de expansores e outros líquidos dá chances ao organismo ferido reagir por si, recompondo seu próprio sangue.
Praticamente todos os fármacos, instrumentos, equipamentos e outros recursos e técnicas podem ser disponibilizados a qualquer unidade de saúde, com a vantagem de seu custo ser mais baixo e uso mais seguro do que o sangue integral, para atendimentos de emergência.
Nesse passo, interessante notar que tanto a hemodiluição como a recuperação intraoperatória de sangue, são oficialmente previstas na Resolução RDC 153/2004 da ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Essa Resolução, além de incentivar o uso de tais técnicas em lugar do sangue homólogo, ainda consigna que podem se utilizadas independente da idade do paciente ou da existência de um hemocentro na unidade da saúde.
Diante de tantas opções de tratamento, podemos concluir que a medicina encarou o desafio e tem desenvolvido métodos terapêuticos alternativos sem sangue, respeitando a dignidade e encarando o paciente como um todo e não só como um ser biológico.
Aliás, o próprio código de ética da classe médica estabelece em seu Capítulo I, V que o médico deve aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente, benefício este que a Constituição determina ser digno e total e não apenas biológico ou científico. O mesmo código determina textualmente que a medicina é uma profissão a serviço do ser humano e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza.
Paralelo a isso, a legislação tem evoluído para respeitar a autonomia e vontade dos pacientes, como é o caso do novo Código Civil, da Lei do SUS, da Portaria 1.820/09 do Ministério da Saúde, do Estatuto do Idoso, etc.
Assim, a comunidade jurídica deve estar atenta a tais mudanças na sociedade, fazendo valer os direitos dos cidadãos na sua plenitude e, acima de tudo, respeitando seu direito constitucional fundamental: viver dignamente como ser humano.
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